Amor Crioulo

By Abel Acácio de Almeida Botelho

The Project Gutenberg EBook of Amor Crioulo, by Abel Botelho

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Title: Amor Crioulo
       vida argentina

Author: Abel Botelho

Editor: Grave João

Release Date: March 26, 2008 [EBook #24919]

Language: Portuguese


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     *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
     existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
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     o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
     corrigidos.

     Rita Farinha (Mar. 2008)





DO MESMO AUTOR


I--_O Barão de Lavos_, romance, 4.^a edição, 1 vol. br.
II--_O Livro de Alda_, romance, 1 vol. br.
III--_Amanhã_, romance do proletariado, 2.^a edição, 1 vol. br.
IV--_Fatal dilema_, romance, 2.^a edição, 1 vol. br.
V--_Próspero Fortuna_, romance, 2.^a edição, 1 vol. br.



_Sem remédio_..., romance, 1 vol. br.
_Os Lázaros_, romance, 2.^a edição, 1 vol. br.
_Mulheres da Beira_, contos, 1 vol. enc.
_Amor crioulo_, 2.^a edição, novela.




ABEL BOTELHO


Amor crioulo

(VIDA ARGENTINA)

NOVELA


    _Ahi està, si, magnifica, opulenta,
     La codiciada tierra..._

                      GUIDO Y SPANO.


SEGUNDA EDIÇÃO

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
DE LÉLO & IRMÃO, L.^{da}--EDITORES
RUA DAS CARMELITAS, 144
Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa-Paris

1921




A propriedade literária e artística está garantida em todos os países
que aderiram à convenção de Berne--(Em Portugal, pela lei de 18 de Março
de 1911. No Brasil pela lei n.^o 2.577 de 17 de Janeiro de 1912.)


PROPRIEDADE ABSOLUTA DOS EDITORES


Porto--Companhia Nacional Tipográfica




AO DOUTOR

BRITO CAMACHO




AMOR CRIOULO




I


Naquela tarde mormacenta de fevereiro, João da Silveira embarcára em
Lisboa, no _Almería_, com róta à America do Sul. Considerava-se um
sem-pátria, agora, na sua bôa e amorável terra, sôbre cujo manso e
carinhoso seio não fumegavam senão escombros; terra perdida e maldita,
pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e
furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em
que havia sido criado, êste parasitário rebento do vélho regímen vira-o
derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios, isenções,
benesses e preferências, tôda essa contrafeita armadura de iniqùidade e
obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica,
tudo rolára desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável,
enquanto invadia ferozmente o espaço em tôrno um caótico fumo de
confusão e de treva... e a visão inquieta do futuro envôlta num tôrvo
mistério, como um polvoréu de ruína.

Tudo lhe havia quitado descaroávelmente esta estúpida idéa da Rèpublica:
os cincoenta mil reisitos que êle, mensalmente, ia ou mandava com tôda a
pontualidade receber, a título dum amanuensado hipotético na Junta do
Crédito Público; as bôas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha
dum acaudalado burguês e pelo pai abominávelmente educada, a qual agora,
com o Afonso Costa no poleiro, já cantava tambêm de papo; e até,--o seu
pensamento hipócrita rematava,--e até as nobres, as suavíssimas côres da
bandeira de seus avós, êsse azul calmo e êsse branco ingénuo, símbolo
irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de
açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas
côres ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias.

Durante os primeiros meses da Rèpublica, João da Silveira, como tantos
outros, conspirou. Aquecia-lhe a alma êste vago _sebastianismo_ solapado
no íntimo de todo o bom português, acicatava-lhe o desejo a gulosa
lembrança daqueles magros cobres orçamentais que, somados ao activo do
seu escasso património, lhe serviam a governar sofrivelmente a vida.
Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo regímen, concorriam
simultâneos a alma e o estômago, uma predilecção ancestral e um instinto
devorista. E foi certamente esta dualidade antinómica de inspirações
que, embora visando ambas o mesmo fim, cardou a sua actuação de
conspirador de todo o carácter excessivo. Porque êste cauto Silveira
firmou várias adesões e compromissos, fez nutrida propaganda verbal
entre os rústicos, prontificou-se a recrutar gente, enviou mesmo algum
dinheiro; mas sem arriscar-se nunca pessoalmente no campo da luta
militante. Após a frustrada incursão de Chaves, não quis mais. Os seus
40 anos previsores e calculistas haviam grado em grado esmoitado, na
gafa estrutura moral dêste malogrado d'Artagnan, o espírito de aventura.
Vendeu a sua reputada vinha do Pinhão, arrendou a linda quinta da
Folgosa com o solar «de sete capelas», seu fidalgo berço natal e
residência muito em conta quando em apuros de dinheiro; à noiva escreveu
«que a sua dignidade, em briga com o seu amor, o forçava àquele exílio
doloroso»; e aí o temos agora dobrado com indolência sôbre a amura do
_Almería_ em marcha, vergado o busto, as mãos pendentes ao abandôno,
evitando olhar o manso deslise da cidade donde sentia que lhe vinha um
frio vento de repulsa, com as pálpebras froixas seguindo, em baixo, o
rasgar da prôa pela limosa torrente caudal do rio, e os lábios vorazes
vagamente encrespados na voluptuosa antevisão do Desconhecido.

Primogénito dos três filhos dos Silveiras Lôbo, de Mosteirô, o pequeno
João fôra criado com tôdas as mimadas preferências e tôda a jactanciosa
despreocupação dos antigos morgados. Todos os perniciosos desvíos lhe
havia consentido o dissolvente meio familiar e êste odioso prejuízo
educativo, todos: desde o achincalho, o abandôno burlão dos mestres, até
ao abuso feudal das raparigas. Daí que, resultando uma organização
inadaptável ao trabalho e um carácter voluntarioso e cego, o Silveira
havia consumido o melhor da sua vida ou bambochando em saborosas
sensualidades, ou luzindo em bárbaras pimponices, porêm um mísero
hóspede sempre da pura emoção, sempre refractário às reacções da
alquimia ideal do sentimento. Alto, forte, moreno, com uns negros olhos
dominadores e uma estrutura apolínea, entretanto no seu belo rosto
varonil espatinava-se a tinta de vulgaridade que imprime às fisionomias
de hoje a dureza, a ausência do sentir. Pronto sempre e álerte ao
galanteio, à volúpia, à brutalidade, ao prazer, nunca até àquele momento
se sentira capaz duma paixão que o arrancasse a si mesmo, que montasse o
seu egoísmo e as suas ambições tacanhas, que lhe pusesse asas na vontade
e lhe espiritualizasse o desejo. Nutria um tédio altaneiro pelos
aspectos triviais da vida,--êste tédio que é o triste apanágio das almas
sem vôo, dos corações vazios. Jàmais consentira intimidades e votava,
pelo geral, aos homens um desdêm cortês, às coisas uma indiferença
amável. Podia ser assim na medida do seu critério material, o mais feliz
dos homens, de vida rolando e fluindo suavemente como um exercício de
patinagem, se não tivera a furuncular-lhe, como uma fatalidade
ancestral, a crôsta da alma empedernida, o culto ardoroso, despótico,
incessante, bárbaro, da mulher. Era êste o flanco vulnerável do seu
_eu_, o único ponto em brecha naquele carácter dominador e altivo.
Abstenção feita da condição, da raça e da moral, o alarmante _odor di
femina_, fôsse urbano ou rústico, fidalgo ou plebeu, negro, amarelo ou
branco, amolecia-o. Posta em conflito com o perturbador mistério
feminino, a sua melindrosa sensibilidade capitulava, cedendo a um vício
de receptibidade extrema que se traduzia na falta absoluta de energia.

Nem por isso o nosso herói consentira nunca em descer aos atormentados
abismos da paixão, ou se deixára enlear no labirinto vêsgo da loucura.
Mal aflorava com o desdenhoso lábio o mel turvo do prazer, saltitando
despreocupado dum amor a outro amor,--epidérmicos todos, breves,
fugazes, como frutos apenas mordidos e logo deitados fóra. Era de
ordinário a vulgaridade do instinto que o dirigia, arrastando-o não raro
a scenas ridículas; mas já tambêm, uma que outra vez, a virtude suprema
da emoção, transfigurando-o, o erguera a desgarradas alucinações de
artista. Nesses altos, raros momentos de libertação êle sofrera, numa
atónita inconsciência, o puro domínio da Beleza. E agora mesmo, nesta
sua voluntária demanda da Solidão, neste atoado caminhar para o
Infinito, sem o amparo duma doce mulherita ao lado, o Silveira sentia o
coração árido e triste como o ardido leito duma torrente sem água...
Tremeu um instante, como no terror mortal de ir transpôr o vácuo, e
sacudiu-o um confrangido alvorôço, uma como que compaixão de si mesmo,
que o fez aprumar-se, esperto, na amurada, erguendo os inquietos olhos
ao espaço, por onde lhe parecera ouvir bater um esparrôdo incerto de
asas, e depois, com as pálpebras húmidas num ensopamento de ternura,
querendo reter o perfil indeciso da cidade que lhe fugia, na magoada luz
do crepúsculo, envôlta em lívidas musselinas de mistério.

Para onde ia êle? que ignorados destinos o aguardavam lá longe, nesse
novo grande mundo, para êle um enigma, e onde tudo era colossal,--o
progresso e a barbárie, a miséria e a riqueza?... Interrogações que
naturalmente lhe acudiam e vinham, freqùentes, cocegar-lhe a inculta mas
viva inteligência. Vagamente sentia que o homem que viaja aumenta sempre
e a cada momento enriquece a sua bagagem impressionista interior, a
qual, bago a bago, se vai então enceleirando, como um precioso tesouro
sentimental, no arcão das íntimas recordações, das lembranças
carinhosas. Cada povo, cada ambiente, cada país, cada raça deixam aí a
sua marca indelével, e essas pitorescas estratificações são outras
tantas parcelas novas que veem somar-se à história da nossa vida,
despertando-nos cordas inéditas no sentir ou alargando a latitude moral
da experiência. Não eram estas coisas postas bem a claro nem sentidas
nítidamente pela insuficiência mental de João da Silveira; nítidamente,
contudo, êle sabia,--isto sim!--ser a América do Sul terra «de lindas
mulheres»; e o relâmpago desta promessa acirrante fazia-lhe o passo
leve, encrespava-lhe a medula e acendia-lhe o desejo. Depois, havia
ainda que ver os seus sócios de viagem, havia que observar e indagar
quem, quanta e que qualidade de gente vinha ali a bordo com êle. Sem que
soubesse explicar-se bem porquê, tomava-o êste antecipado encanto dos
conhecimentos adquiridos em viagem, breves contactos de almas volitando
ligeiras entre os dois infinitos do céo e do mar, qualquer coisa de
adorávelmente vago, de efémero e profundo ao mesmo tempo. São como que
brisas do sentimento: se não prendem o coração tonificam a alma.


Os primeiros dois dias de viagem, té à Madeira, foram maus. Tempestade
constante. Aquele primeiro mormaço ameaçador engrossára e fechára té
disparar na trágica violência dum temporal desfeito. A chuva, a
cerração, o mar revôlto e o sudoeste rijo, soprando contrário, atrasavam
o barco e com êle jogavam perdidamente, sacudindo o transatlântico em
rijas convulsões que reduziam a arrogância industrial do seu poderoso
arcaboiço a proporções irrisórias. Nada estava seguro, pairava-se
indeciso na comoção e na treva. De quando em quando, varria de lés a lés
a embarcação uma ráfaga mais intensa, e tudo então a bordo dançava,
estalava, tiritava e gemia, no estrangulamento brutal da garra do
Desconhecido. Grupos descalços de marinheiros, trotando rápidos, faziam,
aqui, ali, a sua aparição fantástica, cerrando escotilhas, aprontando
escaleres, correndo presto a manobra. E agora, a intervalos, na
opacidade da noite como tinta, acima do ranger do cavername do monstro e
do rugir cavo das águas, por sôbre tôda essa brava orquestração da Morte
roncava e erguia-se alarmante o grosso apitar da máquina em desespêro.

E era como se não houvesse viv'alma ali dentro. A ninguêm era permitido
estacionar nos salões, no _bar_ ou nas cobertas; mas de horas antes que
perante a ameaçadora fúria do vendaval, poucos se sentiam em segurança,
e daí que uns pelo enjôo, outros pelo terror, outros por méra prudência,
tudo, na timorata demanda do seu beliche, fôra sucessivamente
desertando. João da Silveira, tomado dum indefinível mal-estar, com a
cabeça como chumbo, descera tambêm ao seu camarote, que era situado num
dos extremos do barco, formando esquina, junto à prôa. Tinha uma
ventanilha sôbre o mar e outra sôbre aquele ângulo avançado da coberta,
descobrindo assim um trecho dessa renovação iníqua das galés, essa
enorme grilheta ambulante, onde, sob um miserável tôldo, à intempérie,
ao abandôno, no mais absoluto desamparo, na mais sórdida promiscuidade,
num baralhamento ignóbil de idades, de sexos e de raças, rolando ao
áspero sabor da tormenta, como lastro, como calhaus, como lôdo, como
viva espuma, seguiam, empilhados a monte, os passageiros de 3.^a classe.
Foi a primeira sorte de gente que, a bordo, se lhe antolhou ver mais de
perto; tinha agora ali assim, ao alcance inevitável, próximo da atenção,
misérias, tristezas, espantos, dores que até ao momento êle arredára
sempre com dureza do seu coração, de ordinário avesso à piedade. Agora
tinha que forçosamente senti-las, ouvia-lhes o singelo relato das suas
penas e angústias, chegavam-lhe lamuriados protestos, tímidos gritos de
rebelião, surdas frases doloridas; começava a interessá-lo o aspecto
resignado, humilde, sofredor daquelas rôtas máscaras de agonia,
vinha-lhe o fartum nauseabundo da comida que lhes serviam; e durante a
sua primeira noite de mar, noite de pesadelo, noite de insónia, noite de
incomportável pavor, em que a madorna do cansaço lhe era a cada momento
posta em sobressalto pelo súbito martelar dos mais estranhos ruídos,--o
ferrolhar brusco de cremalheiras, silvos raspantes de cordagens, choques
brancos de metais, ringidos como rasgões, estalidos como pragas,--quem,
neste poema de extermínio, dava ainda a nota mais sinistramente aguda,
era essa atormentada frandulagem humana, quando, sôbre o convés
encharcado rojados à mistura, os seus altos gemidos em súplica rasgavam
ululantes o espaço, formando um concertante macabro com o alarído
bárbaro da tormenta.

Quando o _Almería_ conseguiu por fim fundear, frente à Madeira, a
caligem persistente no céu, as grossas cordas de água e as vagas
alterosas não permitiam fácil às pequenas embarcações acercarem-se do
paquete, e furtavam arreliativamente à contemplação do Silveira a
maravilha habitual dêsse scenário paradisíaco,--o amoroso encanto da
luz, a aragem perfumada do ambiente, a graça ingénua das construções, o
azul translúcido das águas, a esmeraldina frescura, o contôrno sensual
daquele monte atrevido de colinas salpicadas de claras harmonias, o
deslumbramento sem par e a euritmía incomparável dêsse atrevido
anfiteatro pagão, único no mundo, apenas agora entrevisto pelos claros
farpados na neblina, como através um entremeio de renda. Entretanto,
bôjo acima da pequena cidade flutuante, os vários _decks_ começavam a
animar-se; de tôda a parte surdiam lindos rostitos timoratos, cautelosos
bustos, ou enérgicos perfís, duras e arrogantes linhas masculinas,
incrédulos ainda, ávidos, curiosos, abertos numa cantante expressão de
alívio ou movidos numa alegre inquirição de interêsse; miravam-se
solícitos, acercavam-se efusivos e palreiros, formando vivos grupos de
acaso, intromiscando-se, reconhecendo-se, beijando-se; no salão
aparatoso da 1.^a classe, todo em _boiseries_ e estofos, os compassos da
orquestra espraiavam-se em molhadas ressonâncias; no extremo oposto,
pela grossa atmosfera heteroclita do _bar_, as rôlhas do Champagne
saltavam, preludiando estúrdiamente o distanciar do perigo. Mas o
Silveira, de fito sempre ao largo, não cessava de considerar o
deslumbramento panorâmico da ilha; e então viu como de roda do grande
barco, arfante ainda e a escorrer, sôbre a juba crespa e revôlta do mar,
dezenas de lanchas bailavam doidamente, em riscos de, num choque mais
violento, se estilhaçarem contra o colosso, na impossibilidade duma
aproximação tranqùila. E notou que vinham atulhadas de emigrantes,
outros tantos míseros foragidos como aqueles seus tristes vizinhos de
bordo, uns centos mais de desgraçados que iam ser pasto da voragem
insaciável dessas regiões intérminas onde fulgura o mito precário da
riqueza; protéico enxurro humano, encarnação polimorfa da desgraça na
demanda hipotética da fortuna. Eram carne votada à gleba, vítimas
forçadas da iniqùidade económica, a quem nem por isso o duro
mercantilismo reconhecia a importância do seu valor, como utilidade
social. Eram lágrimas que vão trocar-se em pérolas, vidas heróicas que
vão fundir-se em oiro, e que, não obstante, são tidas por nada por
aqueles mesmos para quem o seu descraziante esfôrço é tudo. Eram almas
tratadas como coisas, e que ali em baixo esperavam transidas, no mar em
cólera, sob a chuva, que os içassem como fardos miúdos, como valores
mercantís, como bagatelas, como bugiarías, como sucata, por uma corda. A
operação era primitiva: atados em pequenos molhos por um grosso cabo,
sem escolha, não importa como nem por onde, lá vão subindo em cachos,
escorrendo água, atoadamente, morosamente,--as mães com os filhitos a
dôrso, chorando, agitando no espaço as mãos como vermes; os vélhos
pendendo resignados na frouxidão da impotência; os moços ganhando
distância em arrancadas simiescas, e todos numa ansiada alternância
movendo os olhos pávidos entre a promissora segurança do navio, ao alto,
e em baixo a fúria glauca do abismo.

Passada, porêm, a Madeira, o tempo amainára, e agora, enquanto a dupla
hélice do _Almería_ fazia o seu arroteio manso de espuma, pela
imensidade movediça do oceano o espelhamento límpido do céu
prolongava-se, águas adentro, em opalinas suavidades, em claridades duma
transparência infinita. Como conseqùência, a bordo restabelecia-se a
tranqùilidade e pelas diferentes cobertas a mancha buliçosa e a sonora
chalra dos viajeiros alastravam, cruzavam-se, demandavam-se e cresciam
numa algarada cantante de alegria. Á hora de comer, já noite, João da
Silveira baixou, entre os primeiros, a ocupar o logar de acaso que lhe
haviam indicado e êle aceitára dócilmente, no seu altaneiro desdêm por
aquela camaradagem fortuita de gentes vindas não sabia bem donde e
destinadas a desvanecer-se pronto, finda a viagem, no distanciamento
vago da indiferença. Era o único logar que havia ainda vago, numa
pequena mesa para cinco talheres. Sentou-se. Até àquele momento, mal
havia tido ocasião de encarar os outros comensais, abotoados
naturalmente na constrangida reserva em que se nos fecha de ordinário a
expressão, à visinhança de estranhos; porêm, agora começava a vê-los sob
um novo aspecto, voltava cada um aos seus gestos habituais, mutuavam-se
olhares de confiante inquirição, saùdavam-se efusivos, seguros,
contentes. Fizera-os comunicativos a simultânea vibração do perigo. Á
direita tinha o Silveira um curioso espanhol, abundante, palreiro,
grosso tipo de homem roçando pelos 50 anos, calvo, vermelhaço, grandes
dentes ralos nos grossos lábios gretados e rôxos, a barba grisalha curta
e mal cuidada. Vestia com vulgaridade, e na lapela usada do _smoking_
ostentava a roseta de Isabel a Católica, sofrívelmente suja. Á esquerda
ia um italiano, já entrado em anos tambêm, ponderado, gordote, a papugem
flácida das olheiras denunciando um grande _viveur_, a pele rosada e
fina passada de cosméticos, um ar importante, as mãos muito cuidadas.
Seguia depois um joven chileno, irrequieto, pomposo, farta cabeleira
revôlta pastichando a indumenta cerebral dum génio, um colarinho mole
inverosímil, os olhos negros e ardentes como carbúnculos, os dedos como
que modelando incansavelmente no espaço abstrusas, incompreendidas
formas, O quarto comensal era um puro _gentleman_, de finas maneiras,
olhar inteligente e doce, um riço buço incipiente sôbre a lisa cútis
morena penujando, e uma linha geral atraente, correcta, comedida.

--Rijo temporal, hein?--comentava com vivacidade, sacudindo a cabeça, o
espanhol, quando o Silveira tomou logar à mesa.

--Foi de respeito!--acentou pronto o chileno.

--Não acha?--tornou o primeiro interpelante, adiantando com intimativa o
busto para o italiano, que se limitou a baixar a cabeça num tácito
assentimento.

O joven brasileirito julgou oportuno corrigir:

--Foi forte, sim... ah! mas não se compara com as borrascas da Biscaia
ou da Mancha.

Ao que, num abundôso gesto de desaprovação, o espanhol, agitando o
guardanapo:

--Não, isso lá... O meu caro marinheiro, bem sei que é homem da
profissão... desculpará, mas não estamos de acôrdo. Então, eu não
sei?--E em tom convincente para o grupo:--Olhem que foi um passo... um
passo _de ponersele à uno los dientes de vara y média_!

--Mas, parece que não houve desastres a bordo?--aventurou quáse
maquinalmente o Silveira.

E logo o outro, tranquilizador, dogmático:

--Ah! não senhor. Nada! Nem _desperfectos_ nem doenças. É um grande
barco êste. Acabo de o assegurar ao comandante, que deposita em mim tôda
a confiança. Ah, lá isso...--E, num risinho envaidecido,
atestou:--Amigos vélhos!

--Contudo, aquela pobre gente da 3.^a classe...

O _soi-disant_ íntimo do comandante teve um desprezível encolher de
ombros:

--Ah, sim, naturalmente... alguns _resfrios_. Mas eu já por lá andei.
Que o comandante, já digo, para estas coisas não quére outro... Pois não
há nada, não... Vão tomar musgo e leite. _Una jugadita pasajera, no
más_.

O caso foi que a familiaridade banal desta aresta de diálogo determinou
um começo de conciliação do Silveira com o ambiente. Êle passeava agora
distraídamente os olhos pela trivialidade cosmopolita do recinto,--êsse
vasto quadrilongo sussurrante e refulgente, todo em branco e oiro, com
os seus colunelos tarracos, os metais scintilantes das vigías dos
flancos, o tilintído límpido dos cristais e loiças, e,--constatava com
orgulho,--as lusas caravelas simbólicas pinturiladas com arrogância nos
luxuosos vitrais do teto. Interessava-o o ambiente e atraíam-no as
figuras. E com os seus eventuais companheiros de comida, agora, numa
saborida mutuação de impressões, ia travando gradualmente
conhecimento.--O espanhol, dr. Contreras, era médico, pelos modos: um
pobre diabo espalhafatoso e inofensivo... quando não exercia a
profissão, e em quem a arrogância dispersiva da figura buscava
caridosamente iludir a inércia tacanha do intelecto. Parece que o seu
govêrno, para se descartar dum importuno e juntamente evitar ao país o
aumento na cifra da mortalidade, o comissionára _in perpetuum_ para
seguir estudando as condições de sanidade a bordo dos grandes
transatlânticos. Um pretexto inocente e a missão mais a carácter para
êste pobre Esculápio _à rebours_, cuja educação profissional
cristalizára na terapêutica obnóxia dos purgantes e das sangrias.
Norberto Mackenna, o joven chileno, era um pintor cubista que ao seu
país tornava, após 4 anos de regalona vida em Paris, sectário _enragé_
de Picasso e grande devorador de azeitonas. O moço brasileiro era o
tenente da marinha Euclides Pereira, que ia matrimoniar-se a S. Paulo,
de regresso tambêm duma viagem oficial de estudo. O italiano,
finalmente, êsse dizia-se marquês e da mais alta estirpe. Descendia dos
Colonna di Mafiori, e em lances sucessivos de azar desbaratára ao jôgo o
melhor da sua fortuna. Esta maldita obsessão desfolhára e deixára
totalmente a nu, de prosápia e de oiro, o seu frondoso e arcaico talo
genealógico, abatido agora burguêsmente ao mercenário ofício de balcão.
Porque o marquês ia a Buenos-Aires negociar em alfombras. E dizia estas
displicentes coisas numa resignada bonomia, com clara singeleza, com
altivez, quáse com brio, mirando as unhas; e imobilizava-se em atitudes
de dignidade distraída ante a natural incidência da atenção alheia.

Com o brasileiro seguiu o Silveira, no ascensor, ao salão da 1.^a
classe, pronto irmanados os dois nesta instintiva aproximação em que os
prendiam identidades seculares de língua e de raça. Em cima, o recinto
estava pleno da mais variada gente, e havia o confiante abandôno
familiar dos estômagos contentes. Ás curiosas, inquirições do Silveira
mal podia o tenente Euclides, tam hóspede ali como êle, cabalmente
responder, limitando-se quáse a informá-lo sôbre o que sabia das
famílias suas compatriotas. E é que estas não só abundavam ali, como
tambêm, com a sua vivacidade despretenciosa e a sua bonachona
loqùacidade, davam a nota dominante. Norte-americanos, e ingleses--êles
e elas,--mal avançavam, um instante, pelas portas laterais, as cabeças
arrogantes e logo partiam, por um momento desviados na sua desportiva
tarefa de fazer indefinidamente o circuìto do barco, em largas e sólidas
passadas. Havia chilridos, cantos, vôos, jogos inocentes de crianças;
implicativos _snobs_ que continuavam a imperturbável leitura trazida,
sem intervalo, do comedor, forrados agora na apática moleza dum
_fauteuil_, cruzando as pernas; e ao lado duma aparatosa francesa, de
cabelo duvidosamente loiro e traje não menos equívoco, um derrancado
vélho sonoleava.

Mas o Silveira, que se dirigia a Buenos-Aires, buscava de preferência
exemplares argentinos; queria verificar ali, em documentos vivos,
flagrantes, se lhes assentava bem essa fama de galhardia, de distinção,
de urbanidade e opulência, da beleza soberana nas mulheres e de
enfatuado _estiramiento_ nos homens, que fazia do nome argentino o giro
dominador pelo mundo.

--De argentinos, aqui a bordo...--informou, circunvagando em tôrno a
vista, o Euclides, hesitante,--não é esta a época... Não dou conta senão
duma família.

E apontava-lhe, em cauteloso grupo à parte, num dos tôpos do salão, um
homem grosso e grisalho, todo de negro, a face totalmente escanhoada,
com uma senhora idosa, vestida de negro tambêm, muitos anéis e colar de
pérolas, sentada em meio das duas filhas. Poisavam singelamente, sem
estudo, sem afectação, o ar abstracto, numa atitude natural de abandôno
tranqùilo. As duas senhoritas principalmente parecia quererem delir-se
numa suave atmosfera de simplicidade e renúncia que era a antítese
formal de todo o propósito de exibição galante: contudo havia na sua
linha geral, sobretudo duma delas, um não sei quê de espiritual
selecção, de fino, de subtil, de espontâneamente belo e vagamente alado,
que começava por fixar com agrado a atenção e gradualmente nos trazia à
alma um superior encanto.

Seguia interessadamente o Silveira, por entre as volutas quiméricas do
fumo do charuto, o exame desta esquiva e singular figura, quando, todo
sorridente e afável, se aproximou dêle o marquês: «que perdoasse, se
acaso o vinha molestar... mas queria apresentar-lhe um compatriota assaz
distinto, fidalgo tambêm, como êle... não tanto... e como êle
arruìnado». Amávelmente o Silveira acedeu, e daí a instantes sentia o
efusivo apêrto de mão do conde Améglio di Paoli, espécie de emérito
charlatão internacional, vivo, matreiro, na larga face a inalterável
palidez dos cínicos, farta cabeleira negra, a mirada penetrante e fugaz,
os gestos abundantes. «Duros golpes da fortuna,--dizia,--o haviam
constrangido a demandar a América para ver se conseguia colocar aí meia
dúzia das melhores telas da sua esplêndida galeria. Telas dos séculos XV
a XVIII. Ricos pedaços da sua alma! Um sacrifício enorme... Não tivéra a
coragem de o consumar na Europa, onde o extraordinário valor das suas
colecções era aliás bem conhecido». Exprimia-se com abundância teatral
de efeito, num atropêlo de frases mortificadas exteriorisando como que o
pejo da sua precária situação; e tudo era desatar-se em atenções e
lisonjas perante êsse «grande aristocrata português» em que a sua
cabotina codícia farejava erradamente uma vítima. Luzia no _smoking_ uma
roseta vermelha e branca. Porêm, o Silveira achava-o plebeu, mórmente
posto em confronto com o divino perfil, de Madona, da irlandesa que se
lhe sentava ao lado. Era sua mulher. Num dado momento, a querer captar a
confiança do Silveira, apresentou-a; depois, sempre nas suas prolixas
aclarações e deferências, ia atropelando: «que levava aí assim... havia
de ver! um pequeno mostruário de obras tôdas de mestres, que eram puras
maravilhas. Vendê-las-ia mesmo perdendo, que remédio!... E que, em
Itália, êle era assim um como que avaliador oficial de objectos de arte,
pois fôra o inventor dum engenhoso processo de constatar a autenticidade
dum quadro por meio da microfotografia. O único infalível! Não sabia?...
Era um método ignorado, exclusivo seu, porêm a um tam nobre
senhor,--batendo-lhe amigávelmente no ombro, epilogava,--não teria
dúvida nenhuma em o fazer comparte do segrêdo».

O Silveira escutava-o numa indiferença cortês, distraídamente; enquanto
o melhor da sua atenção se fundia com deslumbrada ternura na figura
adorável da irlandesa, que lhe agradava enormemente, com o seu ar
repousado e cândido, a linha puríssima das feições, o arranjo ático do
cabelo castanho, o busto sóbriamente redondo, o gesto singelo e nobre.
Daí que, nos breves claros de repouso que lhe consentia a chalra
interesseira do marido, êle fez perante a diva o ensaio de algumas
amabilidades discretas... deplorávelmente perdidas,--logo êle desolado
verificou,--porque esta deliciosa filha de Erin não falava nem
compreendia senão a língua do seu país natal, de que o nosso desapontado
galã não percebia patavina.

Quando, pelas 11 horas, desceu à _cabine_, o Silveira trazia vivo e
palpitante no cérebro o baralhamento policromo e difuso de tôdas aquelas
figuras, tôda essa efémera _kermesse_ de notas de acaso, na aparência
desconexas e de cujas cruas tintas, bruscas oposições e antitéticas
formas, reçumava contudo um encanto especial, uma clara e singular
harmonia. Enquanto se despia, êle notou que ali assim fóra, à sua
ilharga, no triângulo aberto da prôa, havia tambêm alegria. Ali, a noite
era quási total. Uma única pêra eléctrica, com reflector, esclarecia
apenas o limitado espaço ao seu alcance, e a maior porção do recinto
ficava sob o domínio impreciso de vagas sombras dançando sôbre montes de
andrajos. No aplastamento próprio desta hora de repouso e sob o mesmo
invariável tôldo negro, os grupos, sórdidos, compactos, alargavam-se e
faziam monte sôbre rolos de cordas, sôbre as bagagens, sôbre mantas
vélhas, troixas, sacos, sôbre esteiras; e a escassez da luz erguia em
deformações de pesadelo, emprestava monstruosas ampliações de horror a
êsse caprichoso arranjo de cansaço e de miséria. Mas havia ainda muita
gente desperta; mesmo encostados à _cabine_ do Silveira, dois rústicos
italianos faziam pausadamente o interesseiro cálculo de quanto poderiam
vir a forrar, em cada mês, dos seus hipotéticos salários; um francês,
mais longe, trauteava _couplets_ canalhas; e tôda a sorte de vozes, de
idiomas, de murmúrios, gritos, expansões, risadas que eram lamentos,
suspiros que eram bocejos, tôda a gama fruste da animalidade, tôdas as
brutas explosões do instinto, se entrechocavam e faziam côro nesta
exótica Babel flutuante, grosso concêrto bárbaro que afogava o marulho
manso das águas e que ainda o sôpro galhofeiro dum _harmonium_ vinha
cobrir, a espaços, com a sua toada _chillona_.

Acomodado já o Silveira entre os lençóis, pareceu-lhe distinguir o
quebrado dedilhar duma guitarra, acompanhado duns acordes de violão...
Apurou o ouvido, não havia dúvida... aí voltam êles, trinaditos, leves,
como quem está afinando, êsses sons tam seus familiares, tam seus
queridos. E agora são já os prelúdios dengues do _fado_, um _fado_
choradinho e autêntico como só a alma portuguesa, enamorada e fatalista,
é capaz de bem sentir. Daí a momentos, em bom português, alguêm cantou:

    _Das barbas do Afonso Costa
    Mandei fazer um pincel
    Para escovar as botinas
    Do querido D. Manuel._

O Silveira saltou no leito, radiante, e ergueu meio busto, à espera de
mais, ávidamente. Já não se sentia tam só. A ironia gaiata daquela trova
fê-lo estremecer de vindicadora alegria. Esta descoberta inesperada
espancava-lhe o sono, aclarava-lhe a alma. Oh, a justiceira voz do povo!
O desdobramento do mote devia ser impagável. Vamos a ver que mais
viría...

O ignorado trovador cantou ainda outras duas quadras, porêm já sem
interêsse para o Silveira, porque gemiam lamechas trivialidades de amor.
No entanto, o grato alvorôço daquela primeira impressão ficou. «Não era
só êle...» comprazia-se em repetir no íntimo, vivamente sensibilizado
por êste traço imprevisto de afinidade moral com gentes de condição tam
abaixo da sua. Tinha ali assim, tam perto, analogias de sentir e fêveras
de ódio como as dêle, e a súbita descoberta desta conformidade
palpitante trazia-lhe confôrto. Inimigos tambêm do novo regímen...
dando-lhe costas, maldizendo-o como êle. E mais eram do povo, pudéra!...
do povo, sim... êsse pobre e sempre ingénuo povo português, de cuja
hipócrita adulação os rèpublicanos haviam feito plataforma essencial de
propaganda, e que depois do triunfo estavam agora burlando iníquamente.
Ah, mas êles lhes diriam! Brava gente! E tinha-os ali seus visinhos...
«Havia que conhecê-los, vê-los de perto. Bem...»

E adormeceu contente.




II


O dia seguinte amanheceu para o Silveira outra claridade. Esta inefável
sensação de calma, de liberdade, de plena posse de si mesmo, que as
viagens em nós despertam, fazia-lhe querer a vida e sacudia-o num
alviçareiro estímulo interior. De tudo quanto o rodeava crescia para êle
o interêsse. Livre, pelo momento, de preocupações sôbre o futuro e
assediado por todo um mundo de sons, aspectos, côres, idéas e coisas
novas, todo o seu encanto de viver se resumia na hora presente, e a alma
dilatava-se-lhe num voluptuoso apaziguamento sem têrmo, como essa lisa
toalha imensa de mar, sem perfídias e sem cóleras.

A corneta chamara para o primeiro almôço. Fóra, pelo espaço, havia sol,
havia luz, e o tépido acariciamento da brisa casava-se numa euritmía
perfeita com o manso ronronar das águas. Neste plácido ambiente de
espuma e oiro, as silhuetas saltavam nítidas, as tonalidades ganhavam
valor, sentia-se mais amigo e mais próximo, mais potente, mais cálido,
mais fecundo, o divino alento criador da Natureza: e, perante o olhar
extasiado do Silveira, todo o bigarrado movimento de bordo se esmaltava
de tintas de relêvo, de cânticos pagãos, de brados genésicos, de
inusitados brilhos, e os seus mesmos companheiros de embarque lhe
pareciam os habitantes dum outro planeta, onde as paixões fôssem mais
fortes e a vida mais consciente e mais intensa. Saíndo, na direcção do
refeitório, para o longo corredor, veio-lhe a viva lembrança dos seus
ignorados, dos seus humildes correligionários da passada noite, e ia a
demandá-los, com piedosa atenção, através a gradeada porta da masmorra
que ali assim perto os mantinha a distância, quando uma outra
solicitação mais empolgadora e mais instante lhe rompeu da alma em
alvorôço: a imagem fugidía e alada da joven argentina, entrevista tambêm
na véspera, no salão. Mas, por azar,--debalde o Silveira esperou!--nem
ela nem ninguêm da família baixou a comer.

Não havia então remédio senão confiar do acaso o providencial milagre de
a ver aparecer.--Mas quando? mas aonde?...--E aí sóbe êle de golpe no
ascensor e vem atravessar o salão e faz o giro afanoso do barco, mirando
em tôdas as direcções, perquirindo os bizarros grupos distribuidos
preguiceiramente ao longo das cobertas, no alinhamento marcial das
cadeiras de repouso. Absorto nesta preocupação essencial, o resto
marcava zero para êle, nada mais via ou pretendia, de nada queria saber.
Acotovelava insensível os arremangados homens do _sport_, cortava
indiferente as interesseiras chalras de grossos burgueses, vestidos de
fustão branco; por duas vezes houve que furtar-se, um pouco bruscamente,
às louvaminheiras investidas do dr. Contreras, em termos de passar por
malcriado; e por um triz não préga de bôrco sôbre o convés com uma
barafustante paqueta baíana, magra, pequenina, ictérica, que comandava a
poder de gritos e truanescas evoluções uma chusma de pequerruchos.

Por fim, essa adorável argentina ei-la que aí vem agora avançando... Vem
só. Era alta, esguia, frágil e avançava leve e aérea, como um reflexo de
si mesma, lembrando no porte e na frescura um dêsses longos, finos e
erectos fustes da _palmeira imperial_, com o vértice perenalmente verde.
Seguia breve e alheadamente, com uma simplicidade não isenta de nobreza,
e foi sentar-se junto da mãe, uma repousada e aparatosa senhora que nos
parecia forte da robustez peculiar que circunda certas mulheres e que
denota honestidade. E de hora em diante o Silveira, feliz por aquela
segurança de tranqùila contemplação que emfim conseguia, já não
abandonava mais o alvo querido do seu cuidado e atento ia e vinha, e
desdobrava arteiras pausas, disfarces e rodeios, para poder, sem que
fôsse notado, entregar-se a esta viva e desbordante análise que a sua
alma se comprazia em prolongar, porque ela respondia à excitação
misteriosa que dentro de nós faz chispar o maravilhoso reflexo interior
da simpatia.--Era curiosa, enternecedoramente curiosa, com efeito, esta
linda desconhecida. Aparentava 20 anos, não mais. Farto cabelo castanho,
_mousseux_, sem brilho, descendo em bandós singelos a juntar-se sôbre a
nuca; pequenina testa espiritual, em triângulo; os olhos castanhos
tambêm, de leve desenho mongol, as sobrancelhas erguidas e lançadas
sôltamente; o nariz projectado direito e um pouco longo, toda a face
alongada por igual, perfil grego, traçado num como que afinamento
idealista e ingénuo; o queixo pontuado finamente, os dentes brancos,
muito iguais, e a bôca breve, os lábios finos mas expressivos, resumindo
o que porventura havia de vida e de paixão nesta criatura reservada e
tímida. Nenhuma espécie de atavios: nem espartilho, nem jóias. Apenas na
base do pescoço, ático e longo como um mármore da Jónia, um colar de
corais napolitanos. As suas mãos, de dedos brancos e finos como longos
estames, e mais claras que o tom _mate_ do rosto, eram o prolongamento
lógico de tôda a figura, lembrando os tenros rebentos duma árvore de
sonho. E, quando sorria, os olhos perdiam-se-lhe no vago, enquanto na
filigrana húmida dos lábios perpassava um frémito breve de emoção.

Na alma ardente do Silveira rompêra agora o desejo veemente,
irreprimível, de mutuar impressões com a linda desconhecida.--Mas como
consegui-lo, como chegar adonde a ela?...--considerava com afinco,
instalando-se-lhe na frente, numa atitude de estudado abandôno, os
cotovelos sôbre a amurada.--Tinha que haver uma apresentação, manobra
táctica reconhecidamente difícil para o investimento cortês duma família
como aquela, que êle não via comunicar-se com ninguêm, que ninguêm
saùdava e que a ninguêm retinha, mantida mui deliberadamente no seu
desprendido círculo de isolamento e indiferença. Assim, uma aproximação
em condições favoráveis, segundo as regras do bom-tom, não era empresa
vulgar.--O Silveira, de lábio pregado, reconhecia-o, e esta
descoroçoadora evidência, longe de o desalentar, mais o
enardecia.--Havia que buscar...--Numa fêvera crescente de impaciência,
planizava estratagemas, ideava hipóteses, amontoava projectos, que, mal
esboçados ainda, todos logo fracassavam. Então, em alternâncias de
dulcíssima pausa, como um bálsamo, o áspero aguilhão do seu cuidado
amolecia na contemplação deliciada e atenta dêsse baluarte suave de
isenção e de virtude. Mas logo, mais despótica, mais tenaz, a sua
amoruda obsessão voltava, por cada um destes venusinos exames trazida a
um enternecido exacerbamento que mais lhe acicatava a vontade e lhe
acendia o desejo.

Um momento veio então em que o Silveira notou que, um pouco mais ao
largo, à ilharga e um tanto recuado das duas argentinas, um joven glabro
e calvo, com o engerido busto dobrado sôbre uma destas pequeninas mesas
portáteis de bordo, escrevia nervosamente. As garatujas do lápis seguiam
numa carreira febril, dir-se-ia ao atropêlo cálido da improvisação,
enchendo fôlhas sobre fôlhas sôltas, que a aba loira dum grande _panamá_
protegia da aragem dispersiva. E, sempre no mesmo propósito exibitivo e
grotesco, a intervalos o iluminado escriba parava na empolgante labuta e
imobilizava-se, como que colhido em pausas de transcendente laboração
interior, com os olhos vagos postos ao alto e o lápis erguido
digitalmente sôbre o lábio sibilino. Depois, num ímpeto criador, um
estremeção simiesco o sacudia, e, com um risinho envaidecido, êle
recomeçava inflamadamente a escrever. Ora, aconteceu afigurar-se ao
Silveira que, numa destas estases de espiritual concepção, o biltre
encarára particularmente a adorável argentina, a criatura esfíngica do
seu sonho... pareceu-lhe mesmo que cambiára com ela um qualquer familiar
sinal de inteligência.--Talvez tivesse a sorte de a conhecer! Feliz até
à insolência... Bem, mas então, nesse caso... havia que conhecê-lo a êle
tambêm!--E forte nesta idéa, feliz por êste relâmpago de aproximação
salvadora, o Silveira estudava agora com agrado e analisava mais de
espaço a espaço aquele que presumivelmente ia ser o auspicioso traço
iniciai à sua fortuna.--Era uma figura abortiva e grotesca, assim
tortuoso, magrote, pequenino, com o seu bigodito loiro, raso à raíz dos
lábios, com os seus olhos dum cobalto inexpressivo, com a cabeça tôda em
tortumelos, romboidal, enorme, e, a partir do queixo para o coronal,
aparada caricaturalmente em ponta, num dêsses estiramentos cucurbitáceos
peculiares do Greco. E ainda o alongamento filiforme do pescoço sôbre a
ladeira débil dos ombros mais acentuava o desliamento quebradiço e
vacilante daquela estranha figura. Coisa curiosa: sôbre êste pescoço
estriado, sôbre estas mãos nodosas, sôbre esta cabeça paradoxal que
parecia recêm-saída dum cataclismo, não havia a epiderme rugosa e áspera
que seria a condizer, antes se arredondava a macieza penujosa e clara
duma pele de efébo, _mate_, adoçando os contornos, com transparências de
aguarela e velaturas de arminho; a pele virginal e doce dum adolescente;
a qual, entretanto, pelo mais irritante dos contrastes, passava súbito a
uma rubefacção herpetizada e adusta no revestimento crassoso das
desertas grimpas do cránio luzidío.

Vestia um jaquetão negro de lustrina, colete e calça de flanella créme,
sapatos brancos, peúgas rôxas, a camisa mole _ajourée_, e a farta
gravata de sêda negra caída e sôlta num desmanchado laço de artista. Um
mixto de pedantismo e inconsciência, de garridice e desmazêlo.
Propunha-se o Silveira abordá-lo, quando um pequeno incidente surgiu, a
cortar-lhe o propósito e colocá-lo num passo difícil... Era o conde
Améglio que passava, mais a mulher, e que apenas avistou o «grande
fidalgo português e seu não menor amigo», logo de acercar-se-lhe,
expansivo, sorridente, num afectuoso desbarato de gestos e mimadas
atenções, pouco mesmo faltando para lhe acarinhar com a mão,
familiarmente, o queixo. E assediava-o com perguntas, com propostas,
ofertas, lembranças, solicitudes.--Que fazia ali assim? porque não vinha
com êles?...--A adorável irlandesa, numa sublinha cativante, sorria
tambêm. O Silveira tinha calafrios, colhido assim de improviso, de
súbito posto à prova na duplicidade egoísta dos seus instintos.
Gaguejava de embaraço, não acertava com uma posição, as palavras não lhe
acudiam. Tomava-o uma espécie de embrutecedora raiva interior, ao ver-se
assim entaliscado estúpidamente entre essas duas solicitações, qual
delas mais viva e mais tenaz, do seu desejo. Ardia por fazer-se notar,
por fazer-se admitir ao convívio da linda americana, cuja linha patrícia
e esquiva tanto o intrigava; e muito lhe agradava por igual _Mrs._
Edith, cujas bôas graças não queria perder, mas junto da qual tambêm não
lhe convinha fazer demasiado ostentiva parada de atenções, neste
momento. Defendia-se por monossílabos, numa grande instabilidade de
movimentos, còrando como um colegial e mirando de escape, numa idiota
solicitação de escusa, a bela argentina, que nem dava por êle. Por fim,
ante a insistência pegajosa dos dois, cortou a dificuldade prometendo
que breve iria, a estibórdo, ter com êles; e tornou a còrar mais forte
quando o conde, já longe e ao dobrar a esquina do _deck_, se voltou num
gesto afável, acenando-lhe convidativo com a cabeça.

Daí a instantes, liberto do arreliativo pesadelo, acercou-se dissimulado
do incansável rabiscador, o qual, no momento justo, arredára, num desvio
brusco do antebraço, a grande aba do _panamá_ protector de sôbre as
tiritas de papel, que logo desparramaram ao acaso, como arvéloas, pelo
espaço. E logo tambêm o Silveira, agarrando o pretexto, acudiu solícito,
baixando-se e ajudando o desconcertado escritor a recolhê-las.

--_Un millón de gracias, caballero_.

--De nada...--obtemperou, amável, o Silveira; e com discreta
atenção:--São produções inéditas?

--_Apuntes del natural_,--tornou singelamente o outro, sempre em
espanhol,--esquissos, impressos, simples notas do momento, fugazes como
êste instante de vida em que voamos.

--Deve ser interessante.

--Não vale nada...--derivou o iluminado anotador, num gesto
desprendido.--Um modo inofensivo de matar o tempo.

Convidou o Silveira a sentar-se e acercavase-lhe, solícito,
insinuante.--Sem dúvida era português? Pelo modo, pelo acento, via-se
logo... Muito folgava! Êle era andaluz. Um pouco periodista e um pouco
homem de negócios.--Impingia-lhe o seu cartão de visita, impresso em
tipo gasto e vulgar, modestamente.--Ramón Alvarez, _tout court_.--Mas,
sôbre a caligrafia tôrpe dos caracteres, um empenachado elmo luzia
heráldicamente, mais tôrpe ainda.--Êle era duma família da mais antiga
linhagem, família de cronistas, de poetas, de galans... e tivera sempre
um grande fraco pelas letras. Tinha dois livros em preparação, uma
novela e um poema épo-histórico, e tambêm um drama prestes a ser pôsto
em scena pela Maria Guerreiro.--Oh, os intelectuais!--exclamou o
incompreendido escriba, desarticulando o busto, rolando os olhos em
êxtase e, num bravo arranque de entusiasmo, atirando a enormidade
paradoxal da cabeça sôbre a nuca.--São a flor por excelência, a suprema
exaltação da terra!--Infelizmente, êle vivia... viviam os dois, que lhe
perdoasse se tomava a liberdade de o dizer... mas lá como cá... viviam
numa peste de países de analfabetos, onde por via de regra os
pensadores, os génios, os grandes eleitos do talento e do saber, morriam
de fome. De sorte que, assim, havia que ser-se ao mesmo tempo um pouco
prático.--Que remédio!--com enfado soberano rematou. E iludia o seu
prosaico mistér de caixeiro viajante num vago eufemismo, dizendo «que
vinha à Argentina estudar o país».

--E conhece argentinos?--logo o Silveira indagou com calor.

D. Ramón meneou negativamente a cabeça.

--Alguma das famílias que vão aqui a bordo?

--Tampouco.

--Nem aquelas senhoras, ali assim, à nossa direita?

Essas menos do que nenhuma. Alvarez não conhecia nem tinha ganas de
conhecer.--Muito cheias de prosápia. _No le gustaba_.--E franzia o nariz
com displicência. Na irritação do desapontamento, o Silveira é que teve
ganas de lhe bater... Entretanto, na sua abundosa loquela, o Alvarez
insistia que nunca podéra aturar gente pretenciosa. Ele queria-se com
gente alegre, comunicativa, franca, _sencilla_, gente à moda do seu
país, da sua terra... com pessoas que nos põem à vontade, no fraternal
empenho de nos fazerem sentir que são nossos iguais, em vez de parecer
que nos querem impôr uma humilhante adoração.--Olhe! como aquilo.

E apontava, de olhar incendido, uma linda morenita, mui viva e
coquetona, tôda de branco, que justo lhes passava na frente. Ia ladeada
por dois outros tenros amorinhos, e as três realizavam o mais delicioso
grupo etrusco, assim caminhando rítmicamente, sôltas e leves, as cintas
enlaçadas, os bustos dançando, o cabelo ao vento.

--_Què monada!_ Aquilo, sim... Veja! Veja!

Dizendo, o desengonçado Ramón exagerava a sua abominável aparência
fetal, ao erguer-se, todo dobrado, sôbre a mesa, para corresponder às
provocadoras saùdações que, passando, a rapariga lhe fazia com a cabeça,
com os olhos, com o leque, com as mãos, batendo forte o tacão, bolinando
os quadrís lascivos. E quando a perturbadora visão se desvaneceu, êle,
familiarmente:

--Prometi-lhe um soneto e neste momento mesmo o terminava. Quere ver?

Procurou, com a pupila febril, nas tiras sôltas, e erguendo uma por fim
entre os dedos trémulos, leu então, enfáticamente, com cabotina audácia,
como sua, o puro decalque duma das líricas mais inferiores de Manuel
Palácio. Contára antecipadamente o seu instinto com a iletrada
ignorância do Silveira, o qual, tomando naturalmente por original a
cadenciada toadilha, em marretadas de admiração vislumbrava agora nas
insondáveis cavernas cerebrais do Alvarez tubérculos autênticos de
génio. Porêm já êste, num lume de vaidade, colhendo presto a papelada:

--O meu amigo perdoará... mas ocasiões destas não se podem perder. _La
muchacha con seguridad_ espera-me. Está impaciente... _Hay que
aprovechar, por Dios!_

E, arredando brusco a mesa, partiu de abalada, pequenino e torcido sob a
aba descomunal do _panamá_, como um chaparro anémico.

Desapontado, o Silveira quedou-se uns segundos sentado ainda e imóvel,
na sua atitude de irremediável lamecha, o busto abatido, as mãos
pendendo tristes entre os joelhos. Depois, tendo enviado um derradeiro
olhar de desconfortado apetite sôbre a espalda esquiva da linda
argentina inabordável, ergueu-se e partiu tambêm, sacudidamente. Mal
tinha dado a volta para estibordo, quando viu que a êle se dirigia o seu
afável comensal, Euclides Pereira, ladeado por dois graves e idosos
senhores, que deviam ser ingleses, a avaliar pelos cómicos desmanes em
que êles buscavam amávelmente contrafazer a sua imperturbável e habitual
tesura. O joven brasileiro apresentou:--_The Right Honorable the Earl of
Horrowby_--_The Captain John Stayton_. Este segundo tartamudeou umas
curtas frases guturais, que o Silveira não percebeu, lardeadas de
profusas reverências; e o tenente Euclides explicou então que vinham
pedir-lhe a honra de consentir em fazer parte do grande _Sports and
Entertainment Committee_, e ao mesmo tempo convidá-lo a assistir à
reùnião preparatória, que devia realizar-se, aquele dia mesmo, no salão
de 1.^a--_the Social Hall_,--ás 9 p. m. Erguido e dobrado numa atitude
de nobre aquiescência, o Silveira agradeceu, no íntimo envaidecido. E
como que sentindo-se crescer, importante, alegre, seguiu com afectada
indolência direito ao conde Améglio, que de longe observára e
compreendera a scena, e por isso o acolhia agora entre atencioso e
mordaz, num risinho de conformidade patusca.--Êle tinha adivinhado...
muito bem! muito bem! Fizeram o que deviam fazer, era de esperar.--E
todo em aprovativas mesuras:

--Sim senhor! muitos parabens.

--_Very, praiseworthy_,--completou _Mrs._ Edith, com o seu cândido
sorriso. Mas, encolhendo, modesto, os ombros, o Silveira:

--Uma simples amabilidade. Nem eu esperava. Que valor pode isto ter?

--Ah, pois então não tem! Êles bem sabem a quem escolhem...--acentuou,
lisonjeiro, o conde, com ar convicto; e maliceiramente rematou:--Olhe, a
mim não me convidaram êles.

--Mas, é que o devem convidar!--corrigiu com amável intimativa o
Silveira; e, num generoso assomo de importância:--Se o conde quere, logo
à noite lembro o seu nome.

--Oh, não, não... por amor de Deus! Essas honras, aqui, não trazem senão
incómodos e maçadas. Para o efeito, sou da plebe, prefiro que me
considerem um anónimo, um zero. Não, não... Muito obrigado!

Trocaram depois uma meia dúzia de frases banais sôbre a monotonia da
vida de bordo, a extensão fatigante da viagem, a vulgaridade chocante
dos passageiros, a má comida, o calor, o belo tempo que fazia. O conde
tinha no regaço um livro copioso,--_L'Argentine telle qu'elle est_, de
Paulo Walle,--cuja leitura recomendou ao seu amigo; mas a êste
interessava-o mais a silhueta ateniense, o abandôno repousado e lânguido
da irlandesa,--sôbre a _armchair_, frente à luz, estendida longamente,
com os pèsitos brancos traçados fóra, no ar, deixando a divina modelação
da perna a descoberto bastante acima do artêlho, com uma cadência suave
e tranqùila na ondulação rítmica do seio, os braços em ansa, as mãos
inertes em concha sob a nuca, e os grandes olhos de veludo mirando vago,
ao longe, reflectindo não sei que molhado encanto, da ardósia fluida das
águas, e parecendo seguir o vôo dalguma quimérica visão na claridade
material do espaço.

O toque para o _lunch_ veio cortar brusco êste primeiro ensaio de
_flirt_, com o qual a alma oblíqua do conde não parecia aliás
preocupar-se... Em baixo, à mesa, a conversação arrastou-se monótona,
cortada e dispersa, como se cada um daqueles cinco fortuìtos comensais
trouxesse agora por distintas e opostas coisas dividida a atenção e
solicitado o espírito. Apenas, com familiar insistência, se falou dos
próximos festejos, sendo o Silveira e o tenente Euclides felicitados
cordialmente por fazerem parte do grande _Committee_ directivo; e tambêm
o abstruso Mackenna se desatou num panegirismo entusiasta daquela
aparatosa francesa cuja identificação moral e social trazia todos a
bordo intrigados, graças à mirabolância equívoca das _toilettes_, e à
suporífera mansidão e à consciência não menos letárgica do presumido
marido.--Helena d'Ellery se chamava ela, já conseguira saber... mas,
jurava! ainda havia de saber-lhe tambêm práticamente a biografia.--O
flácido marquês di Mafiori teve um risinho enigmático, imperceptível; ao
passo que, na sua libidinosa querença, o outro:

--É deliciosa! Tem o _chic_, o aperitivo acre do escândalo. _Hay que
gustarla!!_

E na gulosa antecipação dêsse defeso prazer sonhado atacava furiosamente
o pires das azeitonas.

A interminável sucessão da tarde arrastou-a o Silveira enfastiadamente,
em grande parte pelo braço solícito do tenente Euclides, que não se
cansava de o apresentar às numerosas famílias suas compatriotas. E assim
andaram deambulando amávelmente de grupo para grupo, sem que o Silveira
conseguisse dominar a impaciência e vencer o tédio. As jovens
brasileiritas, algumas bem interessantes, com as suas meigas expansões e
a sua vivacidade ingénua não logravam entretanto cativar-lhe o espírito,
enleado teimosamente naquele obsessivo empenho de se aproximar da
argentina; os homens, êsses sem maior atenção, mal trocadas as primeiras
saùdações, logo reatavam o interesseiro diálogo interrompido, não
falavam senão em cotações da borracha e do café, perseguiam miragens de
fortunas fabulosas, desfiavam cálculos que davam vertigens, denunciavam
burlas que pediam galés, antecipavam quebras iminentes, todos ávidamente
engrenados no travamento egoista e brutal dos negócios, a que durante
tôda a sua vida o Silveira, por temperamento e por educação, se
mantivera sempre altivamente alheio. Nada disto o satisfazia, nada o
interessava, nem por momentos o prendia sequer. Então, num dos seus
vagos e atoados giros de bordo, atingiu o Silveira o têrmo da coberta, à
prôa, mesmo sôbre o amontoamento heteroclito e sórdido dos seus vizinhos
da _cabine_, em baixo, aquela pobre gente da 3.^a classe. No trecho
luzidío e nu do convés que a projecção do grande tôldo _gris_ deixava a
descoberto, êle viu que vários bigarrados e mansos grupos subiam e
desciam ao acaso, num constante vaivêm, pelo sujo rasgão duma espécie de
negra fossa, a um canto, e vinham em cima amadornar-se, plácidos todos e
delidos como um sol de outono, todos na mesma calma resignada e humilde,
apagados, doces, tranqùilos. Os homens, pelo geral, em camisola e
arremangados, a cabeça nua, alguns descalços, estremavam-se segundo as
afinidades de raça, e fumavam, assobiavam, rilhavam fruta, falavam
tímida, espaçadamente, como que narcotizados por aquele embalo monótono
da vida que, durante dias e dias, havia de baloiçá-los entre a água e o
céu. Muitos, num confiado abandôno animal, dormiam. As mulheres,
acocoradas, remendavam-se, preparavam tisanas, amamentavam os filhitos
de colo ou catavam os mais crescidos. Numa clareira de escasso prazer,
ao centro, e de roda do mesmo incansável e folgazão _harmonium_, passava
numa tropeada cantante um círculo folião, dançando,--cujas atitudes
pagãs uma loira e delgada _touriste_ ia esquissando a correr no seu
_carnet_, deliciadamente. E o Silveira fazia a aproximação mental desta
suave chusma humana, na sua conformidade evangélica, na sua
inconsciência fatalista, na sua plácida singeleza e passiva sujeição ao
destino, com os gestos duros, a pupila metalizada, a frase breve e a
sôfrega ardência dos seus insatisfeitos companheiros de 1.^a... e achava
aqueles mais felizes.

Tocava o sol o ocaso, e o Silveira como que via agora, de roda de si, a
uma outra luz, os homens e as coisas, cujos contornos se debuxavam numa
agonia de tôda a sua vida exterior, acendidos em tons violentos num
esfumaçado fundo de tristeza. Encarou numa instintiva interrogação o céu
e surpreendeu, no seu desdobramento esfusiante, êsse maravilhoso e
deslumbrante scenário cuja amplidão magnificente tanto lhe haviam
encarecido.--Era com efeito uma imensa, uma transcendente e apoteótica
sarabanda de luz, que mais que aos olhos lhe falava à alma, e que em
parte nenhuma como ali, em pleno oceano, podia abranger-se íntegra na
sua avassaladora majestade, na sua incomparável beleza, tomando
totalmente meio céu, descendo suavemente do frio azul mineral do zénite
a um loiro cálido de paixão, para depois, à raíz do mar, inflamar-se em
_sanguíneas_ vigorosas, esbrasear-se em línguas de incêndio. Na difusão
ofuscante desta auréola de sonho, as _walkirias_ fantásticas de nuvens,
encapeladas cêrca do horizonte, debruadas por aquela gama infinita de
côres, facetadas nas mais atormentadas e imprevistas formas do relêvo,
tinham movimento, tomavam volume, intenção, vida, alma, carácter,
improvisavam grupos que eram símbolos, formavam cruas oposições,
saltavam em rondas caprichosas; e por fim tôda essa manante claridade
sideral despenhava-se, como um Niagara de oiro, macia, translúcida,
impecável, sôbre a imensa alfombra rútila das águas. Aí, na linha
molhada do horizonte, o mar era fogo líquido, e nesta enorme brasa,
crespa e fluída, a granada quáse extinta do sol estrelava-se ainda para
o alto num imenso leque de violeta e oiro, que a algodoada capela das
nuvens contornava, e cujas últimas trepidações vinham, crepitantes e
dispersas, morrer pelas silhuetas errantes, pelas escaiolas claras,
pelas arestas vivas do navio arfando... ao passo que já, pelo diáfano e
desbotado azul da metade oposta do céu, da penumbra vaga do oriente, o
plácido véu da noite vinha subindo.--Era tôda uma revelação esta soberba
e inimaginável orquestração aérea de aspectos, de formas e de tintas;
convertia num absurdo a impassibilidade tradicional do céu, fazia-nos
crêr na clássica sublimidade da vida olímpica dos deuses, dava-nos como
que a sensação viva do Infinito.

Seguia o Silveira desta hora doce e imensa a magia incomparável, quando
sentiu um toque familiar no ombro, que o fez estremecer. Era o pomposo
Norberto Mackenna, que com um gesto alto e desdenhoso:

--Então, que faz aqui assim, tam só, meu caro?... Admirando o pôr do
sol, não é verdade?

--É lindo!

--_Ya lo creo_.

--É maravilhoso!

Mas, num rebarbativo freio a êste entusiasmo ingénuo, o joven chileno:

--Sim, é bonito, é... mórmente para quem o contempla pela primeira vez.
Mas não nos podemos ficar por aqui!--E ante a muda interrogação do
Silveira, com infatuado ar, esclarecia:--Ora! Nas minhas primeiras
viagens, fartei-me de fixar colisões de côres como estas; mas não
passavam de cópias servís, hoje não lhes atribuo importância
nenhuma.--Plantava-se com intimativo vigor diante do Silveira, que
começava a imaginá-lo maluco.--Porque isto de pintura, meu caro amigo,
tem que progredir, como tudo o mais; tem que radicalmente mudar de
processos, entende-me?... Os valores éticos e estéticos actuais são uma
lástima... adstritos como ainda andam à passividade idiota e servil de
gastas formas milenárias. Temos que fazer mais do que ficar-nos a
objectivar interminavelmente as vélhas concepções convencionais da
beleza e do amor. _Hay que poner patas arriba_ a tôdas essas fórmulas
mesquinhas. Oh, seguramente Picasso, Boccioni, Metzinger, Matisse, estão
na razão! Há que derribar por completo, que arrancar pela raíz tôda essa
floresta vazia e pedante do Passado. Pois se nós temos de roda de nós,
flagrante, inexplorada, imensa, uma nova maneira de criar e de sentir...
Temos que renovar ao mesmo tempo o instrumento e a música.--E movendo
desordenado a cabeça, os nervosos dedos arranhando inspiradamente o
espaço, a grenha revôlta ao vento:--Há que fixar o movimento, a
velocidade, a conquista do espaço, o delírio da carreira, a embriaguez
do vôo, as palpitações do éter e as vibrações anímicas, todo êste
travamento volátil e febril da vida, tôdas as grandes conquistas
arrancadas últimamente pelo génio humano à Natureza inerte e hostil...
Não lhe parece?

--Sim, acho que sim...--aventurou maquinalmente o Silveira, que o
escutava indiferente, sem perceber nada, como quem ouve chover.

Entretanto, diante do seu olhar deslumbrado e absorto, e como um eterno
protesto à vacuìdade insolente daquelas palavras, continuava a
desenrolar-se a beleza perenal dessa agonia de luz dulcíssima,
salpicando de brilhos fugazes a capela rasteira das nuvens, que como que
se abriam agora em magnólias, hortênsias, lótos, orquídeas e outras
flores maravilhosas, semelhando um imenso fogo de artifício imobilizado,
no seu fulvo esplendor e no seu rasgo alado.

Breves horas depois, no _Social Hall_, a prefixada reùnião do
_Committee_ directivo de _sports_ e festas decorreu serena e
rápidamente. Para ganhar tempo e facilitar trabalho, o secretário leu um
programa de diversões já préviamente elaborado, o qual foi aprovado sem
discrepância. Procedendo-se em seguida à distribuìção das respectivas
funções pelos membros do _Committee_, João da Silveira veio a saber, com
verdadeiro regosijo, que não lhe competia mais do que o encargo de fazer
entre os seus compatriotas de bordo a _quête_ voluntária para as
despesas.--E que não se aceitavam donativos superiores a uma libra.--Por
outro lado, a tarefa era-lhe um tanto ou quanto fastidiosa. De
portugueses, a bordo, o Silveira não se dava conta de mais que alguns,
poucos, pequenos proprietários e comerciantes, seguramente
republiqueiros... bastava vê-los. Não lhe era nada agradável tratar com
essa ordem de gente. Mas, em suma, por uma vez e como eram poucos, a
coisa resultava fácil, afinal. Era um alívio!

Daí a pouco, sôbre uma das mesitas do _smoking-room_, iniciava êle o seu
trabalho, passando ao papel os nomes daqueles que já conhecia, quando
súbito se lhe interpõe arreliativamente à luz a figura abundosa e afável
do dr. Contreras.--Não sabia se vinha _molestarlo_...--Tinha um risinho
solícito, de pretendente, ao explicar:--Êle estava cêrca, ali assim,
vendo jogar, quando deu conta dêle.--E apontava uma mesa de _brigde_, em
que eram parceiros o Mafiori, o Mackenna, um inglês engelhado e esguio
como um arenque sêco, e aquele misterioso e derrancado acólito de
_M._^{me} d'Ellery, a qual, complacente, se lhe sentava ao lado, de
perna traçada e fumando, num à vontade petulante. O Contreras
continuou:--Estava vendo jogar, por ver... Não que fôsse _aficionado_.
_Más bien le gustaba_ tratar com as pessoas de verdadeira distinção. Oh,
sem favor nenhum! Por isso tomára aquele atrevimento.

E levemente incrédulo, dobrando-se para o Silveira, com o olhar astuto:

--_Es usted republicano_?

O Silveira teve um gesto solene de protesto. E servilmente o outro:

--Ora! via-se logo... Podia lá lêr por semelhante cartilha _un
caballero_ tam distinto! Eu, que sou eu, p'r'aqui um pobre
_come-meajas_, e com republicanos tambêm nunca quis nada. _No parto
buenas migas con ellos_. Gente sem modos, sem educação... Nem a
rèpública, meu caro sr., é para nós.--Dogmáticamente confirmava,
arregalando os olhos:--Veja o que ela durou em Espanha!--E, com
dulcerosa expressão, batendo a espalda do Silveira:--Pois, meu caro
amigo, faço votos para que êsse grande dia da restauração lhes venha
breve.

O Silveira poisára a pena e erguera uns grandes olhos de esperança para
o generoso interlocutor, seguro senhor agora da sua grata simpatia, e
que com abandôno familiar, sentando-se:

--Diga-me, meu amigo... êle a rèpública portuguesa sempre suprimiu as
condecorações?

--Suprimiu tudo!

--_Es lástima_...--comentou, de pálpebra murcha, o Contreras; e depois
duma pausa, coçando a barba, tímidamente:--Eu muito gostava de ter uma
condecoração portuguesa!

--Sim? Pois deixe estar, que quando a coisa volte...

--_De seguro_, promete?

--Alcanço-lhe uma... a Conceição, por exemplo. Palavra!

--Ah, que agradecido eu lhe ficarei!--lamuriou o Contreras, enternecido,
de mãos erguidas.--_En cambio_ tambêm prometo fazer-lhe _un regalo, un
regalo precioso_...

Achegou-se e com afável intimativa, muito em segrêdo:--Dou-lhe uma das
carabinas apreendidas aos monarquistas portugueses, de que me fez
presente _el alcalde_ de Vigo, grande amigo meu... É uma carabina
autêntica de Toledo, como aquelas que os jornais disseram que o govêrno
espanhol havia vendido para o Paraguay...--Aqui ria grossamente,
mostrando a rala devastação dos dentes:--Para o Paraguay, hein... Não
foi má _broma_ essa!

E outra vez sério, e com um encarecimento hipócrita, premindo o pulso ao
Silveira:

--Uma preciosidade, uma verdadeira peça de museu... Era do Paiva
Couceiro.




III


Na manhã seguinte, ao _lunch_, já ao lado de cada talher, no comedor,
havia a lista dos passageiros e do pessoal de bordo, em papel
assetinado, impressa lindamente, e, junto, o Programa detalhado _of
games and sports_ para durante a viagem. A primeira sessão,--jogos sôbre
a tolda,--realizar-se-ia já nessa mesma tarde. Por isso, o Silveira
havia visto, logo de manhã, um grande quadro negro posto a prumo no
_Social Hall_, o qual era destinado à inscrição geral dos jogadores, e
que em menos duma hora aparecia abundantemente garatujado de caligrafias
exóticas, hieroglifando nomes bárbaros. Agora, no comedor, o Silveira
demorava com particular agrado a atenção sôbre a beleza daquela
composição tipográfica feita a bordo, e no íntimo rendia o seu mais
admirativo preito à celeridade e à limpeza como tudo ali assim
caminhava.

A seguir, e quando, postos de lado a Lista e Programa, desdobrava o
guardanapo para principiar a comer, o Silveira notou que o tenente
Euclides o mirava com uma expressão singular, entre alviçareira e
irónica, alegremente. E como a insistência maliciosa dêste prazenteiro
olhar se prolongasse, levemente intrigado êle então aventurou:

--Como o nosso Euclides está hoje contente!

O brasileirito fez uma pausa de importância, e depois olhando-o fito,
com um cocegante ar de mistério:

--Tenho uma grande novidade a dar-lhe!

--Coisa bôa?

--Bem agradável, creio, lhe deve ser...

--Homem, diga lá! desembuche,--comandou, já tambêm interessado, o
Contreras dando um murro na mesa.

Porêm, numa suave negativa de cabeça, o tenente Euclides:

--Nada! O meu amigo perdoará... mas é assunto só p'r'os dois. Não pode
ser...

O Silveira, razoávelmente intrigado, reptava-o a que falasse. Curioso
por igual mas comedido, o nobre Mafiori, num protesto mudo de discreção,
levou a mão ao peito, fazendo luzir as unhas. Porêm, a tudo resistiu a
alviçareira e enigmática expressão do brasileiro, que se manteve
impenetrável.

Por fim, quando em cima, no salão, o Silveira, devorado de impaciência,
voltou a interpelá-lo, o bom Euclides aclarou:

--Não sabe você?... Já sei quem é o nosso misterioso argentino!

--De-veras!?... Falou com êle?

--Sim! falei...

--E com as filhas?

--Tanto, não. Mas poderá você fazê-lo... Está aplanado o caminho.

--Então? então?...

E ante os olhos interrogativamente abertos e a bôca espectante do
Silveira, o amigo Euclides segredou-lhe então, por entre cautas miradas
em tôrno, espaçadamente,--que se tratava, não dum argentino de nascença,
mas dum vélho escandinavo, o dr. Justus Wimeyer, há trinta anos
estabelecido no formoso país Del Plata, para onde viera, moço ainda,
exercer a advocacía, e onde fôra cumulativamente jornalista e pedagogo,
sendo agora professor jubilado da Universidade de La Plata, grande
proprietário no norte e homem de fortuna.

--Como diabo soube você tantas coisas?--exclamou, maravilhado, o
Silveira, sacudindo a cabeça numa comoção de espanto.

--Pelo comandante do vapor, que mo apresentou,--o Euclides aclarou
singelamente.

--E que santo fez êsse milagre?

--Milagre nenhum... É que o homem é um grande filólogo, pelos modos;
conhecedor profundo da especialidade e tendo a mania da derivação
scientífica das línguas. Quere obter certas indicações prosódicas e
sintáxicas sôbre o português. Uma madureza como outra qualquer.

E, dizendo, Euclides Pereira ria bonachonamente. Mas, sôbre brasas, o
Silveira:

--E depois? e depois?...

Que, depois,--continuou, aprazivelmente irónico, o brasileiro,--depois,
a pretexto de êle falar português, aquele celebrão, rompendo com a sua
engomada reserva, pedira para ser-lhe apresentado. E vai então êle, para
se descartar da estopada e simultâneamente fazer um serviço a um amigo,
escusára-se, alegando a própria incompetência, e inculcára-o a êle,
Silveira, como um chavão na matéria.

--O quê!?--bradou êste, num salto de pavor, mas no íntimo radiante.

--Assim mesmo!--confirmou jubilosamente o amigo.--A estas horas você é
considerado pelo homem como um verdadeiro achado. Que mais quere?...--E
levemente mordaz, batendo-lhe no ombro:--Agora, veja lá como se porta.
Olhe que eu disse que você era um grande professor.

--Quere não que a fez fresca!--lamuriou, atarantado, o Silveira,
rascando a testa.--Indicações prosódicas, sintáxicas... sei lá o que
isso é! Estou bem aviado!

--Ande, vamos!

Foram encontrar o dr. Wimeyer no mais discreto recanto do salão, frente
a uma mesa, sentado gravemente. No seu invariável traje negro, e
gordote, rosado, o sulco devastador das múltiplas rugas cortando em
fundas ranhuras a descaída oval do rosto totalmente escanhoado, com o
seu ar didáctico e tranqùilo êle parecia desfiar coisas transcendentes a
dois desconhecidos, igualmente vélhos, que num religioso êxtase o
escutavam.

Mal que viu aproximar-se o tenente Euclides com o amigo, o grave
perorador interrompeu a douta parlenda e ergueu-se, a receber
urbanamente os recêm-vindos. Houve uma ligeira tremura de aproximação
feliz no seu primeiro apêrto de mão ao Silveira. E, depois de todos
mútuamente apresentados, e convidados o Silveira e Euclides a
sentarem-se, retomando a palavra, o dr. Wimeyer explanou com grave ar
doutoral, num francês correctíssimo:

--Eu estava expondo a êstes srs. a minha teoria sôbre a morfologia
secular das línguas. É a química do pensamento. É uma coisa evidente,
racional, matemática, infalível. Falta-lhe um novo Lavoisier a consagrar
a sua axiomática divulgação pelo mundo... As línguas não são mais do que
puros agregados... atómicos, por assim dizer. Creiam nisto... É das
relativas combinações e reacções dos elementos radicais e fonéticos
dumas e outras que deriva a seriação fatal do seu parcelamento.

--Mas, como se explica então a formação caprichosa, arbitrária, de
tantos idiomas e dialectos?--aventurou, com timidez, um dos vélhos
ouvintes.

--Ora essa! São as migrações, são os embates dos povos, é a acção das
latitudes, dos climas,--aclarou o vélho pedagogo com decisão, a fria
pupila azul momentâneamente acesa.--Nada há aí de arbitrário. Tudo
obedece ao jugo imutável de grandes leis de que ando perseguindo o
segrêdo. São afinidades que se exteriorizam, são electrons étnicos que
se expandem. E são êstes biológicos reagentes que lenta e fatalmente
opéram o desdobramento das raízes primitivas em grupos progressivamente
diferenciados, na _tessitura_ incomovível dos quais se vão manifestando
e impondo então modismos e qualidades peculiares, que lá residiam já no
estado latente. Vejam, por exemplo, entre o sanscrito e o grego, entre o
celta e o latim, entre o mosárabe e o português...--E aqui, enviando uma
terna olhada ao Silveira:--É sôbre o que eu tenho que pedir bastante à
sua amabilidade, meu confrade ilustre, meu nobre amigo.

O Silveira fez-se pálido e tartamudeou um vago assentimento.

Veio tirá-lo do embaraço uma cantante voz feminina, clara e virginal,
que junto do dr. Wimeyer e no mais puro francês, aventurou com meiguice:

--Poderias conceder-me um momento, papásinho?...--E logo, um pouco
perturbada e dobrando-se, ao notar a assistência:--Ah, perdão... mas eu
não queria desarranjá-los.

Perante a deslumbrante aparição, o Silveira pôs-se de salto em pé,
aturdido, louco de prazer. As fontes latejavam-lhe, via tudo em
branco... Mas já o encadernado professor estava de pé tambêm e
cortêsmente solicitava vénia para ausentar-se. Apresentou com
simplicidade à filha o Silveira, que, mudamente implorativo, se lhe
interpusera no caminho.--Era Iréne, a mais nova das duas... «A doutora
da casa»,--sublinhou o pai com afável desvanecimento. E daí a instantes
seguiam os três, fácilmente acamaradados, para a coberta de bombordo,
onde o dr. Wimeyer, na sua experiência de vélho viajeiro e por ser êste
o flanco menos batido do sol, havia sensatamente marcado cadeiras para a
família. Aí estavam, reclinadas molemente numa atitude elegante de
abandôno, a espôsa do professor, D. Catalina, e a filha mais vélha,
Dolores,--esta lendo uma qualquer Revista ilustrada, aquela imersa em
repousada beatitude. Pai Wimeyer apresentou-lhes com um sorriso
protector o Silveira, a quem fez mesmo depois sentar na sua cadeira,
entre D. Catalina e Irene.--Que sorte!... nem de propósito...--E,
trocadas algumas palavras a meia voz com a mulher, pronto voltou para o
salão, a reatar a sua voluntária catequése interrompida.

O Silveira ficou então só e inteiro senhor do campo, na sua tam
apetecida situação junto das três senhoras. Encareceu com lisonjeiro
calor o seu inexprimível prazer de travar conhecimento com uma família
_tout-à-fait distinguée_ como aquela: assim lho haviam afirmado e via-se
logo... Na mais amável solicitude, buscava pela louvaminha _à outrance_
insinuar-se. E com um desvanecimento entre altaneiro e ingénuo, D.
Catalina corroborava, explicava então,--que era argentina, aparentada
ainda com os Alvear, uma das raras famílias de aristocracia autêntica
que podiam contar-se no seu embrionário, no seu mesclado país de
_chacareiros_ sem passado e adventícios sem escrúpulos. Regressavam duma
viagem de recreio, de seis meses, pela Europa.--E, a propósito, iam
preguiçosamente arrastando êsse mais ou menos sabido travamento de vagos
comentários, de estribilhos banais, tôda a sorte de frases feitas, sôbre
os encantos de Paris, as maravilhas da Suíça, as preciosas coisas da
Itália. Neste terreno fácil de consabidas baboseiras, o tacanho
Silveira, que tinha viajado algo e não era de todo alheio ao francês,
acompanhava as três senhoras lindamente. Mas, à medida que o diálogo
aquecia, o espírito vivo e original de Irene estremava-se, tinha um
critério seu, lampejava em pontos de vista pessoais, em contornos por
vezes imprevistos. Discreteava com elevação sôbre coisas da arte e do
espírito. Em tôda a Itália, nada a cativára tanto como Florença.--Que
ambiente divino! Ali tudo era fino, harmonioso, tocante, puramente
lançado e superiormente belo.

--É certo. Até as mulheres...--arriscou, com instintivo acêrto, o
Silveira.

--É a cidade de mais deslumbrante e copiosa tradição espiritual. Da sua
arte divina a mesma Natureza é tributária. É o coração do
mundo!--epilogou Irene com brio; e depois, voltando a fechar-se na sua
tímida reserva habitual, singelamente:--Mas tambêm, a propósito de arte,
deixe-me dizer-lhe que admiro muito, que aprendi imenso neste rápido
estudo da arte europeia, não há duvida. Oh, mas é uma arte demasiado
sábia, uma arte tôda facturada e etiquetada de antemão, um curso forçado
de _savoir-faire_ em que os rasgos de génio são espontados como se
castigam as diabruras dum menino mal educado. Falta-lhe a
espontaneidade, que sómente o viço criador dos países novos poderá
voltar a restituir-lhe.

--O quê! tu crês na possivel afirmação duma arte americana,
_ché_?--acudiu a irmã de Irene, parando de lêr, num desdem incrédulo.

--Tanto como creio em Deus! É uma questão de tempo.

O Silveira prometeu-se interiormente consultar sôbre o caso o Mackenna.
E grado e grado a conversa do grupo tomava vida, côr, interêsse, e
travava-se mais quente e familiar agora, no relativo isolamento em que
os ia deixando a debandada geral; pois tudo correra a estibordo, a
presenciar o primeiro número dos jogos sportivos. E é de saber que entre
os mais entusiastas e ligeiros _aficionados_ passou a pequenina e
desmanchada figura de Ramón Alvarez, o qual, ao ver assim de súbito o
Silveira já mano a mano com as três sechoras, teve um saltinho de angurú
e fechou num piscar de olhos patusco a parópsia do seu espanto.

No pequenino grupo amigo de bombordo, depois de arte e de modas,
falou-se na variedade, na magnificência e beleza da paisagem europeia,
na doirada opulência da sua luz, nas carícias infinitas do mar, nas
perspectivas majestosas da montanha. Mas tambêm aqui a longa e
espiritual Irene discordou, e erguendo froixamente o braço, sempre na
mesma toada modesta e simples:

--Aí está outra coisa... Quanto a esplendores de paisagem, a
deslumbramentos e pontos de vista inéditos, hão-de-me permitir que
discorde; porêm tenho minhas restrições a fazer.--E com a expressão
sincera e calma, sob o olhar atento da assistência:--Eu não sei...
talvez seja por efeito de haver nascido num país horrivelmente chato e
monótono, mas a verdade é que no meu conceito a Natureza, ao contrário
dessa apregoada opulência, dessa mirabolante fecundidade e viva sucessão
de aspectos que tôda a gente lhe atribui, é duma indigência manifesta de
iniciativa e invenção, não consegue renovar mais que os mesmos
invariáveis _coups de théâtre_ e os mesmos cansados e gastos
espectáculos, seja qual fôr a altitude ou o clima. Repete-se a cada
passo.

D. Catalina, no íntimo desvanecida, julgou oportuno intervir:

--Lá volta esta minha filha às suas originalidades... Por mais que o pai
a corrija...

--_Mamita!_ original, eu?... quando exponho coisas que os outros podem
observar por igual?

--Os outros, não!--objectou Dolores, com mal contido azedume:--Eu pelo
menos encontrei, e creio que encontraria sempre, o contraste mais formal
entre os nevoeiros sujos de Londres, por exemplo, as imaculadas neves
alpinas e as escarpas sangrantes da Sicília.

Mas, na mesma dogmática singeleza, Irene, de mão estendida, fechando com
o polegar o indicador e abatendo as pálpebras:

--Tudo a mesma coisa! No dia em que tu tenhas o coração destroçado, essa
corôa alvíssima dos Alpes aparece-te suja como um trapo servido. O
chamado esplendor do Mundo é tudo quanto há de mais convencional.
Depende de nós... de nós exclusivamente. Êsse consagrado chavão do
deslumbramento pagão das coisas não é, no fundo, mais que o espelho da
nossa sensibilidade, o reflexo exterior dos nossos estados de alma.--A
irmã e a mãe sorriam, com um ar incrédulo; e ela, persuasivamente:--É
certo! Tal a sensibilidade no nosso íntimo braveja ou esplende, tal
vemos de roda de nós a vida. São as mais das vezes as vibrações
cantantes do nosso mundo interior que ao mundo exterior emprestam todo
êsse decantado brilho objectivo. É um esplendor de empréstimo. Sem nós
não valeria nada.

--Está bem, está bem...--comentou D. Catarina, prolongando um risinho
irónico em que havia um mal reprimido brilho de vaidade.

De sua banda, o Silveira, de olhos muito abertos e não sabendo que
contestar, limitava-se a assentir com vagos acenos de cabeça,
idiotamente.

Assim, à medida que o diálogo ganhava interêsse, ia-o Irene esmaltando
de notas originais, de impressões verídicas e frescas que ela extraía e
desdobrava do íntimo, como um perfume que impregnasse o seu sangue,
espontâneas, vivas, palpitantes, e que deixavam o Silveira imerso num
atolondrado mutismo, por serem coisas impenetráveis à sua ignorância e
inacessíveis ao seu critério. Entretanto, o seu temperamento sensual,
agora, acobardava-se... sofria a influência transcendente e dominadora
daquela nobre e espiritual figura. Irene inclinava-se de preferência
para êle, naturalmente, e naturalmente ia desfiando os seus amáveis
paradoxos, sempre com a mesma voz límpida e virginal, em frases breves
como toques de pincel, vincadas pelo acento imperativo das inquietas
mãos, incendidas no lume sideral das grandes pupilas sombrias. E era
como se na espiritualização crescente das frases e dos conceitos a sua
indumenta animal gradualmente se fundisse. Tôda a impressão de matéria
desaparecia... os seus olhos eram reflexos de astros, os seus lábios
eram tintas de emoção, os seus braços eram volutas de sonho; e um nimbo
de harmonia dulcíssima emanava, como um fluído mágico, de todo o seu
atenuado ser, simples e tranqùilo. Não obstante, junto dela o coração do
Silveira, como se aspirasse um ramo de flores de aromas violentos, batia
mais apressado.

Por fim, quando, passado algum tempo, as primeiras velaturas do
crepúsculo começaram a abater sôbre o barco o seu véu de tristeza, D.
Catalina ergueu-se, com as filhas, pedindo vénia para
retirarem-se.--Aproximava-se a hora de comer.--Houve uma afectuosa
saùdação de despedida,--para Irene a última,--e depois o Silveira,
imóvel e em pé no mesmo logar à medida como ia vendo esta fina, longa e
clara figura esfumar-se na luz fugacíssima da tarde e delir-se na
distância, tinha a ilusão de que ela não era mais do que uma pura
abstracção, imaterial, intangível, como êle se lembrava de ter uma vez
lido de Pierrot,--que nascera da projecção de um raio de luar sôbre um
muro branco...

Essa noite levou-a deliciadamente o Silveira, embalado na casta volúpia
dum vago e alado sonho, erguido nas espírulas de oiro dum alheamento
alto e inefável. A ablução espiritual daquele curto diálogo com Irene
afinára-lhe o sentir, infiltrára-se nas mais nobres e puras radículas do
seu ser, e como que alimpára por momentos a sua alma fruste das escórias
brutais do instinto. Na manhã seguinte, ao despertar, notou que o
_Almeria_ ralentára a marcha, e que lhe montava ao coração e lhe toldava
o cérebro o que quer que fôsse de opressivo e cálido. Ganhava-o a
depressiva molenta do aproximar dos trópicos. Pela ventanilha, mesmo da
cama, olhou ao largo e viu que barrava cêrca o horizonte uma espécie de
ciclópico muro negro. Era o arquipélago de Cabo-Verde,--recordou.
Lentamente, com uma delidora quebreira nos músculos dormentes, reagiu,
ergueu-se.--Em cima, na tolda, não havia sol, e a luz diluia-se em
grisáceas e densas toalhas, dispersa como andava no peneiramento molhado
da neblina, cortada como era por êsse formidável circuìto de montanhas
áridas e a prumo, escalando sinistramente o espaço. Não se divisava em
tôda esta imponente massa, de ruína e de sombra, uma nota clara, um
cântico de luz, uma choupana, um rebanho, uma árvore, qualquer perdido
_oasis_ de frescura e de repouso. Era o repúdio formal da Natureza.
Dentro dêste revôlto anfiteatro de maldição e de treva, o mar, fundo,
plácido, dum tom uniforme de pêz com espelhamentos lívidos, parecia
amortalhado, era como um lago dantesco estrangulado na convulsa
paralização dum cataclismo. E tudo falava de desolação e de morte neste
atormentado pórtico do Averno, nesta monstruosa cavalgata petrificada,
paìsagem de pesadelo tôda em pontas ásperas e hostis, em escarpas que
davam vertigens, em agulhas topetando o céu, em rampas escalavradas e
adustas; terra de abominação onde a vida parára por completo... arestas
sôbre arestas, abismos sob abismos... e cuja trágica insensibilidade o
mar, com os seus mansos rolos, buscava em vão comover, mandando-lhe o
acariciamento deslumbrante das suas franças de espuma.

Mal tinha o barco lançado ferro e já era simultâneamente invadido, a
bombordo e a estibordo, por um duplo cordão de negros,--puros bronzes
vivos,--ágeis, luzentes, hercúleos, a maior parte vestidos apenas dum pó
ainda mais negro do que êles, e que trepavam lestos à amurada ou
marinhavam pelas cordas como símeos, para deixar-se escorregar depois
sôbre as várias cobertas, trejeiteando, garatujando, saltando e em
risinhos duros, como de canibais, mostrando o impecável marfim dos
dentes. Eram os carregadores de carvão que acudiam à faina. Porêm,
seguidamente, da ensurdecedora algarada que subia do sem-número de
pequeninas embarcações rodeando, em baixo, o vapor, um outro impúdico
enxame de simiescos truões agora surdia, igualmente ágeis e negros,
igualmente nus, mas êstes na maior parte ainda impúberes, limpos e de
formas delgadas, desdobrando na sua exótica invasão adoráveis linhas de
graça gentílica,--e todos na vibrante impaciência de disputar pelo
mergulho a caça das moedas que de bordo os passageiros lhes atiravam,
por divertir-se. Uns da casca frágil dos botes, outros pelas enxárcias e
mastaréus do vapor suspensos, toda esta coreia juvenil se agitava
sôfrega, todos pediam clamando, cabriolando, encrespando a figura,
erguendo os joelhos, batendo as mãos, desmanchadas nas mais inverosímeis
atitudes, zurrando tôda a classe de ruídos bárbaros; depois, quando a
tentadora rodelita de prata ou de oiro traçava o seu meteórico brilho
pelo espaço, êles atiravam-se a nado, de braços em ponta, como flechas,
havia um abundante chapinhar nas águas, e daí a segundos um dêles
reaparecia, amostrando e apertando a codiciada moeda na ponta do focinho
triunfante.

Com tôda a sua abominável selvajeria, o espectáculo tinha um
impressionante sabor pagão a que o Silveira não pôde manter-se alheio.
Seguiu-o por algum tempo com agrado, vibrando ao contagioso estímulo
daquele torneio brutal de agilidade e de fôrça; e apenas, uma que outra
vez, ao lembrar-se de Irene, olhava receoso em tôrno, tomado por ela dum
instintivo pejo... no apreensivo temor de quanto o seu virginal recato
por aquela impudente exibição animal se sentiria ofendido.

Nem ela, nem ninguêm dos Wimeyer apareceu, felizmente. O Silveira
descortinou porêm, não sem uma certa surprêsa, gozando muito compadres
aquele _sport_ bárbaro, Helena d'Ellery e o Mafiori, ombro com ombro, e
furtados discretamente ao besbelhoteiro rodeio das atenções no mais
escuso ângulo da ré, em cima, sôbre a última coberta.

Um vélho negro, derreado e esquelético, se lhe acercou entretanto,
ofertando produtos da indústria rudimentar do país: colares, anéis e
broches de coral, saquitos de junco, bôlsas de sementes luzidías e duras
como azeviche, grossas gargalheiras policromas tecidas de conchas, de
corais, de pedras polidas, de caroços de plantas indígenas e gomas
aromáticas. Exprimia-se com dificuldade, gaguejando e mascando, num
galimatias gutural todo em monossílabos, adulteração burda do português,
cortada, áspera, intraduzível. De roda, uns tantos mais mercadores
mendigos, como êste, circulavam tambêm, oferecendo laranjas, bananas,
côcos. E, vista assim de perto, a hirsuta e negra turba perdia aquela
nativa selvajeria da sua primeira investida feroz ao vapor; buscavam
suavemente comover a esquiva indiferença dos clientes, em gestos não
isentos de docilidade, dobravam-se tímidos, humildes, e apenas se lhes
traía a braveza inculta da condição no ávido dilatar das chatas narinas,
na escrutadora dureza do olhar astuto.

Entretanto, por efeito do transbôrdo do carvão, ganhava mais e mais a
imobilidade gorda do ar um pó negro finíssimo, imponderável, que tudo
inquinava, que tudo afogava, que tudo invadia, e que levado na asa
fuliginosa do seu irresistível poder emporcalhante, não havia brilho que
êle não apagasse, não havia limpa claridade que êle não pontilhasse de
sombra. Então o Silveira, que começava a ver o seu rico fatinho claro
salpicado e mordido de minúsculas lâminas negras, como coleopteros
daninhos, teve que renunciar a seguir aquela picante aproximação de
Helena e do marquês, e resolveu deixar a tolda e internar-se no salão,
seguindo o exemplo do maior número. Mas aí logo, do canto duma mesa, o
pequenino Ramón Alvarez a chamá-lo em grandes gestos, com uma intimativa
insistente, quáse aflita.--Queria em primeiro logar felicitá-lo... Que
bem dirigido assalto, que sorte fulminante! Estava um outro Júlio
César... Maganão!--Depois, ao notar a expressão de desagrado do
Silveira, numa brusca reviravolta, com um tom insinuante e outra vez
aflito:--Que estava muito atrapalhado... Uma andaluza, que era um vivo
demónio, pedira-lhe para escrever um pensamento no leque. E êle,
embaraçado na escolha, não sabia bem por que decidir-se...

--Tenho aqui tantas, tantas coisas!

E estrangulava nas mãos nodosas a cabeça descomunal, nesta hora crítica
por fôrça ardendo em plena gestação de baboseiras.

Daí a umas horas, no _bar_, juntavam-se os parceiros habituais do
_bridge_, faltando apenas o marquês, que num estranhável desmentido à
sua habitual correcção, já ia tardando. Faltava tambêm _M._^{me}
d'Ellery, e o seu imprescindível assessor, o vélho bonzo, fazia maçaneta
com as mãos sôbre o paninho verde e franzia a bôca exangue, em mal
reprimidos sinais de impaciência.

Então, manhosamente o Silveira tomou o Mackenna de parte, e por entre um
risinho cheio de reticências, cujo significado exacto êste não podia
apreender, perguntou-lhe «como ia a coisa?» E logo, todo jactancioso, o
outro segredava-lhe que ia lindamente! era uma conquista segura...

O intrometido Contreras, que viera familiarmente imiscuir-se na
conversa, tossicou, amolou, coçou as barbas, incrédulo. E, com ar
ofendido, o chileno:

--Parece que o amigo duvida?

--É que o vejo tornar as coisas fáceis... Não se caminha assim. Devagar,
devagar... Entre o pensar e o fazer, _hay que tomar el tranvia_.

--Se queria apostar?

Porêm o Silveira, que tinha dançando-lhe pícaramente diante dos olhos o
inopinado grupo do tópe da ré, naquela manhã, encolheu os ombros numa
ironia mansa:

--Eu já não digo nada...


Havia agora cinco longos dias a passar antes que volvessem a avistar
terra firme. Uma larguíssima sucessão de horas, sempre as mesmas, que
seriam vividas inevitávelmente sôbre a cálida opressão daquela atmosfera
pesada e espessa, que haviam de arrastar-se numa monotonia sem fim entre
o proceloso encapotamento do céu e a opacidade revôlta das águas. Então,
tôda esta grande família que o acaso improvisára ali, sôbre o piso
encerado das várias pontes e cobertas, naturalmente, a iludir a
anestesia morna do tédio, vinculava-se, cingia-se mais, buscava a cada
momento pretextos novos de aproximação, lances de mútua intimidade;
teciam-se correntes súbitas de simpatia, havia um efusivo desborde de
galanteios, atenções, franquezas; concertavam-se negócios e
associavam-se interêsses;--como se no precário âmbito daquela enorme
jaula ambulante êles constituissem um universo novo, como se dentro
dêsse frágil circuìto de madeira e aço coubessem tôdas as suas
preocupações, planos, sonhos, febres, ambições, desejos... o concêrto do
seu futuro e a incógnita do seu destino. Contudo, sobrelevando a
irresistível sugestão dêste acercamento crescente de relações e
intimidades, o Silveira teve ocasião de notar que as senhoras Wimeyer,
coerentes e imutáveis na sua linha de inviolada isenção, não se davam
senão com êle.

_Mrs._ Edith, que se havia despido sensivelmente da sua dignidade
senhoril, andava agora tôda entregue à divertida seriação dos jogos. O
ardente sôpro panteísta da desgarrada vida de bordo acendêra-lhe a
repousada candura infantil em espontâneos ímpetos; e a cada passo ela
vinha e interrogava com vivacidade o Silveira, na sua qualidade de
membro do _Committee_, sôbre horas, datas e mais circunstâncias e
pormenores, que a redonda ignorância do interpelado tinha que deixar
invariávelmente sem resposta. Ela reptava-o amavelmente, em graciosos
chistes e coquetonas burlas, a que servia de intérprete a complacência
cínica do marido.--Estranhava realmente não o ver inscrito em nenhum dos
números do Programa. Já não dizia, em suma, no _Passo entre as garrafas_
ou na _Luta dos travesseiros_, que requeriam predicados especiais de
agilidade e de fôrça; mas em qualquer outra coisa... por exemplo, na
_Corrida das batatas_, tam fácil... ou então no _Combate dos galos_.--Ao
desenho grotesco desta idea, tôda a patrícia figura da irlandesa
estremeceu num júbilo: e arrebatadamente, batendo as mãos:

--Ah, sim! sim! aí está... Queria vê-lo de galo... Seria tam
interessante!

Redondamente, o Silveira, entre bisonho e indignado, escusou-se. Ela
então, num procurado ar inocente e um fiosinho meigo de voz, cheio de
promessas:

--Bem, mas promete-me que vai ao menos inscrever-se no _Enfiar da
agulha_. É fino! é lindo!

E com um risinho provocador a erguer-lhe a púrpura sensual dos
lábios:--Que fôsse, que fôsse... que ela lhe procuraria a vitória.

Avizinhava-se a passagem do Equador, que seria celebrada a bordo por um
grande baile de fantasia, antecipação muito a propósito do Carnaval, que
vinha próximo, pois terça-feira gorda era já cinco dias depois da
«passagem da linha», por alturas do Rio de Janeiro. Prometia vir a ser
êste Baile o número mais brilhante do Programa das festas, e, dois dias
antes, já a população feminina de bordo quáse se não preocupava de outra
coisa. Haveria prémios, adjudicados por votação geral; e admitiam-se
duas classes de trajes de disfarce,--os improvisados a bordo e os
trazidos já entre a bagagem. De família para família, de grupo para
grupo, fantasistas, curiosas, insistentes, as interrogações cruzavam-se;
porêm, naturalmente, cada um furtava-se, guardando absoluta reserva, e
então as mais aventurosas hipóteses, as mais abstrusas e sôltas
imaginações cresciam e batiam asas, como borboletas demandando a luz, de
roda dêste fechado círculo de mistério. Boquejava-se apenas que o
Alvarez preparava um número de sensação; que Pilarita Gomez, a
desenvolta _morenucha_ que êle cortejava, figuraria, a conselho seu, num
_travesti_ algo picante; _Mrs._ Edith resistia inflexível às inquirições
dulcerosas do Silveira, que apenas conseguiu registar a renovação
freqùente das conferências dela com o cabeleireiro; e sabia-se que a
petulante d'Ellery ostentaria um primoroso traje de odalisca. Por sinal
que, como ela, uma noite, na pequenina tertúlia habitual do _bar_, se
lastimasse de que lhe faltava um adôrno a condizer, para a cabeça, logo
todo solícito e importante o Mackenna prometteu arranjar-lhe uma linda
peça a propósito, meio turbante, meio diadema, havia de ver... qualquer
coisa de abracadabrante, de sumamente artístico e grandemente
extraordinário. E o caso foi que, na manhã seguinte, êle aí vinha
instalar-se afanoso a uma das mesas do salão, munido de tesoura,
compasso, régua, esquadro e um frasco de cola, e sobraçando um volumoso
fardo; e convertia abusivamente êste liso rincão do _Social Hall_ em
oficina, logo extraíndo dessa boceta de Pandora pelintra a mais
desconcertante, a mais imprevista miuçalha, rodeando-se por um abundoso
aparato de fôlhas de lata, de cartão, de vélhos retalhos de cachemiras,
sêdas, veludos, de lantejoulas, sequins, rolos sujos de algodão e tiras
de papel doirado. E dois dias pegados levou ali assim, riscando,
talhando, cortando, ageitando, unindo, compondo prègas, chumaçando
relevos... enquanto limpava açodado o suor e arredava a melena, nos
intervalos de pausa benefica que raro lhe concedia a congeminação febril
dos dedos; e sempre espargindo uma nuvem impertinente de ciscalhos, de
trapos, de escórias fulvas, perante a admiração trocista dos passageiros
e a muda indignação do _steward_ da sala, chocado por esta suja
infracção dos regulamentos.

Por fim, naquela «quinta-feira de compadres», logo na antemanhã, o amplo
convés de bombordo sofria uma transformação completa. As cadeiras de
repouso haviam sido recolhidas aos flancos, e agora a marinhagem fazia
àquele largo recinto um emparedamento vistoso, colgando-lhe em tôrno
bandeiras e flâmulas de tôdas as nações, sujeitas de alto a baixo por
argolas e cordagens, batendo multicolores ao vento. Até aconteceu que,
por um lapso aliás fácil de explicar, dada a mudança tam recente das
instituìções portuguesas, a respectiva insígnia que aparecia desdobrada
ao contôrno drapejante do improvisado salão, era ainda a bandeira
monárquica. Não escapou êste inocente anacronismo ao Silveira, que,
radiante mas cauto, se limitou a esfregar as mãos num raivoso júbilo,
felicitando-se no íntimo por êste como que público e espontâneo
desagravo que aos seus fidalgos brios o acaso, ali assim, vingadoramente
lhe oferecia. Mas o pior foi que daí a instantes passaram tambêm dois
outros compatriotas seus,--um caixeiro da firma Brandão Gomes, de
Espinho, e um agente da «Camisaria Confiança», do Pôrto--adoradores
incondicionais do Basílio Teles e antigos revolucionários do 31 de
Janeiro, os quais, tomando por uma deliberada afronta internacional
aquela inofensiva exibição da bandeira azul e branca, logo protestaram
indignados e, de caminho passando palavra aos correligionários que iam
encontrando, breve foram todos levar exibitivamente perante o Comissário
de bordo a expressão do seu _veto_ colectivo, em termos que o
escandaloso símbolo teve de ser retirado. Enquanto a reparadora
desmontagem se fazia, aqueles dois primeiros estrénuos zeladores da
verdade histórica miravam de soslaio, trocistamente, o Silveira, com a
pupila triunfante. E êste então, como não havia a nova bandeira
rèpublicana a bordo, monogolava com tristeza:--Afinal, aí se fica o meu
pobre país sem representação!--E depois, num soberano ar de desdêm, com
um risinho perverso:--Que realmente era como estava bem... que aquilo
agora, com a rèpublica, não era nação, não era nada.

Fechado assim por essa improvisada cinta internacional o recinto, a
mesma marinhagem com uma vivaz e alegre solicitude, festoava-o em
abundância de renques de flores de papel, aplicava-lhe, a multiplicar a
iluminação, pêras eléctricas policromas. Por último, o piso encerado foi
passado a gis, para garantir a integridade corporal dos bailarinos. E
durante todo o dia pode dizer-se que nesta parte reduzida do convés se
resumiu o melhor da vida de bordo. Os que não trabalhavam, vinham ver. A
certa altura, desceu mesmo a inspeccionar amávelmente o andamento dos
preparativos, a sêcca figura esquiva do comandante. Tambêm os Wimeyer
vieram, num rápido giro, ver todo aquele arranjo, ao que êles chamavam
uma diversão _cursi_, mantendo-se altivamente alheios. Ao almôço, no
comedor, foi sensível a ausência das senhoras. E, fechados como se
mantinham nas respectivas _cabines_, uma bôa parte dos passageiros, no
vivo empenho de ultimarem a tempo os seus disfarces, resultava assim
que, por momentos, e a não ser a mancha arrogante de um ou outro
contumaz grupo _sportivo_, o dilatado _stand_ do tombadilho aparecia
deserto.

Ao anoitecer, mal a corneta deu o primeiro sinal para o jantar, logo o
comedor foi assaltado e invadido com uma grossa presteza, como até
àquela noite, em tôda a viagem, não havia memória. É que a direcção do
_Committee_ rogára aos senhores mascarados a fineza de descerem a comer,
trajando já os seus disfarces; e assim os simples _mirones_ davam-se
pressa em ir ocupar os seus postos de observação, na ânsia natural de
gozarem bem, desde o começo, a aparição picante das figuras. Daí a
minutos, os primeiros máscaras, logo acolhidos com palmas, desciam leves
os cinco envernizados degraus da escada. A seguir, outros e outros,
aquecendo de passo o ambiente do salão, que estimulado por esta ronda
bufona de côres estrídulas, de silhuetas, formas, gestos, símbolos e
brilhos imprevistos, vibrava e estralava de notas alegres, de
comentários patuscos, de aplausos, vaias, interjeições, pilhérias,
burletas e volatas de risos. E é que havia de tudo nesse desfile
bigarrado e inédito: traços ingénuos e arripios bárbaros, a trivialidade
e o inédito, a brutalidade e a elegância. Ora, eram selvagens negruscos
que vinham aos saltos, guinchando e rolando, e _boy-scouts_, zuavos,
marujos, _pierrots_, fazendeiros, _gauchos_, tangedores de gaita de
foles; ora, insulsas meninas de bôas famílias, que, ao amparo discreto
de consabidas e recatadas formas, vestiam apagadamente de _Fada_, de
_Noite_, de _Minerva_, de cigana ou ledora da _buena-dicha_.

Na mesa do Silveira, só se mascarava o Mafiori, que não acabava de
aparecer. Não aparecia tambêm, por igual, o Alvarez. A sua endiabrada
Pilarita, numa _louche_ figuração de _apache_, estava lindamente,
adorável de canalhismo galante e desinvôlta graça. _M._^{me} d'Ellery
ostentava uma riquíssima túnica oriental, tôda oiros e sêdas, a cabeça
sumia-se-lhe estrangulada no turbante birsamal do Mackenna, e vinha pelo
braço passivo e solene do seu derreado protector, de laço branco e
_frac_, tendo na lapela uma palma de esmalte verde. Tambêm vinha em
grande _toilette_, com a espalda provocadoramente nua e altos tacões
doirados, a jovem multimilionária Nora Scott, uma histérica mordida de
zelos pela irredutível esquivança do Silveira. _Mrs._ Edith foi das
últimas a descer, tôda grave e senhoril, a par com a complacência
orgulhosa do marido. Trajava um elegantíssimo _costume_ Pompadour, que
como que a aligeirava, lhe adelgaçava a redondeza helénica das formas e
lhe punha asas na figura,--e que era todo êle do mais puro bom-gôsto e
do mais escrupuloso rigor, desde a maranha luxuriante do penteado, desde
as miuditas flores e as prèguinhas leves da saia e _corset_, até às
leves _mouches_ do rosto, à fina pinturilha do leque picado de oiro, e à
ténue e espumosa renda do lenço minúsculo, amarrotado entre os
dedos.--Oh, que esplêndida!--rompeu extático, sacudido de admirativa
gula, o Silveira, mal que a viu aparecer e batendo palmas:--Bravo!
bravo! Aquilo sim!...--E com a face congestionada, num cotovelão
persuasivo ao Contreras:--Há-de ter o primeiro prémio!

Quando, por fim, uma redonda e rija morenita apareceu, com o busto
saltante envolto na bandeira brasileira, os seus compatriotas, postos
súbito em pé, aclamaram-na num brado unísono, ao tempo que de todos os
pontos da sala os aplausos estrugiam com delírio. E no atropelado
desdobramento desta sôlta feira animal, o vasto recinto perdera o seu
frio e composto aspecto habitual, na sua disciplinada ordenança um
tolerante parêntesis folião se abrira. Por entre o estrilante chocalhar
das loiças e talheres, a cada momento os comensais paravam de comer e os
moços cessavam de servir, cortados e suspensos no contágio truanesco
dêste concertante bárbaro, fustigado a espaços por frémitos de loucura.
Pouco depois, em cima, ao compasso dum _two-step_ sofrivelmente
semsaborão, _a quêu_ cabriolante dos máscaras, desfilando marcialmente,
fez o circuìto do tarraco salão de baile. Apareceu então o Mafiori, que
vinha soberbo, encadernado em mandarim. Porêm agora o grande êxito da
noite foi para Ramón Alvarez, que ideára realmente uma improvisação
feliz,--montado em andas e rodeado por uma espécie de grande roca
cilíndrica, feita em madeira leve e de cima a baixo encoberta por uma
túnica de chita roçagante, à maneira dos santos de aldeia, na sua terra.
Assim realizava um picaresco _gigantón_, que êle animava procazmente, ao
alto, com a autêntica enormidade da cabeça, prazenteira e afável
oscilando, tôda em mesuras. E nenhuma sorte de máscara ou atenuador
disfarce nesta estadeação impudente da figura. Apenas êle avivára a
sépia e nankin a dura projecção das feições, e asperisára a poder de
caio e zarcão a macieza juvenil da face, tornada assim a raíz lógica,
natural, da adusta rubefacção do cránio. Era um prodígio de bom humor
esta valente ampliação caricatural, êste autocomentário alegre à própria
disformidade.

Entretanto, de roda, à parede drapejante das bandeiras viera cingido e
compacto inscrever-se o muralhão dos curiosos. Grupos surrateiros
conseguiam vir de fóra e insinuar-se, impávidos e de pé, avivados pelos
rostitos frescos das _midinettes_ da 2.^a classe, trazidas arteiramente
pelos oficiais de bordo a gozar o espectáculo. O Silveira não teve
descanço enquanto não abordou a irlandesa, para lhe enaltecer numa
mímica eloqùente a impecável distinção da _toilette_. E ela,
infantilmente:

--_You like_?

Êle, incendido e vibrante, confirmava,--que sim,--e sentindo um
desvanecimento ingénuo em acompanhá-la, procurava fazer-se compreender,
num desbarato exultante de admirativas olhadas, galanteios, vénias e
lisonjas, que só cessaram quando o impróvido galã notou que as Wimeyer
tinham vindo plácidamente tomar, num reservado cantinho, as suas
cadeiras. Êle então desligou-se da irlandeza, e mudando de tática, forte
no seu propósito de fazer triunfar aquela deliciosa figura, digna de
fixar amorosamente as prodigiosas faculdades de realização dum Boucher
ou dum Latour, tudo era chamar para ela as atenções, encarecer-lhe a
propriedade impecável do disfarce, a beleza galante do arranjo, e onde
quer que êle visse alguma pessoa do seu trato, na disposição de
preencher a respectiva lista,--fôsse embora um quáse desconhecido,--aí
corria logo a tentar persuadi-lo, a pressioná-lo com vivacidade, a
suborná-lo pela lisonja, no implacável desígnio de fazer vingar o seu
desejo.

Grado e grado, porêm, a pressão sufocante do ar, a aglomeração, o calor,
o contágio erótico das danças, iam determinando na foliona turba um
começo de enervamento que se exteriorizava em sensíveis mostras de
enfado, em estases mórbidos de cansaço. Já os homens passavam os lenços
pelo pescoço, arejavam o nariz, enxugavam a testa; as ventarolas e os
leques andavam abundantes de mão em mão, sempre na sua palpitação
tremulante de passaritos assustados; e aos compassos convidativos da
orquestra a ronda flamante dos pares ia rareando. _M._^{me} d'Ellery
tinha calor, afogada no largo e fulvo amplexo da sua rica túnica
oriental, molestada sobretudo por essa desgraciosa bisarma que lhe
oprimia a cabeça,--uma obstrusa composição da qual, para mais, ela
notava que todos em roda mais ou menos claramente se burlavam. Porque
nesta criação infeliz o Mackenna, fiel aos seus ideais cubistas,
realizara, não o canto harmonioso de curvas que seria a condizer com o
voluptuoso coleamento e as lânguidas suavidades daquele traje magnífico
de sensualidade e de sonho, mas uma desconforme tôrre de pesadelo, tôda
em ásperas e duras linhas, em rasos planos, em projecções maciças, em
cruas e vivas oposições, em ângulos que se penetravam, em pontas que se
hostilizavam, em arestas que ofendiam a vista. Era a cabeça do Alvarez
estilizada. Um retalho de pagode primitivo incrustado num ângulo da
muralha da China. Por fim, num gesto de definitiva emancipação, a
insofrida Ellery atirou com o molesto diadema para trás do piano, despiu
a túnica, e provocadora e ardente, com a frescura roliça do busto
bailando agora sob a branca blusa transparente, como lobrigasse perto o
Alvarez,--que tambêm se desembaraçara do rodapé de chita e das andas,
ficando em mangas de camisa,--travou-lhe súbito do braço e rompeu com
êle num desenfreado _can-can_, que foi um escândalo para a porção grave
e burguesa da assistência.

As Wimeyer haviam-se retirado antes; propícia eventualidade que o
Silveira aproveitou para ir valsar com a irlandeza. Depois, como o
momento das votações se aproximava, ei-lo aí de volta na sua furiosa, na
sua amoruda galopinagem, de grupo a grupo mendigando votos, captando
adesões, forçando vontades. E o caso foi que logrou o apetecido êxito; o
primeiro prémio para os trajes já de antemão preparados foi com efeito
conferido a _Mrs._ Edith, por maioria enorme. Dos homens, alcançaram
naturalmente a primeira votação o Mafiori e o Alvarez. O prémio para o
melhor disfarce feminino, improvisado a bordo, fê-lo adjudicar a colónia
dos saxões e _yankees_, por um sufrágio esmagador, a uma inglesa
esnalgada e longa como uma chaminé de fábrica, a qual tivera a suculenta
idéa de se mascarar, figurando uma espécie de cozinha ambulante,--para o
que se deu ao trabalho infantil de semear e pendurar pródigamente,
doidamente, ao acaso, pela sua vestimenta servil, cortada em grossa
sarapilheira, uma heteroclita profusão de caçarolas, tachos, cafeteiras,
abanos, tenazes, pás, colheres, ramos de cebolas, toros de couves,
mólhos de rabanetes, nabos e cenouras.

Entretanto, o Silveira, querendo tirar partido da situação, havia
passado com _Mrs._ Edith ao _restaurant_ improvisado no convés de
estibordo, para celebrar com ela, a _champagne_, o seu triunfo. Breve
apareceu porêm o conde a cortar-lhes a efusiva comunhão dos _toasts_,
ponderando--que era tarde, tinha sono... e ela tambêm devia estar
fatigada.--Bebeu ainda uma taça de _champagne_, brindando pelo Silveira,
e, em grossos bocejos, despediu-se e partiu, amparado em pêso ao busto
airoso e leve da mulher.

Os outros comensais, de momento ali, foram tambêm passo e passo
desertando; de sorte que, em breves minutos, o Silveira surpreendia-se
quáse só e como que restando o único assistente ainda aos últimos
acordes da festa agonizante. Sem embargo, não se sentia em disposição de
descer à _cabine_. Aquecia-o uma instintiva febre de movimento; carecia
do róce fresco do ar e do embalo manso das vagas, que lhe mitigassem a
mordente excitação, derivada das múltìplas e opostas comoções da noite.
Fazendo então o giro distraído do barco e erguendo ao alto a espertinada
cabeça, fixou naturalmente o seu perdido olhar na imensidade calma do
céu e da sua eterna abóbada constelada. Liberta por agora da forte
evaporação do dia, a atmosfera alimpára e despojára-se do véu cendrado
da neblina. Apenas a diafaneidade imponderável do éter se baloiçava
entre as sombras vagas do mar e o vago luaceiro do Infinito. Eram sempre
as mesmas constelações fulgurantes, a mesma pregaría de fogo, o mesmo
brilho orgíaco, aqui semeado ao acaso por entre flócos de neve ardente,
ali afirmando aladamente no espaço o seu fulgor solitário. Contudo, era
êste um céu diferente do que êle estava habituado a ver na sua terra,
era um céu menos povoado, menos esplendente, menos loução, e que por
isso mesmo lhe parecia mais amplo, mais distante, mais solene, mais
profundo. Não tam densos e brilhantes se desparramavam aqui, e
distribuidos por outra forma, os pregos de oiro dessa incontável poalha
sideral, esparsa pelo espaço. Seguramente era êste o cósmico scenário
próprio, a divina cúpula de protecção adequada às ignoradas regiões
aonde êle se dirigia, de mudas solidões intérminas e imensas extensões
desertas.

Dentro, porêm, da relativa parcimónia e o discreto brilho dêsse caminho
dos deuses, alguns sóis se afirmavam potencialmente em fulgurações
vibrantes. Um dêles, principalmente, que bastante acima do horisonte se
erguia tremulante, faíscando, ardendo... Um grande diamante azul,
prodigioso altar tendido ao fogo entre os astros e mantido pelas vestais
incoercíveis da Via Láctea,--suspenso pomo de luz viva, como que prestes
a desprender-se da abóbada celeste, atraído pela noite insondável do mar
e ancioso por descer a traspassá-la com o dardo deslumbrante da sua
claridade, para decifrar-lhe o mistério e desvendar-lhe os segredos.




IV


Com a atenção dispersa e a alma prendida nesta viva e inédita sucessão
de impressões, dos últimos dias, o Silveira esquecera fácilmente os seus
humildes vizinhos de bordo, e nunca mais a sua grata sensibilidade
estremecera no interrogativo anseio de conhecer bem na essência, de
palpar mais de perto, os sentimentos, opiniões, tristezas, projectos,
angústias, condições e desígnios daquela corda fruste dos seus
presumíveis correligionários, que ali assim seguiam, mesmo a seu lado,
promíscuamente esmagados, baralhados, baldeados, delidos no empilhamento
sórdido da desgraça. Agora, porêm, o vago amadornamento em que a
temperatura tropical como que ensopava as vontades, e as tranqùilas
solicitações que à batida brava dos vários jogos e diversões
naturalmente se seguiam, déram azo a que na alma dolente do Silveira a
imagem saùdosa da Pátria esfumadamente esvoaçasse, e, junto, a sacudisse
o comovido cuidado pela sorte daqueles tantos ignorados irmãos seus,
atirados, sabia Deus por que duros e encontrados azares, ao traiçoeiro
baloiço da Fortuna.

Por isso, numa linda manhã serena e cálida, logo a seguir ao _lunch_,
ei-lo que transpõe a portinhola gradeada do termo do seu corredor, e se
aventura curioso pela suja e triste coberta da prôa.--O mesmo mesquinho
e sórdido espectáculo de sempre. No seu passivo abandôno às ignotas
flutuações do destino, aquela caravana compacta de obscuros ilotas da
Dôr ia e vinha, anudava-se e distribuía-se em formações de acaso, era
como um grosso formigueiro humano, incansávelmente montando e sumindo-se
pelo negro óculo que dava ao porão, cavado a um canto, fundo e
insondável como um abismo.--Porêm a inesperada aparição do Silveira
causou ali geral estranheza. A descida dêste importante, dêste flamante
e feliz desconhecido, té as patentes e repulsivas angústias daquela
densa colónia eventual do infortúnio, fazia que as suas desprotegidas
camadas, dando-se um instintivo alarme, se repregassem,--uns por uma
vaga e hostil desconfiança, outros como que pelo pejo da própria
miséria. E o Silveira ia passando, ia seguindo compassadamente, manso e
afável, nos forçados torcicólos a que o obrigava o atravancamento
pelintra do recinto; ia cruzando os grupos, com o ouvido colhendo,
atento, os cortados trechos do diálogo, com o olhar mirando fito o
desenho e o arranjo das figuras; e, por sentir-se ali o alvo admirativo
das atenções, no íntimo contente. Até que, por fim, se acercou
familiarmente dum reduzido círculo de rudes gentes do campo, quáse todos
de pés nus, que se lhe afiguraram portugueses, pela linha, pelos trajes,
pela expressão, pelos gestos tacanhos, pelo olhar ingénuo. Eram
patrícios seus, com efeito. E êle então, protector, insinuante:--Que era
tambêm português e ia para Buenos-Aires. Muito estimava conhecê-los... E
àqueles que seguiam por igual para a Argentina, muito prazer teria em
vê-los e servi-los por lá...

--_Agardecido_, muito _agardecido_, senhor!--balbuciou, de lábios
confusos, um meio ancião vestido de saragoça, rapado e calvo,
descobrindo-se.

Dulcerosamente o Silveira completou:

--Em fazer-lhes todo o bem que possa.

--Ai, que palavras de anjo! que rico senhor!--exclamou, com a voz
molhada, uma trigueira e rude quarentona, de saia de fólhos, cabeção de
morim branco e uns pequeninos olhos doces, perdidos na aspereza da face
enrugada e curtida. E num cotovelão entusiasta ao companheiro:--Ouviste?

Êste arrastou meladamente, dobrado numa mesura e parando de rilhar uma
banana:

--Não faltará ocasião.

Procurando gradualmente insinuar-se, o Silveira tornou:

--Vêem então procurar fortuna?

--Se aquilo por lá está tam mau... senhor!

--Então?--o Silveira logo comentou, com um risinho perverso:--É o que
vocês ganharam com a rèpública.

--Eu cá nisso, senhor, não sei falar...

--Êle a coisa já lá vinha detrás...--aqui se permitiu arteiro observar,
adiantando-se um rapagão amplo e forte, de calça de bombasina, camisola
e grande chapéu cinzento, enquanto raspava um fósforo no quadril, para
acender o cachimbo.

O Silveira teve uma azêda, imperceptível contracção dos labios.

--Parece-te?

--Sim, que isto é com'o outro que diz...--retrucou, sempre no mesmo ar
intencional e altivo, o marmanjão.--Com rei ou com roque, nós cá, os
pobres, ficamos sempre com'o o carrapato na lama.

E aspirava voluptuosamente as primeiras fumaças do tabaco ardendo.

O Silveira, despeitado, manteve uns segundos de arreliativo silêncio;
mas logo, dominando-se:

--Bem! pois, repito, naquilo em que eu os possa servir... Interessam-me
todos muito. Já vêem que vim de propósito para conhecê-los.--E num
refinamento interesseiro da sua amável solicitude:--Qual de vocemecês é
o que canta tam bem o fado?

Houve de roda uma vibração unânime de envaidecimento alegre.

--O guitarrista? Ah, isso há-de ser ali assim o Matias _gingão_.

--Matias! ó Matias!

--_Adrega_ aqui, demónio!

Dirigiam-se a um pobre rapaz, delgado, pequenino e doente, que junto dum
outro grupo, de pernas cruzadas, no chão, estava vendo jogar as cartas;
e que ao ouvir que chamavam pelo seu nome com tam empenhada intimativa,
rolou moroso os olhos, primeiro, depois ergueu-se com dificuldade,
indeciso, e veio por fim avançando, a cabeça nua, arremangado, descalço,
derreado e inerte, preguiçosamente.

Acolheu-o o Silveira numa efusiva expansão de agrado, ameigando a voz,
erguendo os braços.

--Ora viva lá! meu caro Matias.

--Em bem o diga e bem lhe vá tambêm, senhor,--murmurou com humildade o
recêm-vindo.

--Algarvio?

--De Fornos de Algodres, fidalgo.

--E p'ra onde se dirige vocemecê? Argentina ou Brasil?

--Com sua licença, vou-me até à Argentina, senhor.

--Bem, muito bem! Palpita-me que ainda lá havemos de ser dois bons
amigos.--E ante o olhar oblíquo e a bôca de espanto do Matias,
batendo-lhe afável no ombro:--Eu queria felicitá-lo pela sua rica voz,
por aquelas tam lindas trovas... cantadas realmente com uma intenção,
com uma expressão, com um mimo e uma fé que querem dizer muito...

--Nada, senhor.

--Ora! não me diga você que as não escolhe, que não exprime nelas o seu
verdadeiro, o seu íntimo sentir...

Mas simplóriamente o Matias, de braços pendentes, como um môno,
encolhendo os ombros:

--Eu não sinto coisa nenhuma.

--Então, aquela _piada_ ao Afonso Costa, na outra noite?

--Sei lá! Aquilo é uma moda que anda lá na minha terra. Que seja essa ou
que seja outra, que minga faz?

O Silveira estremeceu e os olhos chisparam-lhe furiosos, num repelão de
contrariedade. Os demais sorriam.

--O quê!? pois, verdade, você não liga maior sentido aos versos? não é
contrário à rèpública?

--Ó fidalgo, é que a minha pobre guitarra está um chanfalho vélho, e eu
_mesmamente_ de políticas nada entendo...--E, estimulado pela olhada
atrevida que o homem do cachimbo lhe mandava, o Matias acentuou com
firmeza:--E é como está certo, sim! Que essa gente graúda, com o devido
respeito, faz tam pouco caso de nós, que ainda o menos que nós podemos
fazer é pagar-lhe na mesma moeda.

Desconcertado, nervoso, o Silveira mendigava de roda, com o olhar
imperioso e intranqùilo, uma simpatia, uma adesão, um qualquer
desmentido a estas descabidas e arreliantes afirmações, tam longe da sua
espectativa como fóra do seu desejo; e como fixasse com particular
insistência um aldeão alto, espadaúdo e sêco, logo êste, singelamente, o
destroçado chapéu de palha girando na concha das mãos calosas:

--Eu cá, meu senhor, a minha política é ver se alcanço a juntar uns
cobres com que possa depois viver tranqùilo no meu torrãosinho, mal'a
mulher e os filhos. E já que me não fui à África, malhar nos pretos,
resolvi deitar té ao Brasil, em cata da famosa árvore das patacas. O que
a sorte quiser...

--Quere então dizer que tambêm você se conforma com essa usurpação tôrpe
da rèpública?

--Se ela está, já agora deixá-la estar.

No íntimo vèxado por mais êste desengano, renitia entretanto o Silveira
na sua raivosa inquirição.--E você?... E tu?... E tu que dizes?--Todos
se fechavam porêm no seu invariável obstinamento humilde; e foi ainda o
mocetão do cachimbo quem pôs termo ao inquérito, sentenciando
implicativamente:

--Está muito bem! O que é que se ganha agora com mudanças?

E atirava, arrogante, o chapéu para a nuca, as narinas e os lábios
fumarando num regalo.

--Súcia de palermas!--não se pôde o Silveira conter que não exclamasse,
na insofrida explosão do seu despeito.--Por isso haveis de ser sempre os
eternamente explorados.--Deu de roda umas passadas curtas, arrepelou o
bigode, coçou a nuca; e depois, conciliadoramente:--Mas, em suma, não
vale zangar... Sou aqui vosso vizinho, e amigo, repito, apesar de
tudo.--Deu dinheiro ao Matias para uma guitarra nova; depois, num largo
gesto altaneiro, ao grupo:--Bem! adeus! Ainda vos hei-de fazer abrir os
olhos.

E desandou bruscamente, perante a indiferença burlona da assistência.

Daí a minutos, em cima, e amarfanhado numa das espêssas poltronas do
_Social Hall_, ruminava em desalento êste propagandista infeliz o
imprevisto e burlesco insucesso do seu inquérito, quando se lhe
dirigiram Euclides Pereira e o conde de Horrowby, que precisamente o
andavam buscando. Tinha que descer com êles à _peluqueria_, a escolherem
as prendas para os prémios ganhos nos diferentes jogos, e cuja
distribuìção solene estava marcada para antes do grande Concêrto final,
naquela noite. Era uma diversão a propósito, à quebrantada pressão do
seu desânimo. Não se fez rogar; e aí descem os três a internar-se na
_cabine_ inimaginável do barbeiro de bordo,--um cubículo acanhado e
abafadiço, batido àquela hora ardente pelo sol, com duas exíguas
lucarnas apenas sôbre o mar, e que alêm do mobiliário e utensílios
indispensáveis ao completo exercício da profissão, era todo riscado em
prateleiras, e oprimido, atravancado, estrangulado, povoado de lés a
lés, tomado de alto a baixo, por uma aluvião inverosímil de tôda a sorte
de pequenos artigos para negócio, desde as jóias, as mil luxuosas
bugigangas de perfumaria e _toilette_, até às peças mais comuns de
vestuário e adôrno, e um perfeito arsenal de brinquedos infantís. Havia
espaço para tudo, menos para o ar, neste pequeno recinto aplastador que
realizava um paradoxal desmentido à impenetrabilidade da matéria. Uma
temperatura de fogo e um arranjo de _casa de prego_.

A bonachona espôsa do conde chegou ao mesmo tempo. E logo o
mestre-barbeiro,--um francês ruivo e claro como um cacho da
Champagne,--a saltitar vivo e ligeiro em tôrno dela, pedindo indicações,
apontando, mostrando, trazendo coisas. A cada nova oferta, que o
meliante sabia alertemente encarecer, a bondadosa e imperturbável
senhora, sossegadamente, examinava rejeitava ou escolhia, e solicitava
gentilmente o parecer dos seus três colegas, que se limitavam a baixar
num assentimento cortês a cabeça. Então, logo o esperto _figaro_
apartava contente a mercadoria, anotava qualquer coisa no seu _carnet_ e
passava a impingir outro artigo. E assim monótona, infindável, secante
se foi prolongando a tarefa, êste duelo picante de aplicação ferido
entre a esperta indústria do barbeiro e a solicitude impávida da
condessa, insensível ao calor, refractária à impaciência. Não assim o
Silveira, que enjaulado naquela inacção e enervado pela temperatura
asfixiante, mudava de posição a cada momento, tressuava, sentia
tonturas, e ia buscar a incidência mais favorável do ventilador ou
abanava-se com duas ventarolas ao mesmo tempo, increpando-se íntimamente
por ter vindo. E neste abrasador suplício passou uma hora que lhe
pareceu um século.

Por fim, à noite, realizou-se no _Social Hall_ a solene distribuìção dos
prémios, rodeada dum cerimonial quáse diria litúrgico, atenta a
dignidade, a seriedade, a compostura, a _tenue_ escrupulosa e as
compenetradas atitudes por todos ali invariávelmente mantidas, desde as
primeiras às ultimas figuras. O mostruário faíscante das prendas
pompeava as suas gulosas tentações esparso em abundância sôbre uma
grande mesa, colgada de veludo-cereja, no tôpo do salão, sôbre um
estrado; à roda, exibia-se o grupo esfíngico dos membros do _Committee_,
de _frac_ e laço branco, e a condessa de Horrowby, em grande _toilette_,
sentados todos gravemente. Posto em pé o conde de Horrowby e feito um
grande silêncio, êle então, arqueando numa atenta _reverence_ o peitilho
reluzente, mordiscou por entre dentes _for the select assembly_ um
pequeno _speech_, quáse inaudível,--dobrado e pregado sempre no mesmo
ademân cortês, inexpressivo e imóvel, os braços longos e hirtos, de
punhos sôbre a mesa. A seguir, sentou-se, e simultâneamente, como que
impelidos pela mesma mola, erguiam-se a condessa e o capitão Stayton;
passando êste a chamar em voz alta os premiados, cada um dos quais, em
traje de cerimonia tambem, avançava, franqueava em respeito o
majestático recinto do estrado, colhia das palmoiras enormes da condessa
a bugiaria que lhe fôra destinada, e retirava mudo e feliz, num vago
atordoamento de prazer, ante as palmas convencionais e os _hurrahs_
complacentes da assistência.

Seguiu-se o concêrto, cujo programa houvera, em bôa verdade, um certo
embaraço para organizar. Não abundavam a bordo os _virtuosi_ nem os
amadores, tornando-se assim deveras árduo o problema de reùnir e
combinar alguns números mais, alêm do chirroteio mercenário da
orquestra. Prestou o Silveira na apertada emergência um assinalado
serviço, pois conseguiu o concurso difícil das meninas Wimeyer, que
condescenderam graciosamente em exibir-se, por uma atenção muito
especial para com êle, executando Dolores ao violino uma melodia de
Schumann, acompanhada ao piano pela irmã. Por isso lhes couberam a bem
dizer as honras da noite; assim como ao Alvarez, que recitou uma
desgrenhada elegia sentimental,--_Corações famintos_,--composta,
informava o Programa, expressamente para aquela noite; e tambêm a um
vélho inglês, todo branco, de olhar menineiro e afável, que se
distinguiu improvisando um humorístico monólogo todo obrigado a
contracções faciais, trocadilhos ingénuos e risíveis infantilidades, com
que os seus conacionais gozaram imensamente.

O _God save the King_, pela orquestra, e por tôda a sala, de pé,
escutado religiosamente, pôs o termo de rigor a esta escovada tertúlia
da noite.

E foi a última diversão do Programa de festas. No dia seguinte ia
começar o progressivo êxodo dos passageiros, atingida como seria então a
costa das primeiras terras do Brasil. Foi, primeiro, Pernambuco,--a
lucilante Veneza tropical,--luminosa e tranqùila emergindo, como uma
evocação de balada, da brava fúria impotente das ondas, incansavelmente
erguidas, roladas e desfeitas contra a ruiva muralha irredutível dos
seus recifes; e prolongada depois suavemente, para léste, por uma
fresca, macia e tenuíssima restinga de terra que pelo mar fóra se
estirava indefinidamente em ponta, como uma imensa piroga verde,
empenachada pela umbela grácil das palmeiras, salpicadas de chacaritas
brancas. Foi, trinta horas depois, a esbelta Baía,--o vélho empório
tradicional do tempo das lusas descobertas,--reclinada molemente sôbre
uma luxuriante alfombra de mato e flores, esmagada de tôrres, pletórica
de igrejas, e àquela hora matinal batida e incendiada em cheio pela
carícia gloriosa do sol nascente. Tôda a clara cidade assim palpitava,
fulgurava, ardia numa crepitação paroxísmica de côr que emprestava a
êsse quente deslumbramento panorâmico o mais antitético relêvo, na crua
passagem do verde espêsso e sombrio dos ásperos taludes, a seus pés
tendidos, para a policromía bárbara dos trajes da multidão formigando ao
longo dos cais e para as tintas berrantes saltando, ladeira acima, no
anfiteatro loução da casaria.

Dois dias depois,--justo em terça-feira gorda,--já devia o _Almeria_
lançar ferro na incomparável baía do Guanabara. Era um dos grandes
acontecimentos da viagem. Reganhára agora uma inquiritiva animação a
vida de bordo, onde todos mais ou menos expressivamente manifestam o seu
interêsse, todos aguardavam com vivacidade crescente o recorte feérico e
deslumbrante, na linha molhada do horizonte, dessa esplendorosa, dessa
surpreendente e colossal orquestração de luz, de côr, de exuberância e
de relêvo, que era Rio de Janeiro, a maravilha do mundo. Os nacionais
tinham um legítimo sentimento de vaidade, os estranhos nutriam uma não
menos legítima sofreguidão do inédito.

Entre os mais interessados e inquietos, era de notar a vibrante
impaciência do joven Mackenna. Porêm certo que não era própriamente a
antecipada visionação das pinturescas maravilhas do Rio que num alvorôço
idealista lhe sacudia os nervos de artista; uma outra oculta
determinante havia, mais prosaica, mais animal, a acender-lhe no olhar e
a fazer-lhe correr nos gestos esta sôfrega palpitação de todo o seu ser,
irrequieto e ávido. É que precisamente no Rio de Janeiro a formosa e
esquiva _M._^{me} d'Ellery ia desembarcar; iam os dois ali separar-se,
talvez para sempre, neste limite fatal posto ao seu ameno convívio; e
assim êle tinha forçosamente que precipitar a solução ao seu assédio
galante, nesse apertado prazo de dois dias. Com uma assiduidade, uma
persistência incansável, com um calor por vezes audaz, nos últimos
tempos o jactancioso galã fôra apertando gradualmente o seu amavioso
cêrco, e segundo as mais ostensivas indicações, com o melhor êxito;
porêm não obtivera ainda a rendição definitiva. Ao mesmo tempo,
acontecia que o seu feitio demonstrativo e pomposo fizera com que êste
singelo episódio de cortesanía banal désse bastante nas vistas. Havia um
pequeno grupo de besbelhoteiros trocistas que o espiavam; e os mais
íntimos a cada momento lhe disparavam chistes, o estimulavam com
depreciativas alusões, celebravam antecipadamente o seu fracasso,
assediavam-no de burlas molestas e sátiras importunas. Não havia pois um
minuto a perder. Na prova, ruidosa e fulminante, do seu triunfo estavam
igualmente empenhados a linha do seu amor-próprio e o fogo do seu
desejo.

Foi o motivo pelo qual, na noite dêste domingo, o Mackenna impôs um
implacável bloqueio sentimental aos domínios afectivos da francesa.
Havia no convés de bombordo o costumado baile semanal; e o meliante tôda
a noite dançou com ela, e nos intervalos levava-a ao _bar_, a beber, e
insinuava-lhe coisas cálidas e perversas, despedia-lhe frases
imperativas, aventurava proposições equívocas, a tudo o que a ladina
respondia com sorrisos que eram incitamentos, com evasivas que eram
provocações, com abandonos que eram capitulações, com estremecimentos
que eram promessas. Mas nada de lhe conceder a aquiescência nítida,
formal, a uma entrevista. Exasperado então, mas sempre optimista e
fátuo, o Mackenna deliberou recorrer ao assalto. Seria o supremo recurso
salvador. E filosofava convicto:--Serem tomadas à viva fôrça era, com
efeito, o melhor prazer para estas taboletas avariadas duma menos que
problemática virtude. Era o que aquela bêbeda queria... Era o mais
seguro caminho. Mas tomá-la de surprêsa, com êxito, como?... Naquele
meio acanhado e bulhento, sem a tácita anuência dela, era difícil. Só se
fôsse de manhã... O derrancado Sganarello levantava-se tarde; os seus
pêrros movimentos de tabético e a indolência filha do tédio retinham-no
de ordinário na _cabine_, até muito por êsse dia dentro; por êste lado
estava seguro. Se êle então, nessa propícia hora matutina, pudésse
surpreender Helena! mas surpreendê-la bem de-veras, apanhá-la de
improviso, em condições morais e materiais de não poder oferecer-lhe
maior resistência...--Inflamado, enardecido, espremia a inventiva,
planizava, rebuscava. E súbito, batendo na testa, com um relâmpago
genial na noite ardente dos grandes olhos negros:--Ah, aí está! No
banho...--Passou imediatamente ao _deck_ da sua imaginada vítima;
abordou com discreção o _steward_, cuja cumplicidade concluiu por obter
a trôco duma bôa gorgeta; e recolhendo depois à _cabine_, todo o resto
da noite levou embalado, aquecido na regalada antevisão do saboroso
triunfo que para êle seguramente ia marcar o delicioso alvorecer do dia
seguinte.

Na primeira manhã ei-lo logo a pé, lésto e pimpante, procedendo às
habituais abluções, fazendo uma _toilette_ minuciosa. Depois,
mansamente, deixou a _cabine_ e escoou-se para o corredor, tendo vestido
um garrido _pijama_ todo em borlas, alamares e viézes de sêda, a cabeça
nua e a perfumada melena ondeando. Sem perda de tempo estava em cima, no
_deck_ de Helena, e aventurava-se afoito ao recinto dos banhos
destinados ás senhoras. Aí trocou um breve e furtivo olhar com o
_steward_, que lhe fez um sinal afirmativo de cabeça; avançou ágil uns
passos, relanceou em tôrno os olhos cautos, e tendo-se certificado de
que ninguêm passava cêrca, arpoou o botão duma determinada porta com os
dedos trémulos, entreabriu-a... e ia entrar de salto, quando de dentro
estrugiu um grito de pavor, um argênteo e agudo grito feminino, ao passo
que de dentro tambêm, acudia súbita e inesperadamente, ante a mirada
atónita do Mackenna, o sobrecenho grave e a mão rosada do Mafiori, a
cerrar a porta.

Foi a bordo um pequenino escândalo. Apesar da sua relativa presteza e
moderado ruído, esta scena picante não passou de todo despercebida. Ao
partir para a sua _donjuanêsca_ investida, não se deu conta o Mackenna
de que dois dos seus alegres espias, atraídos por não sei que
divinatório instinto, o foram seguindo. E êstes, naturalmente, da
esquina do exíguo corredor, mal assomando as cabeças, haviam saboreado o
burlesco fracasso da desastrada aventura; ao tempo que, simultâneamente,
das portas dos banhos contíguos alguns interrogativos bustos surdiam
tambêm, ao aflitivo alarme daquele agudo brado feminino. Nem uns nem
outros alcançaram contudo divisar a ponderada silhueta do Mafiori,
dentro da _cabine_,--o que teria sido para a sua curiosidade doentia o
cúmulo do regalo. Mas haviam visto o bastante para a nítida compreensão
do sucedido. De sorte que, daí a minutos, já a notícia do truanesco
sucesso havia feito o giro alegre de bordo, com fulminante rapidez
solicitada ávidamente, de grupo para grupo, e logo passada e acolhida em
acres segredinhos, vivas chamadas e perversas reticências. E de bôca em
bôca, êste singelo episódio ia tomando vulto, agrandava, complicava-se;
por último, já afiançavam a vingadora intervenção do marido, falava-se
em vias de facto. Daqui, uma notoriedade bem pouco invejável para o
desabusado Mackenna, que arrastava agora pelos recantos mais escusos a
sua vaidade amarfanhada, como um sátiro batido, e já não sabia por fim
onde meter-se, certo como era que por tôda a parte um malicioso
interêsse acolhia a sua aparição, logo farto sublinhada de bisbisoteios
de risos, facécias e burletas. As mulheres olhavam-no com piedade
indulgente, os homens com humilhante mordacidade, não isenta de inveja.
E agora a leve e adoidada _Pilarita_, mais do que ninguêm intrigada e
impaciente, querendo à fina fôrça saber _lo que pasara_, batia os
pésitos e golpeava com os punhos a pequena mesa onde abancava o Alvarez,
o qual se mantinha impenetrável, enquanto zombeteiro e veloz anotava o
episódio nos seus inseparáveis linguados, desorbitado em trejeitos
loucos.

Nesta divertida manhã, à hora do almôço, nem _M._^{me} d'Ellery baixou
ao comedor, nem o Mackenna. Entretanto à mesa dêste, o picaresco assalto
matinal foi o têma obrigado da conversa, apreciado com jocosa vivacidade
por todos, à excepção do Mafiori, que se manteve mudo, bonachão e
plácido como nunca, nos intervalos de comer fazendo bolinhas de pão e
mirando desvanecido as unhas.

Pouco tempo depois, em cima, e de pé contra um ângulo da amurada,
reùniam-se em íntimo grupo o Silveira e o Contreras, com o tenente
Euclides e mais dois amigos. Aí veio naturalmente à balha o
caso-Mackenna.

--_Picarón!_--comentou ruidosamente o Contreras, desmanchado em grossas
gargalhadas.

O brasileirito, vendo o magno acontecimento pelo seu cândido prisma de
noivo, fulminava-o com sincera indignação, taxando de «imperdoável
desafôro» um desacato assim, àquela hora do dia.

--Eu acho imensa graça... É cá dos meus!--acudiu, tolerante, o Silveira,
esfregando as mãos de contente.

O conde Améglio, que chegára justo ao tempo de recolher as homílias
ingénuas do brasileiro, rugiu então ameaçadoramente.

--Havia de ser comigo.

Todos se voltaram, a encará-lo com fixidez espectante. E êle, num
sobrecênho de arrogante desdêm:

--Conheço de sobra os processos e os ardís dêsses pulhastras.

--Ó conde...--murmurou baixinho o Contreras, mirando cauteloso de roda e
puxando-lhe do braço.

Améglio porêm, de olhar duro, alteando a voz, minaz e insensível ao
aviso:

--Mas conheço-lhes tambêm a grande cobardia essencial. Sei que êsses
bandalhões não são fortes senão diante de saias.

--Ah, sim?...--interveio o Silveira, picado de interêsse,
adiantando-se.--Ó conde, amigo conde, se não é indiscreção, conte-nos
lá...

--Bem simples! Tenho mulher, sabem... Pois nunca hesitei um momento em
lavar com sangue, no campo da honra, tentativas de ultraje semelhantes.

Era agora o Contreras que pávidamente, apurando o ouvido, se acercava;
ao passo que o Silveira, positivamente desconcertado por esta súbita
revelação, no conde, de inimaginados brios, inquiria, em dúvida:

--Algum duelo?

--Cinco. Nada menos de cinco.

--De morte?

--Não! nunca chegamos a tanto...--aclarou o conde com moderada
importância; e num assômo quixotesco, arredando as bandas do jaquetão e
enfiando os polegares nos sovacos:--Mas a todos tive a sorte de aplicar
o merecido castigo.

O tenente Euclides voltou-se discretamente, a dissimular um risinho
incrédulo. O Contreras afastou-se, manso e humilde, coçando compenetrado
a cabeça. De sua banda, o Silveira rejubilava. Êle desconhecia o conde
neste seu intempestivo disfarce cavalheiresco e brigão; aquelas teatrais
bravatas de espadachim pareciam-lhe uma contrafacção absurda, não as
tomava a sério, não cria nelas.--Minotauro travestido de Othelo, podia
lá ser!--E contudo a pundonorosa explosão do conde estimulava-o. Ante a
ameaça cocegante de perigo, um lume de reacção viril lhe afogueou o
rosto ardente, e o seu carácter amorudo e ribaldo espertava, vibrava de
belicosos ímpetos, latía de energias novas.--Agora sim! é que êle ia
afervorar nos seus pérfidos galanteios junto da irlandesa. Até à
provocação! até ao escândalo!--A ver se conseguia fornecer ao marido o
pretexto para mais um lance de honra que lhe permitisse, porêm desta vez
com sorte adversa, contar a meia dúzia.

A chegada ao Rio de Janeiro realizou-se infelizmente de noite. Um pouco
de marejada e o vento contrário haviam ralentado a marcha do _Almeria_,
que assim, quando lançou ferro, da formosíssima capital brasileira
apenas deixava entrever vagas formas de relêvo, manchando, amplas e
azúis, a imensa téla diáfana da sua claridade deslumbrante. Muita gente
desembarcava aqui; de sorte que, já horas antes, eram algo de
inabordável as imediações do portaló, onde se acotovelavam e prensavam
duramente, numa gerarquia bárbara, as famílias impacientes por chegar; e
onde, tambêm, sôbre improvisadas alfombras de lona, se amontoavam, num
grosso empilhamento inverosímil, fardos, malas, caixotes e baús de tôda
a espécie, mantas, chapéus, paráguas, papagaios, cachorros, saguís,
cêstos de flores e cabazes com fruta. Por tôda a parte havia câmbios
cerimoniosos de cartões de visita, ou efusivos apertos de mão, amáveis
oferecimentos, beijos, abraços, risos, tristezas, miradas saùdosas,
lágrimas furtivas. Mas aos felizes que tocavam então o termo da viagem,
havia que agregar ainda os que se propunham desembarcar como simples
turistas, para verem alguma coisa, para gozarem, movendo-se um pouco,
estas quantas horas de paragem benéfica do vapor ali; e sobretudo,
sentindo-se dominados pela ardente baforada de loucura que lhes vinha de
terra, para irem ali passar uma bôa noite _de garufa_.

Apesar de bastante instado para baixar tambêm, o Silveira resolveu
ficar. O tenente Euclides oferecera-se amavelmente a ser-lhe companhia e
guia na cidade, mas por aquela noite sómente;--êle bem devia
compreender,--a noiva esperava-o com ansiedade, e tinha que seguir no
primeiro trem para S. Paulo, logo na manhã seguinte. Por igual os
Wymeyer, tímidamente sondados, redarguiram, com mal contido desdêm, «que
não desciam... que para quem, como êles, vinha da Europa, não valia a
pena». Para mais, a colónia inglesa de bordo, ponderando muito
sensatamente o horror de bérrata, confusão e desordem que devia ser,
para um recêm-chegado, aquela noite de Entrudo, no Rio, resolvera, em
vez de desembarcar, fretar antes um vaporsito onde passasse
despreocupada e íntimamente, ela só, algumas horas, bordejando a baía,
fazendo o suave e demorado contôrno daquela fantástica decoração,
vogando plácidamente ao voluptuoso embalo daquele mar de sonho. Era uma
idéa deliciosa. _Miss_ Nora Scott convidára o Silveira para a
encantadora excursão. Os Améglio iam tambêm.--Que mais queria êle?...
Para ver o Rio tinha o dia seguinte.--Resolveu, pois, ficar; e, depois
de jantar, sem fazer maior caso da estrepitosa festa carnavalesca que a
criadagem de bordo organizára na ponte da 2.^a classe, tomou ao portaló
e desceu ligeiro ao vaporsito, cuja silhueta coqueta se desenhava em
baixo, convidativa e luzente, no regaço manso das águas trepidando,
fumarando, bailando alegremente. Daí a minutos, punha-se em marcha, e
sobre o seu minúsculo convés, escassamente alumiado, foi difícil nos
primeiros momentos a identificação das figuras. A infeliz Nora Scott foi
a primeira a fazer-se reconhecer pelo Silveira, abordando-o e
abandonando-se-lhe com carinhos, incendida como ela vinha nos seus
propósitos firmes de seducção, provocante, amorável, tôda tules e
rendas. Porêm, ao primeiro pretexto decente, o Silveira afastou-se; e
pronto aí estava êle já ao lado da sua apetecida irlandesa, trepados,
muito amigos e compadres, os dois à mesma clara-bóia que dava luz às
câmaras interiores, à falta de mais cómodo assento. O conde mantinha-se
longe e a velatura crepuscular do ambiente era o mais discreto cúmplice,
agora, a esta doce e inefável aproximação, sem testemunhas e sem
peias.--O ar estava tépido, tranqùilo e na sua morna quietação o crespo
afago da brisa passava como a carícia dum leque de plumas. De roda, pelo
caprichoso e largo desdobramento da cidade, as avenidas e os cais da
beira-mar, iluminados profusamente, eram um colar faíscante de pedraria
e oiro, riscavam rútilas e esplendorosas curvas. E não tinha fim, não
tinha limite esta invasão delirante da claridade. As suas imensas linhas
de fogo sinuosavam, penetravam-se, contrapunham-se, prolongavam-se,
cortavam-se, profusas, ondeantes, e por fim seguiam sôltamente ao largo,
pontilhando a vaga opacidade da tréva, densas, vivas e espertas sempre,
embora grado a grado amortecidas e apequenando, na distância. Se o vapor
se aproximava da terra, junto com os jorros da luz branca, que davam uma
nítida visão fragmentária das coisas, vinha então o grosso éco da
foliona febre da multidão, em lufadas alucinantes.--_Mrs._ Edith e o
Silveira seguiam muito amigos e unidos, sentados sempre a par,--e
isolados no seu mútuo embevecimento, alheios ao tempo e ao logar, a
favor da parcimoniosa luz postos a seguro de vistas importunas,--gozavam
juntos, mudamente, a infinita delícia daquela hora incomparável,
admiravam enleados, pela borda sinuosa dos cais, aquela parada inflamada
e ardente, essa corda, êsse rosário interminável de sóis, mais rubros,
mais claros e mais firmes que os sóis do alto... esplendente barra de
oiro cravada no dôrso glauco do mar por alfinetes de prata, aguada
mágica de luz esparsa, no insondável mistério da noite subindo e
indefinidamente alastrando, diluindo-se, esbatendo-se, perdendo-se, a
dançar anamórfica pelo espaço.

A certa altura da noite começaram as libações. O estalar das primeiras
rôlhas de cerveja e de _champagne_ foi o apetecido sinal para o fácil
repúdio das fórmulas coercivas da etiqueta. Gradualmente agora iam sendo
postas de banda as peias, as convenções banais da cortesia, para
deixarem um pouco de campo ao exercício livre do instinto. Muitas das
senhoras então soltavam os _voiles_ ou deslaçavam as blusas, afogueadas;
os homens arremangavam-se. Num progressivo calor, e numa contagiosa e
audaz alacridade, dentro de cada grupo os movimentos, os gestos
abastardavam-se, e subia o diapasão delirante das saùdações e dos
_hurrahs_. Veio mais tarde o momento em que, por uma adaptação
condizente ao epicúreo abandôno desta hora libertina, alguns deixavam-se
resvalar das suas _cadeiras_ e tamboretes para as tábuas rasas do
convés, onde se quedavam molemente estirados, numa beatitude inerte, a
cabeça pesada oscilando, o dorso contra a amurada. O Conde Améglio,
esquecido da mulher e dando ao démo os seus brios postiços, divagava de
grupo para grupo, abundante e palreiro, feliz, o olhar empanado e a taça
vazia na ponta dos braços froixos, cambaleando. Havia uma única nota de
excepção, um absurdo protesto passional, em todo este côro vibrante de
alegria; era a longa figura trági-cómica da desgrenhada Nora, hirta e de
pé, amparada ao mastro de pôpa, mirando com decisão o mar, num pendor
teatral ao suicídio... Ao passo que não muito longe, o Silveira e a
irlandesa, cada vez mais cingidos, trocavam, amorosos, as taças, afim de
penetrarem-se mútuamente os segredos, e êle, não podendo, em linguagem
compreensível para a sua amada, expressar tôda a veemência do fogo que
lhe abrasava a alma, substituia com vantagem o calor sugestivo da frase
pela eloqùência muda dos contactos.


Na manhã seguinte, sim, deu-se pressa o Silveira em demandar a terra. E
ao avançar, curioso, os primeiros passos pelo liso empedrado do cais
Pharoux, sentia-se bem, o coração dilatava-se-lhe, estimulado e contente
ao reconhecer-se num ambiente amigo. Tudo ali, com efeito, lhe avivava
impressões flagrantes, lhe evocava de Portugal a lembrança próxima e
querida, tudo,--desde a analogia cantante da linguagem aos traços e
ademanes conhecidos das figuras, desde o tipo sóbrio e maciço das
construções à brita miúda e ao desenho do mosaico dos passeios. Tomou um
automóvel e mandou bater ao acaso, num giro de reconhecimento rápido às
mais celebradas coisas da cidade. O _chauffeur_ era português, tomou
familiarmente assento ao lado dêle. A bôa disposição do ânimo fazia-o
mais acessível, o simpatismo sugerente do meio tornára-o jovial, aquecia
em frémitos de fraterna expansão a sua sensibilidade agradecida. Por
isso, a cada momento, naquela vertiginosa abalada, o feliz viajante ia
cortando os esclarecimentos fugazes do condutor por admirativas
exclamações e brados entusiastas, quando não descia a indagações mais
íntimas, inquirindo com afectuoso interêsse o _chauffeur_ na sua
filiação, antecedentes e condições morais e materiais de vida.--«Se
viera para a América havia muito tempo? Se estava contente? se tinha
valido a pena?»

--Alguma coisa se faz, meu amo...--contestou afável, num risinho
esperto, o interpelado.

--E muita família lá em Portugal?

--Mulher e três filhos. Quanta _mosca_ posso forrar, p'ra lá vai
inteirinha.

--E saùdades da pátria, não tem?

--Que pátria, senhor?...--acudiu com amarga resignação o _chauffeur_,
olhando de espaço o Silveira.--A gente, em vindo p'r'aqui assim, não
temos mais pátria. Por cá chamam-nos _galegos_; se volvemos a Portugal,
somos _brasileiros_.

E encolheu os hombros com tristeza. Assim mano a mano chalrando,
indagando e informando, mutuando fugazes impressões, colhendo notas
inéditas, percorreram os dois o amplo coleamento áureo-verde da avenida
Beira-mar, visitaram Botafogo, fizeram o rodeio dêsse retalho
paradisíaco que são as praias do Leme, Copacabana e Ipanema,
internaram-se pelo delicioso dédalo de sombras, palacetes, _parterres_ e
jardins do bairro das Laranjeiras, deitaram ainda ao Jardim Botânico, e
foram por fim almoçar ao morro de Santa Teresa. Larga e formosíssima
jornada. O Silveira estava encantado, aturdia-o a cálida vitalidade do
ambiente, sentia-se bêbedo de magnificência, de luz, de côr, de
movimento e de ruído. Feria-lhe com agrado a atenção o escrupuloso aceio
das ruas, a variegada tinta das construções, o abundante luxo decorativo
das árvores e das flores, e, por uma estranha anomalía dêste scenário
mole de prazer, o tom sempre atarefado, o côrso afadigado e ligeiro da
multidão, palpitando, tumultuando, fervendo numerosa e incessante, como
uma grossa onda de renovação a correr, generosa e fecunda, por essa
densa rêde de artérias da abundância e da fortuna. Bem mais porêm que a
obra magnífica do homem o impressionou o esplêndido vigor da
Natureza,--as colossais dimensões e o atormentado aspecto dessa grande
paìsagem eruptiva tôda em bruscas oposições e em arrancadas titânicas;
prodigiosa armadura cujo torso arfante, rompida, aqui, ali, a sua
espêssa crôsta verde, fôra atirado vertiginosamente a prumo, formando
atrevidos minaretes naturais donde se abrangiam panoramas maravilhosos;
estonteadora ronda de montanhas fechando zelosamente na concha dos seus
flancos viridentes, como entre mãos de gigantes um brinquedo, o
formigueiro policromo e frágil da casaria. Mas era demasiado grandioso e
solene. Perante a melindrosa sensibilidade de europeu, do Silveira,
tanta soma de majestade raiava já pela tristeza; sobrelevando à sua
extática admiração por tam desconcertante e caprichosa exuberância,
havia o que quere que fôsse de vagamente constritivo e grave, que o
esmagava, que lhe pesava na alma, como um fatídico prenúncio de
desgraça. Porque êle não encontrava aqui, nesta luz crua, nestes
mamelões adustos, a vegetação suave e amiga, as delicadas e múltiplas
nuanças, o brando afago, as acariciadoras sombras do torrão bemdito que
lhe embalára a infância. Aqui, na sua fechada monotonia, a sombria capa
verde do sólo áspero e convulso tinha um não sei quê de opressivo, de
hostil, de trágico; na impenetrável noite do seu mato torcido e hirsuto
pressentia-se tôda a sorte de quimeras ruins, de reptís, de feras, de
monstros, espiando-nos. Era um Éden traiçoeiro... inadaptável
seguramente à poesia dos contos de fadas, à simplicidade ingénua das
bucólicas tangidas melancólicamente, na grave e dulcerosa paz dos
campos, pelos contemplativos pastores da sua terra.

Horas depois, à noite, e quando outra vez a bordo, o temperamento
vibrátil do Silveira ardia por expandir-se, debatia-se no vivo empenho
de transmitir impressões aos companheiros. Os Améglio acolheram-no com
frieza, fortemente ressentida como estava _Mrs._ Edith por não haver ido
com êles. Ramón Alvarez, envernizado e rubro como um tomate, tambêm
pouco o atendeu:--«não estava de acôrdo, ia morrendo assado... tinha
achado uma estopada!»--Voltando-se para o Mackenna, êste não o deixava
falar, porque, no seu fátuo egoísmo, tudo era por sua vez encarecer-lhe
os surpreendentes _motivos_ que esquissára para um soberbo quadro
simbolista.--Havia de ver!--Valeu-lhe por fim a sua grande amiga
espiritual, a loura e tímida Irene, que com amável complacência o
escutou longamente.

No dia seguinte tocavam em Santos; e enquanto o Silveira se debruçava
atento sôbre o aparatoso e sólido desdobramento e o tráfego colossal do
pôrto,--bem comparável ao de Liverpool, lhe haviam dito, e via que com
razão,--aí de acercar-se-lhe o pai Wimeyer, que, sempre no antegôsto
falaz do seu tam almejado inquérito gramatical, todo o oportuno ensejo
aproveitava para lisonjeá-lo. E com familiaridade cativante, numa
erudição muito a propósito:--que êle, como bom português, devia
sentir-se orgulhoso e contente, ali... vendo, e pisando podia dizer-se,
terra da celebrada baía, pitoresca e tranqùila, onde, quatro séculos
antes, aproára a primeira expedição enviada de Portugal para colonizar o
Brasil; e que era ali a outrora ilha de _Enguáguassú_, sabia bem...
assim como foi dali que partiu breve para o interior, nesse tempo,
trepando e transpondo épicamente a abrupta Serra do Mar, a expedição que
havia de fundar a legendária _Piratininga_,--a encantadora S. Paulo de
hoje.--Confundido por esta exótica demonstração de tanto saber, o
Silveira aplaudia, num risinho envaidecido; e quanto à embaraçosa
iniciação dessa prometida sabatina gramatical, o aterrado argùente ia
engenhosamente iludindo--que já agora, por poucos dias, seria melhor,
com outro descanço... em Buenos-Aires.

Bastantes passageiros mais desembarcaram aqui; gradas figuras da finança
e da indústria, ricos fazendeiros do interior, caixeiros-viajantes,
mulheres de prazer, artífices, obreiros, peões, representantes de
empresas estrangeiras. Assim, aquele reduzido mundo que o berço
reluzente do _Almeria_ sôbre as águas baloiçava alegremente, ia em
repetidas golfadas rareando; e ali dentro a vida fechára-se em pequenos
círculos de discreta intimidade, cada vez mais singela, mais suave, mais
familiar, à medida como o termo da viagem se acercava.

Amiudavam-se agora e edulcoravam-se, naturalmente, aqueles almos e
fraternais colóquios de Irene com o Silveira,--o que não era para êste,
aliás, empresa fácil, apetecido alvo como êle se sentia, a cada momento,
do _contrôle_ implacável de _Mrs._ Edith, ávida por igual da sua
presença e ciosa do seu convívio. Ele porêm sabia, sempre que isso lhe
convinha, desembaraçar-se dela, invocando déstramente os seus
compromissos gramaticais para com o pai Wimeyer; depois, uma vez junto
dêste, difícil lhe não era tambêm deixá-lo, na improvisada simulação de
qualquer solícita _démarche_ junto da filha; por fim, quando, de longe,
a querençosa mirada de _Mrs._ Edith lhe significava a impossibilidade
formal de manter-se mais tempo, sem escândalo, junto da linda argentina,
êle aí expressava pezaroso, perante esta, o seu inadiável dever de
cumprir para com os Améglio uma qualquer obrigação de cortesia, e partia
imediatamente. E assim neste divertido círculo vicioso de inofensivas
invenções ia salvando com arte as dificuldades e preenchendo
saborosamente as horas. O certo era que a doce freqùentação espiritual
de Irene fornecia ao Silveira uma derivante deliciosa cada vez mais
dominadora e mais atraente, aos desafíos sensuais da irlandesa. Não raro
passavam agora horas seguidas sós os dois, já caminhando mui camaradas,
par a par, a fazer uma e muitas vezes o giro completo do convés,
discorrendo com interêsse juvenil sôbre coisas de nada, ligeiros,
felizes, a frase sôlta e leve no ar cortante; já imobilizando-se sôbre
um ponto ao acaso da amurada e aí, sonhadores e mansos, balbuciando a
sua mútua emoção em termos vagos, imprecisos, como a dança incoerente
dessas fugazes _libélulas_ do mar, os peixes-voadores, que êles viam em
baixo mergulhando e saltando atoadamente na imensidade azul das ondas. E
momentos havia em que o espírito subtil de Irene, ao calor desta casta
intimidade, se alava em sublimados conceitos, desatava-se em coisas
transcendentes, soltava palavras raras e profundas. Uma que outra vez
sucedia o temperamento másculo do Silveira aquecer e inflamar em
arroubados ímpetos a sua alma enamorada... Porêm então, invariavelmente,
a cada discreto ensaio de galanteio, a alma timorata e nobre de Irene
fechava-se como em março um botão de rosa; se êle permitia, com um pouco
mais de vivacidade, ao coração pronunciar-se, ela acolhia-se a um
mutismo impenetrável, não perdia o ensejo de levemente lhe fazer sentir
quanto a trivialidade mesquinha do amor à hora era insofrível para a sua
sensibilidade e ofensiva para o seu orgulho.--Queria ver nêle um amigo,
nunca um adulador.--Contrito e humilde, o Silveira resignava-se... e a
figura melindrosa e isenta de Irene aparecia-lhe então como um dêstes
tipos de virtude sólida e doce que nos reconciliam com a existência e
nos fazem tomar em respeito a vida.

Em breves dias, uma linda manhã veio em que, no balanceio perpétuo do
mar, a translucidez movediça das águas agora engrossava,--embaciava-se,
parecia coberta por uma bostelosa máscara de lama. Eram as infinitas
aluviões terrunhosas do Plata, cuja foz incomensurável, avassaladora e
ampla como um mar, a prôa arrogante do vapor atingia neste momento. Já
por estibordo se descortinava a airosa silhueta do _Cêrro de
Montevideo_.--Um outro nome bem português...--voltava a observar-lhe o
pai Wimeyer com amável solicitude.--Corrupção de _monte vi eu_, não era
assim?... Perpetuava a primasia na descoberta e acusava sintáxicamente
uma linda transposição, como tantas havia na formosa língua de Camões.
Tinham muito que conversar...--E batia-lhe no ombro afávelmente. Mas o
Silveira mal o ouvia. Neste feliz momento, os seus brios patrióticos
empolgavam-no, sobrelevando aos quiméricos terrores pela ameaça das
doutas interrogações do pedagogo. O coração dilatava-se-lhe envaidecido,
porque êle notava como durante a sua viagem, no decurso de todo êste
largo roteiro abarcando dois hemisférios, desde a largada inicial das
bôcas de luz e oiro, do Tejo, té à embocadura brumosa e intérmina do
Plata, êle viera medindo, reconhecendo, verificando, palpando sempre,
ininterrompido e eterno, o traço, a marca indelével dêsse temerário
arranque das descobertas... viera seguindo as aladas fugas do sonhador
espírito português, tivera a prova constante do seu génio marítimo
afirmada e selada épicamente, cruzára o imperecível sulco aventureiro do
seu caminho de glória.--Que outro povo podia vangloriar-se dum prodígio
igual?...--Perante esta íntima evidência, sacudia a cabeça com arreganho
e atirava uma depreciativa mirada de desdêm a essa humanidade inferior
que o rodeava... a êle, senhor do Universo.

Passada a encantadora capital uruguaia, não restavam agora ao _Almeria_
mais que oito escassas horas de viagem. Todos tinham pressa de chegar e
afanosos seguravam o tempo, compondo, cerrando as malas, dando
instruções aos _stewards_, buscando e preparando a continuìdade das
relações ocasionalmente entaboladas.--Os Wimeyer ofereceram ao Silveira
a sua casa de Buenos-Aires, _calle_ Paraguay. O Mafiori a todos
anunciava bem alto que ia hospedar-se no _Plaza-Hotel_. Mas os mais,
pelo geral,--como o Mackenna e o Alvarez,--não sabiam; iam confiados ao
acaso ou haviam-se entregado ao solícito critério dalgum amigo. Os
mesmos Améglio não haviam tambêm escolhido domicílio. Assim, para
poderem depois vir a saber uns dos outros, concertaram reùnir-se ou
enviar o seu _adresse_ ao _Café da Paris_, na noite seguinte. E ainda,
da suja promiscuìdade da 3.^a classe, não deixou de vir humildemente o
Matias, na companhia confortante de mais dois patrícios, a demandarem
interesseiros o Silveira, confiados na sua espontânea promessa de
protecção, para lhe pedirem numa lacrimosa lamúria que não os olvidasse,
e desejando saber onde haviam de procurá-lo.

A cada momento, espontâneos, vivazes, por entre a atramochada barafunda
das bagagens, formavam-se grupos e travavam-se furtivos diálogos,
palpitando da inquieta indecisão daquele instante. Mas diálogos eram
êstes que na sua impaciência mordente, no seu vôo fantasista, em vez de
aproximarem os interlocutores, distanciavam-nos. Cada um íntimamente se
perguntava--que sorte iria ser a sua?... Aquelas quentes e efusivas
palavras ninguêm as apreciava maiormente, ninguêm lhes dava inteira
atenção, porque elas mesmas logo em cada um dêsses insatisfeitos
espíritos sugeriam e despertavam, para alêm do seu significado real,
outros planos, idéas, desejos, ambições e projectos que os levavam para
muito longe... Porque é assim neste vertiginoso e dissolvente
aturdimento que nós vivemos hoje a vida. Ninguêm se instala nela com
permanência,--nem nas casas que alugamos agora, já com o antecipado
desígnio de as largar àmanhã, nem nas dedutivas evidências da nossa
razão, nem na voz instintiva da nossa consciência, nas nossas paixões,
apetites, ódios, amores, interêsses. Nada para nós é hoje santo, grande,
estável, firme, definitivo. Mudamos com uma rapidez assustadora e uma
lamentável inconsciência, de ocupação, de família, de ideal, de
carácter. Nada há duradoiro. A febril obsessão de «edificar o futuro»
furta-nos ao gôzo tranqùilo e salutar da hora presente. A glória duma
invenção feliz, o lucrativo êxito dum negócio, o aplauso por uma obra
benemérita,--que foram o produto de longo e persistente labor, as mais
das vezes,--contudo, apenas conseguidos e já não nos satisfazem, não nos
arrebatam, não nos empolgam; raro a compensadora embriaguez do seu
triunfo nos senhoreia por completo a alma. Devora-nos o apetite
inquietante, e sem repouso, de novos riscos, lances, emoções, aventuras
novas. O torvelinho trágico da vida desliza e corre sôbre nós sem nos
penetrar, como a água pelas penas dos cisnes. A nossa existência
atropelada e incerta tem a _allure_ constante duma carreira, é um _film_
alucinativo e ardente, cuja precipitada mímica nem nos abonda à vontade,
nem nos cumula o desejo. É uma hiperbólica e vertiginosa curva sem
termo, cujos ramos ideais mergulham no Infinito. Assim, andamos
incessantemente aos cotovelões à felicidade, sem saber vê-la, sem a
apreciar, sem a sentir. Ao cabo, morremos sem haver vivido.

...Quando, seguramente, a base mais sólida, mais coerente e mais lógica
para a plena posse do futuro, seria, à maneira antiga, organizarmos o
presente com serenidade, tratarmos com esmerado carinho as fugitivas
delícias de cada hora que passa, apreciarmos, em suma, e penetrarmo-nos
bem do valor intrínseco de cada dia,--como se o mundo fôsse a acabar
nessa mesma noite.




V


Buenos-Aires, finalmente! O _Almeria_ agora avançava à cautela,
flanqueando devagar as sucessivas bóias distribuidas, como um rosário de
lumes, ao longo do estreito canal que dragagens contínuas mantinham
aberto, cavando um sinuoso sulco de lôdo na chata pastosidade daquele
estuário imenso. Anoitecia. O céu conservava-se nublado, mas calmo, e
nessa infinita tela _gris_ o carvoamento confuso das linhas da costa
adquiria transparência, tinha um encanto singular, banhava-o uma poética
e vaga suavidade. Na bruma indecisa da noite já o Silveira podia
descortinar, convidativa, avançando e crescendo do boleado mistério do
horizonte, uma linha caprichosa de farolitos e de mastaréus, primeiro;
depois uma complicada e imensa teia flutuante, a mais inextricável
maranha de tôda a sorte de embarcações, trechos de docas, atributos
náuticos, pontes-levadiças, guindastes, galpões, bandeiras; a seguir, a
linha quebrada e geométrica, o viveiro apoplético das _azoteas_, das
tôrres, das cúpulas; das agulhas, terraços, chaminés e cornijas
rendilhadas, marcando por uma extensão sem limites, no seu pululamento
proteiforme, o contôrno manso da cidade; e logo, já nítidos, já no
primeiro plano, os alinhados globos eléctricos, a calçada _embadornada_
e os pantagruélicos armazéns marginais da terra firme. Aí a tinha agora,
a célebre, a grande cidade de trabalho e de esperança, de pensamento e
de acção, de labuta e de prazer, de maravilha e de sonho. A Terra da
Promissão actual, o _Eldorado_ mais em voga, o símbolo da abundância
paroxísmica, do homem próspero na terra magnânima! A metrópole ideal da
magnificência e da fortuna, da opulência e da belêza! Emfim...
Buenos-Aires!

O ar, pesado e espêsso, impedia a visão clara, e era como se todo o
espaço se houvesse diluido numa obliteradora meia-tinta, numa suja
mucilagem que delia os contornos e comia o brilho às coisas; contudo,
tanto quanto podia adivinhar-se das condições de desarolo e vida daquela
planura intérmina, o âmbito dêste pôrto modelar era enorme e colossal o
seu movimento. Um enxame, um delírio. Crescia grosso para o alto um como
que resfolegar de opressão, a afirmação potente, a rebeldia sujeita de
fortes energias represas, dessa floresta de chaminés fumarando, dêsse
empilhamento marítimo de monstros de tôdas as idades, de máquinas de
tôdas as formas, dimensões, feitios, côres, que latejavam e arfavam com
veemência, ora premindo-se, ora evitando-se, em risco de se
entrechocarem e que a limosa torrente do Plata no seu gigantesco dorso
embalava brincando, docemente, por uma extensão sem termo e sem medida.
Pela carcassa formidável dêste báratro de enormidades os homens,
iluminados de escape, lidavam como formigas. Saltavam choques brunidos
de metais do alto bôjo flamante dos grandes transatlânticos, havia roces
de cremalheiras, roldanas, cordagens, quedas surdas de fardos, vozes
agudas de comando, tangiam as sinetas de bordo, as sereias apitavam; na
gorda pacificação do ar, saturado de maresia, sentia-se, a quando e
quando, um chapinar de remos, batendo claro no intervalo dalgum trinado
lamento de guitarra; e no fundo humilde de alcatroadas barcaças
fumegavam, a um lume discreto, caldeiradas apetitosas. E agora já, com o
avanço lento e crescente do paquete, aquele primeiro esfumado e negro
bosquejo da cidade povoava-se, tomava volume, aclarava, definia-se a
cada momento; aqui, alêm, bisbilhoteiras luzitas saltavam, riscando
arruamentos, desvendando interiores, trémulas e brancas como estrêlas;
ou eram os grandes rèclames luminosos que no seu relampaguear
interesseiro chispavam súbito, como borboletas de fogo, estremando
planos, talhando duras silhuetas na sombra e em manchas fortes como
_gouaches_ lambendo os panos do muro; esbatidamente. E agora tambêm, a
favor da molhada ressonância que lhe emprestava a proximidade das águas,
vinham acariciar o ouvido atento do Silveira as sonoras trepidações da
vida urbana,--o _tlim_ nervoso dos tranvias, o lento arrasto das
carroças, o pregão dos vendedores de diários, o buzinar dos automóveis,
o trapejar das oficinas.

Atracado ao cais o _Almeria_, e enquanto a marinhagem ajustava a
_passerelle_ para o desembarque, João da Silveira buscava com afã em
baixo, na multidão apinhoada cêrca, sob a _marquise_ monstro da aduana,
a figura pequenina e viva do seu amigo Pedro Azeredo.--Um convicto
monárquico tambêm, igualmente fidalgo, da linhagem seis vezes secular
dos Azeredos, senhores de Penamacôr e redondezas, alferes de cavalaria
ao tempo da revolução, e que naturalmente, incompatível com o salafrário
regímen da Rèpública, seis meses havia que viera para a Argentina, com
licença ilimitada.--Lá estava êle,--via-o agora!--plantado bem na
frente, mesmo na orla do cais, e correndo a amurada com a mão em pala
sôbre os olhos, ao alto erguidos. Soltaram um simultâneo brado de
cordealidade alegre, ao reconhecerem-se; e o Silveira, tam pronto como
pôde, desceu, rompendo em cunha a atropelada impaciência da grossa onda
cosmopolita que jorrava de bordo. Um quente abraço, no cais, de efusiva
ternura; logo o Silveira confia do corretor do hotel e tediosa revisão e
entrega da bagagem; e breva saltam os dois para um automóvel, que, à
indicação dada pelo Azeredo, partiu roncando.

--Então, como vais tu?...--rompeu êste, num claro riso, saltando e
sacudindo a espalda ao amigo com a mão em leque, todo voltado para o
recêm-vindo.

--E tu, meu alma do diabo?--acudiu vivaz o Silveira, fitando, confiado,
o companheiro e premindo-lhe afável os joelhos.

--Menos mal, meu vélho. Ganha-se _plata_. Hei-de-te contar...--E com
desdenhosa arrogância, atirando o palhinha para a nuca:--Bem melhor do
que lá nessa pepineira de rèpública.

Mas o Silveira, que não cessava de mirar a um e outro lado,
interessadamente:

--Parece-me uma grande cidade, esta?

--_Como no!_

--E bela, caramba!

--Grande, grande...--corrigiu com sentencioso ademan o
Azeredo.--Sobretudo grande. Quanto a beleza, _hay que distinguir_.

Com efeito, o Silveira achava tendido sôbre aquela vastidão sem termo um
como que mortiço pano de melancolia... Escasso movimento e pouca luz.
Seria por motivo talvez do enfado da viagem, mas parecia-lhe aquilo
triste.

O automóvel deixára a larga avenida marginal e subia agora uma pequena
rampa, empedrada a paralelipípedos, sulcada de _rails_ e tomada a todo
um lado por um maciço casarão banal, atijolado e de balcões em arcaria,
de comesinho aspecto colonial, sem vôo, sem majestade.

O Azeredo aclarou:

--Aqui tens a chamada Casa do Govêrno... _La Casa Rosada_. Residência do
Presidente e instalação de vários ministérios.

--Não vale o nosso Terreiro do Paço,--com impertinente fatuìdade o
Silveira anotou.

--Foi feito noutra época, noutras condições. Não se comparam.

Seguia-se uma grande praça rectangular, definida pelas cimalhas
caprichosas de imponentes palácios barôcos, e num dos extremos,
longitudinalmente cortando-se, à direita, uma colunata helénica de
templo.

--Ali é a Catedral, vês?--ciceronava entretanto o Azeredo.--Logo ao
lado, a Municipalidade. Aqui à ilharga o _Banco de la Nación_, a Bôlsa.
Tens pois aqui assim, logo por entrada, o coração, o índice político do
país, o centro burocrático da cidade.

O vasto recinto, tirante as ruas periféricas, estava quase totalmente
tomado por uma caótica profusão de materiais em osso, via-se coberto por
um pejamento heteroclito e informe de linhas abstrusas, bárbaras, de
coisas duras, cortantes, agressivas, sujas,--montes de saibro, caliça,
areia, pilhas de beton, caixas de latão, barricas, vagonetes, vigas de
ferro, cabrestantes, escadotes, carretas, arames em puas hostis,
barracas de taipa, casotas de zinco, pastas de lama. E desta hirsuta
barricada, ao centro, sôbre esta aluvião industrial monstruosa, de
destroços de ruína e de tesas projecções suspensas, uma ingénua
figurita, espécie de Palas, no vértice duma pirâmide de _confiture_,
débil e só no espaço, assomava com tristeza.

--Tôda esta confusão é por causa das obras do ferrocarril
subterrâneo,--tornou o Azeredo, solícito.--Como o _Metro_ de Paris... Ou
melhor! muito melhor! Ah, indubitávelmente é um grande melhoramento.--E
enquanto o automóvel rodava à esquerda, passada a Catedral:--Eu queria
levar-te pela Avenida de Maio, a principal artéria da cidade; mas creio
que não será possível.

--Tambêm anda em obras?

--Tambêm... em parte. Mas não é por isso. É que estava defeso, e muito
bem, estender hoje o _côrso_ por aqui; mas, a despeito da proìbição
municipal, a multidão agora à noite conseguiu invadir a Avenida e todo o
campo é pouco para ela. Não ouves?...

Pelo ar gordo e parado montava e alastrava um grosso resbunar pagão, o
relincho orgíaco da multidão em febre, avassalando, acanalhando o
espaço, tomando e prostituindo tôdas as direcções, sobrepujando e
sujando todos os ruídos. Havia um vago clamor sobrenadante, assobios,
gritos, risadas, fanfúrrias desafinadas, canções estúrdias, e a espaços
buzinava áspero pelo ar o trilo irritante das cornamusas de barro. Era a
despedida foliona do Carnaval, retida com ardor, prolongada com delírio.
Eram os últimos arrancos da bruta bambocha anual em que a essa fera
travestida, que é o homem, se permite desdobrar à sôlta as suas
inclinações e regressar à sua origem. Naquela noite dionisíaca, a
pressão cálida do ambiente era engrossada pela onda impúdica dos
desejos. Adivinhava-se a vulgaridade, a brutalidade, a volúpia sórdida,
a fúria erótica, os grotescos desmandos do instinto plebeu, nesse
asfixiante turbilhão animal, brigando, rugindo e tressuando. Como se por
completo se houvessem delido tôda a luminosidade, todo o espiritual
enlêvo, todo o fino ar, tôda a aristocrática leveza da magnífica cidade,
paresiada neste momento por um espasmo vêsgo de loucura.

Na raíz mesmo da Avenida, ao fundo da praça, o automóvel teve que parar.
Dois polícias a cavalo davam-se a pêrros para regular aquela desordem e
facultar o trânsito aos veículos, positivamente bloqueados, na frente,
pelo marulho compacto da multidão, nos flancos, pelo aprumo bisarmal dos
prédios. Num ligeiro estremecimento de contrariedade, disse o Azeredo
para o _chauffeur_:

--Bem, tome aí por Rivadavia e veja se pode dar a volta por Cerrito.
Apeâmo-nos em seguida.--E, com ar enfastiado, para o amigo:--Aqui, o
entrudo é o que tu vês: é uma coisa antipática, vulgar, uma festa do
populacho.

Depois, quando o automóvel, desandando lentamente, conseguiu retomar
caminho:

--Mas que mania foi essa de hotel?

--É o mais prático, meu filho.

--Bem: se chegasses aqui só, absolutamente sem conhecimentos, de acôrdo.
Mas tendo-me a mim... Instalavas-te na minha pensão. Eu até falei à dona
da casa... Estarias mais cómodo e mais barato. Como em família.

--São essas familiaridades que eu detesto, que eu temo,--objectou num
instintivo horror o Silveira.

--Tonto! Ao contrário, é delicioso...--insistiu o Azeredo; e, saltando
sempre, com o seu riso escarninho:--Há lá um matrimónio sério,
provincianos _burgêssos_, que convidam tôda a gente a jogar o quino.
Quando não há _plata_ p'ra gastar fora, compreendes, é excelente... Há
mais duas francesas, muito reinadias, que tem a excentricidade de não
receber visitas senão meia-noite passada. Há uma professora de _tango_,
um estudantito de medicina, um caixeiro da _Ciudad de Londres_ ... e
então uma _gaja_ chilena, menino!--aqui o Azeredo sublinhava o seu
entusiasmo, mirando em alvo, com requebros lúbricos,--uma viúva,
_morenucha_, gordota, com uns olhos assassinos que trespassam a gente!

--Atiras-te?

--Ela parece-me amável, isso é... Tem um filho que é um _pibe_
insuportável... Outro dia, com uma seta, de papel, ia-me vasando um
ôlho. Ah, mas pelas celestiais delícias que se adivinham na mãe,
aturam-se bem as diabruras do filho.

Prudencialmente, ao cabo duma pausa, João da Silveira mascou:

--Bem, tudo isso eu acho detestável... Quero estar independente, livre,
absoluto senhor meu, entendes?--E como fazendo um exame de
consciência:--Não que às vezes, sem querer, prendemo-nos, e é uma maçada
depois para sacudir essas seresmas.

--Ora!--com um desdêm superior objectou o Azeredo.--A gente
defende-se...--E voltando a insistir:--Vê lá, meu vélho, se preferes,
anda. Ainda estás a tempo.

--Não, não... Prometo ir, mas de visita.

Uns minutos depois, junto a uma esquina, apeavam-se; e o Azeredo deixava
o seu amigo no _Cecil Hotel_, onde lhe tomára alojamento. E, ao
despedir-se:--que no dia seguinte não poderia vir logo de manhã, porque
tinha o escritório; mas pela tarde, ás 4, viria buscá-lo para darem uma
volta por Palermo e _fazer_ em seguida a _calle_ Florida.

--Vê lá não te constranjas...

--Qual! Se é o que eu faço habitualmente. É o _chic_...--E com o ôlho
ladino:--_Noblesse oblige_.

--Bem, está direito. Depois jantas comigo.


Na manhã seguinte, o Silveira que dormira como um bispo, levantou-se bem
cedo, banhou-se com deliciada pausa, e enquanto esperava o _desayuno_,
foi abrir os dois largos batentes da porta do seu quarto, rasgada em
balcão sôbre a rua. Era no último andar do hotel, a uma altura onde
chegavam já mortiças num adormecimento lânguido as pulsações fortes do
exterior.--Ele queria ver a cidade com ar de dia, no seu fresco aspecto
matinal, no brio potente da sua vitalidade, erecta e liberta emfim das
vagas figurações da sombra, daquele pesadelo de animalidade e desordem,
da passada noite.--Saíu ao ar livre e avançou o busto com avidez, a
mirar a extensa, a plena toalha de movimento, de vida e de luz que lhe
oferecia, em baixo, o traço imponente da Avenida de Maio. Era um golpe
de vista bem digno duma grande metrópole, não havia dúvida, essa formosa
e ampla linha correndo dum jacto, inflexívelmente, limpa e direita, da
pirâmide rudimentar da Praça de Maio à esbelta cúpula monumental do
Palácio do Congresso. E esbeltos eram por igual os opulentos prédios
marginais, caprichosos, brincados de formas, atirados com arrogância
para o espaço: Traziam-lhe reminiscências de Paris na sua _patine_
cinzenta e monótona, nos seus rendados balcões floridos: e de Paris eram
tambêm a atmosfera velada, o asfalto luzidío, o ar discreto, as filas de
mesitas redondas acaparadas sob os tôldos dos _cafés_ e _restaurants_, a
entestarem, numa disciplina idílica perfeita, com os renques de plátanos
muito escovados, tosquiados com simetria e alinhados marcialmente ao
longo dos passeios.

Contudo, abrangida daquela altura, a magnificente artéria resultava
estreita em relação com o vôo possante, com as maciças dimensões da
casaria; das franças das árvores, dos postes telefónicos, dos colunelos
da luz eléctrica, de tôdas as arestas, de todos os ângulos, de tôdas as
curvas e ressaltos daquela floresta arquitectónica, restos ignóbeis de
serpentinas pendiam esfarrapados, tremulando ao vento; e aqui tambêm, a
intervalos, tomando por vezes a extensão de quarteirões inteiros,
voltava o Silveira a ver com desgôsto o mesmo pejamento industrial com
que, durante o seu breve percurso, esbarrára na véspera,--havia trechos
largos de calçada esventrados de lés a lés, fundidos em abismos de
tréva, rasgados e cavados em boqueirões hiantes, como chagas, que
geométricas vedações de zinco ondulado debruavam, polvilhadas de
purulências de cisco, escoradas por eczemas de barro, e de cujo negro
ventre revôlto subia incessante um bater ciclópico de picaretas e
ferragens, na mais irritante dissonância com a gritada fúria dos
pregões, o compassado chouto das tipóias, todo êsse marulho vago das
ruas. Pelo ladrilho pardo dos amplos passeios marginais farandunava uma
peonagem atarefada e compacta, de tôdas as origens, de tôdas as idades,
feitios, tamanhos, côres,--o mostruário ofegante do universo, o resíduo
aventureiro de tôdas as raças, sôbre cujo movediço plasma, salvando a
onda banal dos jaquetões e dos chapéus de palha, se afirmavam, aqui e
ali, exóticamente, figuritas nervosas e amarelas de _nipons_, o tudesco
sólido e arrogante, _képis_, turbantes, chimarras, _ponchos_; grupos de
homens espadaúdos e arremangados, de avental, a cabeça de boina e o
grosso artelho nu sob o farto _calcetin branco_; tipos refeitos de
mulheres de aspecto arisco, o rosto acobreado e extático, a saia muito
farta tecida em tons berrantes, e descido o cabelo esfíngicamente, à
frente das orelhas, em duas tranças negras. Correndo a parte central da
Avenida que se mantinha viável, pelas suas porções livres, uma dupla
fila de côches e automóveis subia, e outra descia, infindáveis,
incessantes, sem claros e sem trégua, aglomerados e suspensos por vezes,
em nódos de embaraço, ao cruzarem as ruas transversais, donde
perpendicularmente golfavam a jôrro mais automóveis, mais côches, mais
ciclistas, mais cavaleiros, mais pregões, tôda a ordem de obstáculos, na
sua invasão resfolegante engrossados ainda pelo pesado tropear das
galeras, dos _camions_, das carroças e tranvias. E desta forte
trepidação material e espêsso escoamento, o fluxo e refluxo
interminável, era regulado, às esquinas, numa sorte de automatismo
consciente, pelo bastão vigilante dos polícias.

O comedor do hotel era na _planta baja_, furtado às vistas do público
por brancas e discretas _brise-bise_, mas invadido em cheio pelo marulho
atroador da rua. Tudo isto estimulava mais e mais a espertinada atenção
do Silveira, que, apenas findou de almoçar, subiu a tomar a bengala, o
chapéu e as luvas; e num momento aí o temos no pequeno vestíbulo outra
vez esperando que o porteiro lhe tomasse um _taxi_, onde a asa pitoresca
do movimento lhe acalmasse a actividade e lhe désse pasto ao interêsse.
Não tinha fim determinado. Queria ir dar uma volta de aventura, ao
acaso, puramente ao arbítrio do _chauffeur_ e ao sabor do imprevisto.
Mesmo que outra coisa podia êle querer, por agora, não conhecendo nada
da cidade?... Apenas recomendou à silhueta automática do condutor, que,
de mãos ao leme, sem olhar aguardava indiferente,--que não queria estar
a parar constantemente... e então que fôsse por onde houvesse menos
confusão, menos movimento.

O vélho _auto_ partiu logo, tomando a oeste, e pronto desembocou numa
praça amplíssima, desbordante de luz, num aceio irrepreensível as suas
largas avenidas de asfalto reluzente, e orlada apenas, como que
provisóriamente, de casitas abarracadas e construções mesquinhas, na
cimalha _tape à l'oeil_ duma das quais, espécie de mercenário
frontespício de instalação de feira, mugia a toada populacheira e aldeã
dum realejo. A todo o fundo, desdobrava-se e crescia majestoso para o
alto, no seu deslumbramento marmóreo, o Palácio monumental do Congresso,
vaidoso e lindo no estadeamento olímpico das suas colunatas, nos seus
astragalos e florões clássicos, nos seus génios de bronze, nos seus
grupos alegóricos, na linha puríssima e alada da sua cúpula sem par,
traçando suavemente, na mansa tela lilás do céu, uma grande parábola de
arrogância e de sonho. Entretanto, e apesar da nobre e empolgante linha
geral do seu conjunto, esta mole colossal, erguida ali, não suportava a
vastidão da perspectiva, sentia-se esmagada pela imensidade absorvente
do recinto. E êste aparecia-nos tambêm inexoravelmente tomado pela mesma
grossa e incómoda farfalha industrial que, parecia, aqui avassalava
tudo; por tôda a sorte de vedações, de máquinas, de materiais, de
esboços de construção e montes de escórias. Uma como que subversão de
terremoto se produzira, ao centro, protuberado horrivelmente de pequenos
Atlas de ferro e aço, de Himalaias de cascabulho, de Jungfraus de lama.
Apenas, neste estrangulamento de sórdidas durezas, algum triste e
anémico trecho do relvado, mais resistente, conseguia oferecer ainda uma
acariciadora mancha de frescura; e num dêsses perdidos oásis de plácida
harmonia debuxava-se, solitário e nostálgico, o bronze do atlético
_Penseur_, de Rodin, na sua acefalía paradoxal, na sua absurda
corpulência. O mesmo edifício do Congresso, que o Silveira deixára agora
à sua esquerda, estava por concluir, com o poderoso flanco sem epiderme,
amparado em andaimes, esperando o revestimento para as arestas
descarnadas e o tijolo ennegrecido.

Internou-se a seguir o automóvel por uma rua espaçosa e clara, espécie
de _boulevard_, no seu arranjo cuidado e simétrico, na sua dupla fiada
de árvores, no delírio policromo das taboletas, nas artísticas
vidreiras, na sua vida sussurrante. Alongava-se a perder de vista, e na
sua orla barulhenta as _étalages_ comerciais e os tôldos dos
_restaurants_ sucediam-se e disputavam primazias em alternâncias
coruscantes. No letreiro duma esquina, de corrida, o Silveira conseguiu
lêr--_Rivadavia_; e então recordou que esta era talvez a principal
artéria _porteña_, e decerto a mais extensa, a de maior tradição, como
que a coluna vertebral da cidade. Depois, fortuìtamente e a intervalos,
consoante o giro caprichoso do veículo, o Silveira deu-se conta de
passar por uma rua Andes, cruzar aí com um grande edifício pesado e
austero, meio hospital, meio academia; a seguir outros arruamentos,
quáse iguais, todos com lacónicas designações,--Córdoba, Triunvirato,
Santa-Fé, Las Heras, Montevideo... por fim já nem tomava tento por onde
ia e abandonava-se, alheadamente, à incerteza voluptuosa do
desconhecido. Mas eram sempre as mesmas ruas infindáveis, riscadas a
cordel, invariávelmente chatas e implacávelmente direitas. Em vão se
buscava neste taboleiro de xadrez colossal, a adoçar-lhe a hirta algidez
sem termo, o desafôgo verde e livre dum _square_, o perfume sorridente
dum jardim, um refúgio amigo de sombra, a carícia duma curva, o
boleamento duma colina. De onde a onde, algumas tacanhas _plazuelas_ se
riscavam, é certo, porêm submetidas por igual à mesma implacável
esquadria, como que incrustadas na massa barrenta dos prédios, e na sua
tímida penumbra alimentando uma flora de claustro, recolhida e triste. E
por tôda a parte tambêm, mais ou menos, o mesmo pejamento de coisas
tôscas e informes, o mesmo prurido desconcertante de renovação: ou era a
calçada, esburacada em longos trechos e o trânsito impossibilitado pela
aglomeração impertinente de paralelipípedos, em monte, de tubagens em
linha, de rolos de cabos, de maçaricos, paz, alviões, lanternas; ou eram
os primeiros ensaios de _rascacielos_, com seu rodapé de tapumes
lambusados de cartazes irritantes e aprumando hirsutos no vácuo os seus
esqueletos de tijolo e de ferro.--Uma cidade colhida em gestação
flagrante, sacudida num estremeção apoplético de vida, onde tudo estava
por fazer, onde nada se concluíra ainda. No seu subsolo esfarrapado e
arfante, sob a sua carapaça movediça e áspera como o dôrso dum monstro
antediluviano, bravejava uma caudal fremente de energias, reacionava no
mistério a química formidável dos interesses e a impetuosidade brutal
dos instintos. Nada quieto, nada seguro, nada inerte. Havia um eterno
ponto de interrogação suspenso sôbre o seu arranjo definitivo, não se
atinava com o termo a esta sua cavalgada frenética na conquista
delirante do progresso e da fortuna.

Em contraste aberto com os populosos aglomerados das grandes capitais
europeias, aqui em Buenos-Aires as casas, de frente angosta e
profundamente esticadas, não tinham, pelo geral, mais que o andar
térreo. A lisura convidativa da _pampa_, deserta e sem obstáculos,
incitava a esta expansão libérrima, o que explica que Buenos-Aires
abranja hoje uma área superior à de Londres. Alêm disso, como o valor da
terra nas zonas de vida mais intensa sóbe vertiginosamente, por isso
tambêm, na economia do seu lógico desdobramento, as sucessivas
construções tendem a irradiar para a perifería, como os tentáculos dum
aracnídeo colossal, neste seu denso rastejamento sem freio e sem medida.
À proporção que se distanceiam do centro, as edificações apequenam-se,
rustificam-se, vão gradualmente despindo o carácter urbano,
solidarizam-se, confundem-se com a terra, e a sua construção é mais e
mais simples, até descerem às combinações rudimentares do tijolo, da
taipa e do adôbe. E não é fácil fixar o limite a êste encurralamento
galopante para o Infinito.

O Silveira considerava com particular interêsse a fisionomia, tôda
peculiar, das construções principais,--essas altas bisarmas que rompiam
desamparadamente, aprumadas e esguias, do rasteiro cordão habitual da
casaria, e que assim desdobravam no espaço livremente os seus flancos,
não impenetravelmente murados, ao modo de Lisboa, como tumbas, porêm
abertos e entremostrando a trechos a sua estrutura intestina, no
escalonamento paralelo dos vários andares sobrepostos, e, em cada andar,
na sucessão linear dos compartimentos, cujas portadas se entreviam
superando, muito alinhadas, a aresta do parapeito discreto dos
_pasillos_. Tambêm lhe chamou a atenção o decorativo luxo exterior, o
rebuscado adôrno das fachadas. E êste vicio era geral; nos palácios mais
opulentos como nas vivendas mais comesinhas, prevalecia e ressaltava
inalterável uma indumenta excessiva da _pâtisserie_ italiana; em todos
havia, um gongorismo de ornatos desbordante, uma ânsia eruptiva de
contornos, um espolinhamento doido de torcicólos barôcos, de emblemas,
de florões, de amorinhos, cariátides e quimeras. As paredes mais
modestas não dispensavam alguma máscara de fauno ou uma lira entre
malmequeres e rosas; mas eram sempre capas e capas de redundâncias
sobrepostas, era um atropelado derroche de cimentos e argamassas que
retinham a luz, que arranhavam o gôsto e varriam tôda a sobriedade e
pureza de linhas. Não havia arquitectura, mas apenas _albañilería_.

Contudo, esta pesada obsessão do relêvo era vantajosamente resgatada
pela nobre linha geral das construções, elançadas sempre e escalando a
altura com brio, num soberbo arranque de abastança e de fôrça. As
janelas não prescindiam, em geral, do confortável resguardo das
persianas, de madeira ou de ferro, e adiantavam-se em amplos balcões
rendados, muitos dêles picados garridamente de floritas rubras e com
finas enrediças verdes colgando. Mas nem uma vaga silhueta de mulher
neles vinha debruçar-se, ninguêm se via às janelas, cujas persianas
impertinentes, inexoráveis, se mantinham, de alto a baixo,
herméticamente cerradas. E as portas, estreitas, igualmente
impenetráveis, sentinelas fieis da felicidade e do amor... Impossível
surpreender a mais fugidía nuança da vida interior destas esquivas
bocetas, furtadas tam melindrosamente ao róce brutal do mundo. Isto
dava-lhes um tom singular, um ar recatado e discreto, o que quere que
fôsse de aristocrático e isento, contrastando afinadoramente com o
grosso industrialismo plebeu que lhes marulhava em tôrno. E um outro
mundo se adivinhava, com efeito, tecendo o seu manso ambiente inefável
adentro dêstes misteriosos ninhos da paz e da virtude. Como se o
carácter argentino, carinhoso, manso e precavido, cavasse um deliberado
abismo de meticulosa defesa entre a rude guerra aberta dos negócios e a
macieza impenetrável do seu ninho! Como se a feição e o cálculo, numa
trégua prudente do seu antagonismo, o levassem a lançar uma barreira
irredutível entre as doçuras plácidas do _home_ e os atrictos
desgarradores do interêsse, entre o coração e a banca, entre o lar e a
rua! Cá fóra um balcão, ali dentro um altar.--Seria assim?...--A verdade
era que, com tôda a sua pacotilha ornamental, o seu aspecto provisório e
o seu precário arranjo, a grande cidade voltava agora a oferecer e como
que confirmava, ante a sensibilidade esperta do recêm-vindo, o mesmo
inédito e especial encanto, a mesma poética e vaga suavidade daquele
esquissado carvoamento das suas primeiras linhas na calma téla _gris_ do
céu, na passada noite... Um não sei quê de atraente e aprazível, de
afávelmente acolhedor, de harmonioso, de limpo, de fidalgo, que êle, um
hóspede de horas, não sabia ainda se atribuir à claridade essencial das
almas, se ao respiro salutar das coisas.


E sentia-se bem, afinal. Tendo voltado ao hotel, e agora reclinado
molemente numa poltrona modesta do seu quarto, o desabusado morgado de
Mosteirô repassava mentalmente o seu expatriamento voluntário e iludia o
tempo numa saborida evocação retrospectiva de gratas lembranças, de
projectos, de sonhos, de scenas vividas, de prazeres, de desejos
suspensos. Primeiro a Pátria; mas o intervalo ainda curto do seu
distanciamento e o torvelinho de ineditismos ofuscantes que, desde a
partida, o vinham assediando, não permitiam que o vinco nostálgico por
enquanto se afirmasse na vibratilidade demasiado inquieta da sua alma;
depois, aqueles tantos dias de bordo, essa deliciosa bambocha de
pequeninas audácias, desilusões, surprêsas, _flirts_, intrigas, tédios e
ridículos de raiva que era brisas e de gozos que eram espuma,
correra-lhe um pano de olvído sôbre o passado; entre o que êle fôra, e o
que era, haviam marcado uma eternidade e cavado um infinito.--De
Portugal, agora, queria lá saber!--Apenas recordava, num desdêm
superior,--que aquilo lá devia ser uma maçada, com os _carbonários_ a
ditarem a lei, os conventos feitos quarteis, os novos sem religião, os
vélhos sem garantias, e uma mania de escolas por tôda a parte, tudo
muito malcriado e ninguêm conhecido. A seguir, recordou vagamente os
dois irmãos.--O que fariam êles?...--Ainda o mais vélho, o José,
advogadote rábula e manhoso, saberia tirar proveito dos conflitos
jurídicos que, com a Rèpública, eram agora bastos como os cogumelos
depois da chuva; mas o Bernardo, o mais moço, um pateta feito agrónomo à
fôrça de empenhos, um _come-santos_ sempre metido por _lausperenes_ e
romarias, como se aguentaria, agora que o Afonso déra com os santos em
terra?...--Ora! não fôsse _tanso_.--Por fim, ao evocar a visagem chorona
e os ademanes trágicos da noiva quando lêsse a sua carta de despedida, o
lábio varonil ergueu-se-lhe num leve sorriso, entre comiserativo e
trocista, e os olhos fátuos, erguidos ao teto, semicerraram-se, a seguir
a indecisa imagem da pobre Laurita, que em espiralamentos caricaturaes
êle via subir, envôlta na fumarada ténue do charuto, seguida pela ronda
desolada e grotesca da família.

O derivativo patusco da viagem, isso sim... tinha sido bom a valer!--E
já de repente voltava a dançar-lhe, efémera e jovial, pela retina tôda a
divertida sucessão de episódios que durante êsses deliciosos vinte dias
haviam marcado um dos capítulos mais saborosos e interessantes da sua
vida. De tudo um pouco êle havia logrado provar nesses adoráveis
_instantâneos_ breves, e fugazes como _fogos-fátuos_, feitos de
saltantes contradições e antíteses súbitas. De tudo,--desde os trágicos
pavores da tempestade té aos desmanes hilares do ridículo.--Que rico
tipo aquele pedinchão Contreras, com as suas intrujonas promessas e os
seus apetites decorativos... e a cabeça e as piugas do Alvarez, as
fanfarronadas postiças do conde, as doutas madurezas do Wimeyer... o
Mackenna com a sua pomposa inépcia, o Mafiori com a sua astúcia mansa.
E, das mulheres, quanto não valia essa esnalgada e insípida Nora, a
querer teimosamente enredá-lo na tentação paradoxal dos decotes... e que
apetite de formas, que rico amor, a irlandesa... e a formosura alada, o
requintado espírito, a indecifrável isenção de Irene! Esta, sim, que
dava que pensar...--Por uma natural associação de idéas, o Silveira
conjugou mentalmente a púdica absténção, o carácter retraído e tímido da
linda argentina, com o ar recatado e discreto que êle de passagem
surpreendera, por igual, na fisionomia atraente da cidade. E todo êste
ambiente embocetado e austero, longe de o acobardar, estimulava-o, era
um desafio picante ao seu génio enamorado e volteiro, acendia-lhe os
brios varonís em tonadas ardentes de desejo. Na segura antevisão dos
mais belos triunfos, dilatava guloso as pálpebras, movia numa
pregustação sensual os lábios gordos.--Ah, que o seu instinto
adivinhára! Devia por ali assim vir a passar bem bons bocados...

E aplaudia-se de ter vindo.

Pouco depois das 4, fiel ao seu compromisso da véspera, chegou o
Azeredo. A tarde estava um encanto. A luz esbatia-se suavemente na mole
carícia do ar, húmido e tranqùilo. Tomaram pronto um _auto_ os dois
amigos e dirigiram-se ao parque famoso de Palermo, anunciado nobremente,
ao começo da avenida Alvear, pelas faustosas decorações da _Recolêta_,
em cujo preguiçoso declive majestosas linhas arquitetónicas enquadram
harmoniosamente rasos e amplos taboleiros verdes, mosqueados de tintas
policromas, um precioso _bouquet_ de frescos relvados, de minúsculos
jardins, de bosquetes, sébes floridas e tosquiadas sombras. É
aristocrático e é lindo. E a seguir, descendo sempre suavemente, a mesma
sumptuosa e ampla artéria se continua, atirada com arrogância numa
dilatada conquista de espaço, numa extensa projecção rectilínea sôbre
cujo asfalto polido deslizam, rodam e se cruzam alegremente as
equipagens luxuosas e os automóveis de preço. Definindo a todo o
comprimento o eixo da bela avenida, acompanha-a e ergue-se a perder de
vista, no seu fino recorte aéreo, uma floresta linear de esbeltas
lâmpadas ornamentais, da renda brônzea dos braços tendo suspensos
grandes pomos brancos, e a lavrada raíz mergulhando na macieza de
esguias e escovadas _pelouses_, picadas de estatuetas decorativas.
Depois, naturalmente, e fiel aos consabidos dogmas triviais da estética
urbana, o formoso côrso, deixando o largo aprumo inicial, passa a
desdobrar-se e a colear em mesurados lacetes de roda do grande lago, ao
qual por seu turno não faltam as casotas, pontes rústicas, lilipucinas
cascatas, esguichos anémicos, barquinhos, grutas do estilo, e o
gongórico _restaurant_ de rigor. Agora, neste consagrado circuìto da
moda, é de-veras embaraçante, pejorativa, enorme, a afluência de
veículos, cuja marcha se torna grave e cheia de importância. Há um
refinado propósito de ostentação, uma patente fúria exibitiva; a cada
passo, neste afluir compacto da assistência, produzem-se
engorgitamentos, empastes, nódos, que obrigam a paragens sucessivas;
tudo servindo de pretexto amável à mutuação de sorrisos, acenos,
agrados, câmbios de frases familiares entre as pessoas conhecidas. Há
vida, há movimento, há opulência, há ruído; mas tudo cerimoniosamente
espontado, sem espontaneidade e sem brio. De família para família, de
curva para curva, a cada novo cruzamento neste mostruário ambulante de
vaidades, as vêsgas miradas perscrutadoras, os desapontados gestos, a
raivosa estupefacção, as bôcas sumidas de inveja, impõem-se ao brando
rodar das equipagens e ao bisbisoteio da chalra sobrenadante. E em tam
pomposa parada de atrelagens, alguns vélhos _fiacres_ vão ainda
derivando de escape, ao largo, num repúdio de instinto, humildemente,
como que vèxados no seu anonimato de miséria.

Ao mesmo tempo, uma afluência enorme, desbordante e luzida por igual,
circula e galreja a pé, bordejando abundante as _aceras laterais_,
taquinando com airosa presteza a areia fulva dos passeios. Com
saltitante orgulho o Azeredo vai mostrando ali ao amigo uma que outra
figura conhecida. O Silveira, todo na hora presente intercala com gulosa
vivacidade as sôltas interrogações que lhe acodem a propósito, no
impressivo relato da sua excursão da manhã. Nota com espanto como, aqui,
adoráveis grupos de _señoritas_ se permitem deambular, rir, volitar
livremente, fóra do ôlho suspicaz das mamãs, desenvôltas, seguras, num
confiado aprumo e em plena independência. Nota igualmente que os homens
vestem em geral com desafectada elegância, e que as mulheres teem uma
_allure_ cheia de graça, uma linha de conjunto harmoniosa e fina.--Mas a
moldura que a Natureza oferece a êste palpitante quadro social é
tristemente desataviada e mesquinha. A vegetação é pobre. Abunda a
mancha verde-sujo dos _eucaliptus_, formando por vezes tufos
gigantescos, e avultam alguns maciços mais de chorões, de plátanos, de
cedros, de salgueiros; porêm a maior extensão dêste chato parque
embrionário,--meio _square_, meio pântano,--é povoada por uma fruste
vegetação arbustiva, sem brilho, froixa, mal cuidada; e há avenidas
inteiras orladas por pobres palmeiras _dépaysées_, o tronco anão, a
folhagem esfarrapada e lívida, que na sua enfermiça invalidez são um
eloqùente protesto mudo contra a incongruência edílica, arrefecem o
ambiente e tornam a perspectiva dolorosa. E ainda é de notar que, para
alêm dum reduzido perímetro, neste arremêdo incipiente do _Bois_, o
traçado pretencioso dos bons caminhos de rodado, das áleas luxuosas, se
interrompe súbito a cada momento, cortado por tôda a sorte de
obstáculos. Se em qualquer direcção o desprevenido turista pretende um
pouco mais ao largo aventurar-se, logo aí lhe barra arreliativamente a
marcha uma passagem de nível de ferro-carril, a armatura bisarmal de
alguma grande construção em osso, ou os intransponíveis valeiramentos de
charcos, barrancos e atoleiros de tôda a espécie. As rodas dos veículos
afundam-se e peganham impotentes na revôlta viscosidade das argilas
empapadas. Não há continuìdade nem segurança de trânsito nesta
desarticulada rêde de aberturas. E debalde alongamos interrogativamente,
a um e outro lado, a vista morosa e cansada. Por tôda essa monótona
extensão de rústicas _parterres_, a luz rasante do crepúsculo apenas faz
agora saltar o estagnado espelho dos lameiros e aguaçais, que salpicam
bastos, com as suas placas corrosivas, como pústulas, a inevitável
sucessão das lamas de mato ruço e rasteiro estranguladas entre a
via-férrea e o Plata, onde a luz falta e a humidade abunda.

Na volta, já noite fechada, o _boulevard_ aparatoso de Callao flambeava
de côr e regorgitava de vida. Outra das grandes e opulentas nervuras da
cidade. Tudo brilha, tudo vibra, tudo reluz neste largo e inquieto
diorama. Na mesma sombra há movimento. Sôbre o piso esmerado, de madeira
em paralelipípedos, os numerosos veículos teem um rodar suave e
acariciador, sem estrépitos e sem sobressaltos, como se corressem sôbre
alfombras. Pelos largos passeios marginais, na onda ronronante da
multidão, saltam vivas as arestas e as figuras cortam-se com violência,
surpreendidas em flagrante e trazidas ao máximo relêvo pela modelação
crua em que, do mesmo passo, as envolve o grande jôrro de luz branca,
dos candelabros do alto, e as espadanas de luz doirada golfando dos
_escaparátes_ scintilantes.

O Silveira seguia interessadamente o inédito desdobrar desta cinta
magnífica, com a alma tôda nos olhos e a ventoínheira cabeça passando,
em súbitas e incansáveis alternâncias, dos florões repolhudos dos
palácios à toalha esplendente da rua; quando, de repente, imperativo,
nervoso, arpoando forte o braço ao amigo:

--Ah, ó menino! pronto, pronto... ali! manda parar.

--Aonde?

--Ali! ali!--insistiu, na mesma imperiosa querença, o Silveira.

E apontava um grande letreiro, projectado, à altura dum 2.^o andar,
perpendicular sôbre a rua, onde em flamantes caractéres sucessivamente
brancos e rubros, se lia--*Idiomas Berlitz*.

Mas, incommovível e suspenso, o Azeredo, sem perceber:

--Ora essa! e porquê? Estás doido?...

--Não, filho! manda parar, já te disse... Preciso adestrar-me no inglês,
p'ra me entender com uma criatura deliciosa que conheci a bordo. Se tu a
visses!

Agora o Azeredo ria a perder, sacudindo esperto o busto, espalmando as
mãos sôbre os joelhos.

--Ah! ah! ah! Essa nem parece tua.

--E então?--retrucou, fazendo um mômo de sério, o Silveira, quáse
ofendido.

--Pois tu não vês?... Por mais _apurado_ que quizesses andar, nunca
lograrias arranhar algo, e bem pouco, do inglês, senão passados dois ou
três meses.

--Tanto tempo?

--Seguramente. E entretanto a mulhersinha teria sabido arranjar... quem
melhor a entendesse.

Cabisbaixo e um pouco triste, o Silveira ruminava mentalmente uma
aquiescência. E com o ôlho ladino, o amigo:

--Não me sejas zonzo, rapaz! Em matéria de amor as mulheres não querem
saber de palavreado. Obras, obras...--E com um desprezivel dar de
ombros:--Que diabo! nem pareces português.

O _auto_ seguia sempre, mole e suavemente. Deixada para trás a falaciosa
esperança dêsse letreiro redentor, já os dois amigos atingiam de novo a
Praça do Congresso e seguiam ao longo de Rivadavia, a internar-se no
chamado _centro_ da cidade.--Infindáveis ruas estreitas e banais,
perpendicularmente enastradas, no seu hirto paralelismo e na sua
esquadria inflexível riscadas sempre indefinidamente. A esta hora
ruidosa e opressiva da noite, elas são como que meteóricas fendas
lineares talhadas a prumo, num rectilíneo enfiamento sem termo, ao longo
do ferro e o cimento _recocó_ dos grandes quarteirões maciços. Não há um
desafôgo, uma abertura, uma fuga de espaço livre ou um claro de benéfico
repouso, neste atropelado escoamento de coisas bárbaras e difusas. Foram
ruas bastantemente espaçosas e amplas, há quarenta anos, para suprirem
então ao movimento de duzentos ou trezentos mil habitantes; porêm hoje,
deplorávelmente adstringindo ainda o coração duma cidade cuja população
quintuplicou, tornadas duma lamentável e nociva insuficiência. No seu
estrangulamento arcaico chocam-se, cruzam-se e baralham-se delirantes
tôda a casta de obstáculos e de ruídos. A cada momento há que parar. De
quarteirão para quarteirão, a cada passo o moroso avanço é cortado por
embaraçosas suspensões, em inalteráveis sucessões de minutos que parecem
séculos. Enfastiado e impaciente, o Silveira propôs ao amigo
apearem-se.--Não podia aturar mais aquela maçada! A pé sempre girariam
melhor.--Mas nem por isso a mudança de instrumento locomotor lhe trouxe
a ambicionada largueza de movimentos. Pior agora, talvez... Pelos
passeios laterais, mancos e exiguos, mal podem caminhar duas pessoas a
par; e ainda há que seguir com invariável aprumo e a maior cautela, afim
de evitar o róce brusco dalgum dêsses tilintantes e monstruosos
_tramways_ que teimosos e incessantes lhes passam, com estrepitoso
fragor, rasos mesmo pela aresta, em risco de nos levarem um braço ou
estriçarem uma perna.

Debalde no cruzamento das ruas a polícia, numerosa e atenta, faz
cabalísticas manobras com o seu bastão providencial, no honesto esfôrço
de regular os detalhes da circulação. Resulta sempre uma empresa árdua,
por vezes heróica, a ordenada canalização da túrbida torrente, do atrito
cosmopolita dessas grossas _mangas_ humanas, jorrando em sujas golfadas
por um afunilado labirinto a sua hipertrófica exuberância. Bem queria,
uma por outra vez, o Silveira deter-se um pouco, a analisar uma figura,
a sondar uma perspectiva, a anotar um pormenor, a observar as
_montras_... breve reconhecia ser, ali, tam singelo acto um cometimento
defeso à maior destreza humana; e tinha que arrancar brusco e retomar
caminho, entalado, enovelado entre os cotovelões nervosos do amigo e a
congestiva onda da multidão que o levava por diante. Depois, se êle por
acaso, inadvertido, voltava a abandonar a sua posição de equilíbrio
periclitante para contornar o arreliativo tapume dalgum prédio em obras,
para dar o passo a uma dama, para alcançar o amigo, para atravessar a
rua, logo de chamá-lo à brutal realidade,--e por vezes
simultâneamente,--a busina dum _auto_, as campaínhas das bicicletas ou o
timbre estridente de mais um grande _tramway_, cuja massa atravancadora,
farfalhante, enorme lhe cortava súbito a frente, ringindo, pesadamente,
com a esmagadora fúria dum mastodonte a abrir caminho pela selva.

O Silveira sentia-se enervado, aturdido. Aquele caminhar fatigante à
fôrça de opressivo, o grosso marulho sobrenadante, a profusa luz dos
cafés, dos teatros, _tiendas_ e _cinemas_, entontecia-o. Entretanto,
prendia-lhe a atenção a _étalage_ caprichosa e berrante das numerosas
lojas de engraxador,--peculiares de Buenos-Aires,--com as suas
estravagantes decorações, o seu afanoso saracoteio, e o imprescindível
fonógrafo, ao fundo, sob o relogio, entre arbustos anémicos e
hilariantes cartazes, roncando alegremente. Mas nem aí lhe era permitido
o gôzo inocente dum pouco de exame tranqùilo; porque, se um instante êle
parava à porta dum dêstes interesseiros especímens da fantasia
napolitana, logo de assalto, à altura do ouvido, lhe rompia o tímpano,
fazendo-o estremecer e fugir, a estentórica voz do pregoeiro, tam
nasalada e estrídula como as vibrações do fonógrafo do fundo, para a rua
a sibilar clamorosamente:

--_Gay ass_...

--_Gay asiento, cabayero!_

Teriam os dois caminhado assim pouco mais dum quilómetro, quando muito
prazenteiro o Azeredo, sustando o passo ao amigo:

--Cá estamos em Florida. Uff! Aqui não há trânsito de veículos a esta
hora. É tudo para o belo _flirting_...--E todo aos saltinhos,
tomando-lhe do braço:--Anda ver o _chic_, meu rapaz!

O mesmo alinhamento angosto e banal das demais ruas em tôrno, cujo
inflexível e cerrado travamento forma o clássico sistema vascular desta
parte da cidade. A mesma congestiva afluência, o mesmo côrso embaraçoso
e difícil, o mesmo movimento, o mesmo ruído tambêm; mas tudo isto aqui
constituido apenas pela dissonância de vozes, o afanoso giro e o
formigueiro sussurrante da multidão a pé, que, livre do tropêço
aplastante dos veículos, em plena alegria e em plena expansão,
revoluteia, aflúi, chalra, insinua-se, resvala e afirma-se prepotente,
tomando à vontade a rua tôda, as suas impressivas silhuetas saltando
nítidas e as sombras mordendo em vincos de agua-forte a espelhada
fluìdez do asfalto reluzente. É a hora elegante, a hora preferida.
Sente-se e sôa brando o peganho abundante das passadas, ao longo dêste
grande salão a céu aberto. Ao alto, pela noite nevoenta do céu,
superando o estrangulado limite dos prédios, recortam-se, penduram-se,
cruzam-se e dançam em profusão tôda a sorte de rèclames e adornos
luminosos, formando por vezes, de lado a lado, caprichosos viadutos, ou
suspensos em esplendentes rosários que entornam a sua luz gloriosa sôbre
o boleamento arquejante e febríl desta grande feira gentílica. Em baixo,
a sucessão dos estabelecimentos luxuosos é interminável: é uma dupla
feira, magnífica, deslumbrante, de grandes _magasins_ de modas,
livrarias, floreiros, _bibelotages_, _tea-rooms_, _étalages_
industriais, armazêns de música, adoráveis pequenos salões artísticos,
rijos mostruários de artigos de _sport_ que prendem um momento a atenção
dos homens, cristais de ourivezarias faiscantes que incendem em
pecaminosas tentações o perdido olhar das raparigas.--Qualquer coisa
como a _Rue de la Paix_ ou _Bond Street_, porêm com mais ímpeto, mais
côr, uma vida mais compacta e mais intensa, e sobretudo com uma
percentagem muito superior de mulheres bonitas.

É ver a harmoniosa graça com que elas caminham, no seu passo miudito e
firme, airosas, leves, naturalmente distintas, requintados exemplares da
espécie, felizes pelo segrêdo dêste seu donaire especial, feito de
nobreza, de doçura, de confiança e de vaidade. Os homens marcham com uma
tonada, uma segurança e um garbo igual, pisando ademais como senhores,
no convicto orgulho de si mesmos, incompatíveis, vê-se, com o instinto
da economia, altaneiros e certos na generosidade sem fim do seu torrão
bemdito. E todo o mundo anda ligeiro. Claro que no corriqueiro programa
dêste obrigado passeio elegante, de cada dia, a melhor e mais grata
função é consagrada ao galanteio feminino. À pinturilada porta da
confeitaria _L'Aiglon_ estacionavam grupos de _mirones_, a cada momento
renovados, tam de-pressa sumidos no grosso embate da onda, como logo
refeitos galhardamente; por tôda a parte se disparam frases amáveis e se
despedem olhares gulosos ao venusino apetite das lindas _señoritas_ que
por entre o deslumbramento mágico das lojas desfilam incessantes,--mais
claras que as luzes, mais adoráveis que os _bibelots_, de maior preço
que as jóias; mas tudo isto é expedito, fugaz e feito com sôlta decisão
varonil, em breves pausas de cavalheiresca excepção abertas na febre
geral do movimento, deixando a perder de vista e afundando num abismo de
ridículo a pasmaceira lamecha habitual da nossa Rua Áurea e do Chiado.

--Que tal achas, _ché_?!--indagou o Azeredo vivamente.

E com os olhos extraviados de júbilo, o Silveira:

--É encantador, é divino! Esta é a minha terra!

Assim fizeram os dois o percurso total da formosa rua, desde as
aristocráticas instalações de Harrods, passando pela arte postiça da
_London Gallery_, a arcaria pedante do _Jockey-Club_, a branca portada
do _Charpentier_, as _montras_ suculentas da _Rotîsserie Sportsman_, té
ao grosso amontoamento burguês dos armazens de Gath & Chaves. Ao cabo,
já sôbre a Avenida de Maio, o Azeredo assinalou trocista à curiosidade
ávida do amigo a chamada _esquina de los otarios_,--pascácia aresta de
voluntário suplício onde o amor pelintra dos caixeiros e amanuenses vem
baboso e marruaz aguardar a saída das costureiras. E aqui nêste
estrepitoso cruzamento de duas das suas principais artérias, atinge o
máximo da intensidade e da côr a agitação resfolegante da cidade. Dêsse
compacto torvelinho, da baralhada onda de tôda essa grossa turba em
delírio, ergue-se em quentes lufadas e toma e embebeda o ar uma
clamorosa ressonância, que é a evidenciação triunfante do bem-estar
físico, da fecunda actividade, da pletóra de fortuna e de riqueza desta
moderna Cartago,--a vontade feita moeda, um dos grandes fócos da
capacidade potencial do homem sôbre a terra, portentoso centro de
atracção, empório colossal do trabalho fascinante e criador, caldeado na
protéica ardência das mais válidas esperanças e as energias mais
potentes das raças de todo o mundo.




VI


Bem disposto e ávido por continuar o seu interessante exame objectivo da
cidade, o Silveira no dia seguinte ergueu-se cedo e desceu pronto a rua.
Andadas não mais de três _cuadras_, ei-lo de novo na Praça do Congresso.
Dez horas da manhã. Fazia um dêstes claros, suaves e incomparáveis dias
de outono de Buenos-Aires, em que do céu alto e límpido, de pura safíra
desce uma luz de oiro vélho a acariciar tranqùilamente as coisas. Os
raros relvados do centro da praça, com a sua rociada lanugem verde,
formavam apetitosos ninhos, e a airosa cúpula do Parlamento, ao fundo,
cortava-se na frescura opalína do ar em figuras de aguarela.--Mas agora
o Silveira notou que logo ao primeiro ângulo do vasto recinto, à sua
esquerda,--junto á base duma estátua que era a consagração ornitológica
dalguma grada personagem, de matacões e labita, desta as abas dançantes
brigando simbólicamente com as asas duma águia,--um joven de lunetas e
gravata branca, desbarbado como um _clergyman_, trepado a um banco,
acenava e arengava com entusiasmo a um hipotético auditório que não
vinha.

Atraídos pelo colchete dos seus dedos suplicantes e pelos seus brados
convictos, acodem primeiro alguns rotos _canillitas_, vendedores de
jornais; vários cocheiros e _chauffeurs_ em repouso vão depois até êle
preguiçosamente arrastando-se; véem ainda, estimulados por êste
comovedor desbarato de eloqùência no vácuo, os poucos desocupados que
pelos bancos próximos amadornavam a sua indolência. Curioso e atento, o
Silveira acercou-se tambêm.--Discreteava sobre política êste improvisado
apóstolo da rua. Falava em civismo, em liberdade, em igualdade, em
consciência, no sagrado exercício do sufrágio, nas inauferíveis regalías
do povo. Figurava enfáticamente o concurso às urnas como a «benéfica
corrente arterial» da vida colectiva, como a maior conquista e o mais
grato dever moderno. A sua persuasiva parlenda rola sempre sôbre a mesma
idéa, torturadamente exibida num laborioso acrobatismo de
logares-comuns; dir-se-ia que êle prolonga deliberadamente o seu
exórdio, a dar tempo a que a assembleia cresça. Agora há já mulheres
tambêm entre os ouvintes. E o glabro orador então aquece, afervora no
entusiasmo. Imagina-se compreendido e ala-se em conceitos galantes, em
primores de frases, desbrida-se em raptos de baixa lisonja sôbre as
reivindicações feministas e a sublime missão social da mulher. Gesticula
como um energúmeno, os desmanes da inspiração e o tom da voz sobem de
ponto, já com jupitereanas fulminações contra os abusos de caudilhismo,
a influência despótica da riqueza e a corrupção sistemática dos «grandes
satrapas» do poder,--inofensivas objurgações abrangidas entretanto pela
alçada coerciva da polícia.--Porêm o Silveira acha êste mandado
charlatão político menos interessante que os seus pitorescos
competidores _callejeros_, os barafustantes pregoeiros de pomadas e
elixires maravilhosos. E o assunto não o prende maiormente. Afasta-se
com tédio.

Segue então percorrendo a pé a esplêndida rua Callao, num regalado
vagar, saborosamente. Fareja com libidinoso apetite as morenas
crioulitas que passam, em cabelo; esmiuça com a vista maravilhada e
cativa tôda essa opulenta sucessão de _magasins_ elegantes, luzidas
_étalages_, soberbos hoteis e palácios sumptuosos. Mas eis que, ao
desembocar na praça Rodriguez Peña,--oh! fastidiosa surprêsa!--_mutatis
mutandis_, ele aí vem encontrar repetida a mesma scena de há pouco.
Igualmente aqui um veemente e fogoso orador bólsa sôbre um auditório
escasso e mesclado, por igual, a mesma encomendada torrente de diatribes
e proclamas. Com a diferença que êste é trigueiro e barbado, de aspecto
façanhudo, tem um _taxiauto_ por pedestal, e à sua ilharga flameja com
triunfante arrogância uma bandeira partidária. O pior foi que numa das
mais impetuosas fugas da sua inflamada homília, um polícia aproxima-se,
intervêm, exige-lhe a apresentação da licença; o interpelado titubeia,
estaca, empalidece, busca em vão um papel salvador nas algibeiras... e
por fim lança mão resoluta ao leme do _auto_, vôa e desaparece, entre os
bonachões aplausos e as casquinadas trocistas dos assistentes.

O Silveira lembrou-se então de ter lido, ou lhe terem dito, que naquele
momento a luta eleitoral _battait son plein_ na grande capital
_porteña_. Estava-se em pleno período eleiçoeiro, para a renovação
parcial de senadores e deputados. Os socialistas, na impetuosidade
juvenil da sua formação, tinham perante os vélhos partidos arreganhos
nunca vistos. Êstes respondiam com uma animação e um calor igual. Daí a
encarniçada vivacidade da luta, e a dispersiva abundância de tôdas essas
arrebatadas prédicas de moral política, cuja copiosa fúria palreira o
Silveira ligou naturalmente à profusão berrante de cartazes com muitos
pontos de exclamação, e de anodínas efígies de bons burgueses,
aspirantes a pais da pátria, que êle via por tôda a parte colados às
paredes,--sôbre todos batendo o _record_ da flamância e do réclame o
busto implicante dum já maduro candidato a senador, de grande flor na
lapela, no redondo carão sensual uns olhitos muito vivos e o grisalho
bigode erguido.

Assim se explicava essa divertida e basta erupção de relâmpagos de
civismo, por conta própria ou encomenda alheia, um pouco à maneira
inglesa. Porêm nada disto podia maiormente interessar quem, como o
Silveira, se expatriára de vontade, muito de indústria para furtar-se ao
galimatías político e não mais ser parte nem presenciar, sequer, as
sujas dissenções e as chinfrineiras brigas em que se esfacelava a sua
querida terra. Tambêm, pelo momento, êle começava a sentir que já
conhecia demasiado, para um hóspede de horas, como êle, os aspectos
exteriores, o ambiente vulgar e comum de Buenos-Aires.--Isto só não lhe
bastava, não era nada. Queria ir mais alêm...--Mordia-o o desejo
veemente, picava-o o apetite agudo de transpôr essas portitas de
sacristia, de franquear essa freirática barreira de inexoráveis
persianas com que êle esbarrava por tôda a parte, tendidas
herméticamente; queria, em suma, desvendar um pouco o pensamento, a alma
da encantadora grande cidade que êle escolhera para refúgio,
surpreendê-la nos castos mistérios do _hogar_, conhecer-lhe as
características morais, penetrar-lhe a vida íntima,--o que êle de
antemão sabia, pelo Azeredo, «ser algo difícil».

Entretanto nessa tarde, para aproveitar o tempo, e, como bom táctico do
galanteio, para não perder o contacto com as áticas perfeições e as
claras promessas de _Mrs._ Edith, decidiu ir de visita aos Di Paoli.
Tinha-os ali assim cêrca do hotel, na mesma Praça do Congresso. Uma
modesta pensão que lhes haviam agenciado, em casa duma «distinta
camarada de arte»,--explicára-lhe o conde pomposamente. Era um simples
rés-do-chão, como tôdas as antigas casas de Buenos-Aires, com a porta e
a seguir duas janelas. No humbral da porta havia um singelo _placard_ de
metal brunido, onde em negros caractéres se lia: _Lady Cowpel,
miniaturista_. Entrava-se, subiam-se três pequenos degraus, e passada
uma estreita porta envidraçada, tinha-se o invariável e minúsculo
vestíbulo, estiradamente continuado por um álgido corredor descoberto,
que uma longa fieira de discretas portas flanqueava, e que era alto,
fechado ao fundo por uma esguia charola de dois andares.--Uma mocita de
touca e avental branco acudiu à entrada do Silveira, a inquirir:

--_Qué desea, señor?_

Os Améglio haviam tomado o primeiro compartimento, logo à direita,--o
melhor da casa,--correspondente às duas únicas janelas dando sôbre a
rua. A esperta _mucamita_ adiantou-se e foi golpear à porta,
melindrosamente blindada de persianas fixas de madeira, como tôdas as
mais. O mesmo conde veio abrir; e logo com expansiva alegria, ao dar com
os olhos no amigo:

--Ah, o meu caro Silveira! Que bela surpresa!--Abriu convidativo a tôda
a largura o batente da porta:--Entre, entre... queira entrar.

O Silveira hesitou, ao ver o conde em mangas de camisa, e do mesmo passo
surpreendendo num relance a atravancada desordem do aposento.

--Venho talvez incomodar...

--Quê! Incomodar?... De modo nenhum. Pelo contrário! Entre... Fez muito
bem!--E para o interior, num altear imperativo da voz, anunciou
afávelmente:--Edith! o snr. João da Silveira.

O recêm-vindo arriscou então alguns tímidos passos no baralhado
pejamento do recinto. Era uma vasta peça, alta e triste, forrada a papel
vulgar, esfarpado a trechos e comido junto ao teto por eczemas de
humidade. Sôbre a lisura de bistre do soalho encerado, arrastavam-se um
pouco por tôda a parte as maletas, as caixas de chapéus, os sacos de
viagem, e havia pulverulências lineares de terra e lixo definindo
geométricamente o bôjo de grossos caixotes de pinho, intactos uns e
outros já eventrados, com as desprendidas tampas postas ao alto e
eriçadas de grandes prégos, hostís e recurvos como garras.

Em meio da sala o conde, sempre convidativo e afável, e depois de haver
cerrado a porta, apressou-se a explicar:

--Não repare neste desarranjo, meu amigo. Eu estava desenfardando e
arrumando p'r'aí assim de qualquer forma os meus ricos quadros. Parece
que não sofreram com a viagem.

--E são muitos?

--Ao contrário. Mas valem pela qualidade. Um tesouro!--E num
convencional arrebite de vaidade:--Oh, que deslumbrante exposição eu vou
fazer aqui!

Passou a mão nervosa pelas negras ondas do cabelo, moveu o tórax numa
leve opressão de cansaço, e mesureiro, abundante, sempre
inalterávelmente pálido, apontou desvanecido ao irracional exame do
Silveira a atramochada distribuìção das suas telas, umas já penduradas,
outras ainda provisóriamente postas de espalda contra o rodapé
surramposo da parede. E tambêm junto a esta um petisito obreiro,
arremangado e trepado a um escadós de tesoura, como que aguardava
ordens, inexpressivo, imóvel, de braços pendentes e o pesado martelo da
mão suspenso.

O Silveira julgou oportuno convidar polidamente:

--Bem, mas porque não continua?... Eu não quero que façam cerimónia
comigo.

--Cerimónia, nenhuma. É muito amável... É que estou um pouco
cansado,--obtemperou naturalmente o conde, enfiando o seu leve jaquetão
cinzento. Fez um sinal ao mocito da escada, que desceu e saíu em
seguida; e tranqùilamente, sentando-se, acendendo um cigarro:--Temos
muito tempo.

Neste momento abria-se uma espécie de envidraçada porta de alcova, no
mais escuso recanto da casa, e por ela fazia a sua apetecida aparição
essa sonhada delícia de _Mrs._ Edith, singelamente vestida,--uma saia
corrida de fina sarja negra, blusa branca de _liberty_,--e o mesmo liso
penteado em bandós à Cléo, o mesmo divino perfil de Madona, o mesmo ar
repousado e ingénuo, a mesma ateniense modelação das formas. Avançou
sorridente ao Silveira, saùdaram-se familiarmente, como dois bons
amigos. Logo ela recolheu pronto a mão, perturbada e esquiva ao beijo
demasiado expressivo do seu admirador; e tudo era depois circunvagar,
perante êle, os confrangidos olhos pela sala, e enconchar e alargar e
mover com vivacidade os braços, em adoráveis gestos de escusa.

O marido solícitamente interveio:--que o seu nobre amigo já sabia...
desculpava tudo. E para o Silveira continuou, desabusado e simples,
aclarando:

--Obtivémos por muito favor esta pequena instalação, que está longe de
ser decente... e muito mais longe de ser barata. Imagine: esta sala e
dois pequenos quartos, interiores, escuros, nada mais... quinhentos
pesos por mês. E a sêco. Uma barbaridade! Temos que ir comer ao
_restaurant_ Santini, que nos fica a cinco _cuadras_, na _calle_
Paraná.--Aqui a condessa fêz notar com repulsivo enfado, que, demais,
tôdas as manhãs a laboriosa preparação dos banhos e abluções «era uma
tragédia». E no mesmo tom o Améglio confirmava:--Uma roubalheira! uma
maçada! Conheço Londres, Viena, Berlim, S. Petersburgo... pois,
senhores, já vejo que não há como Buenos-Aires para fundir dinheiro!

--Não é nada tranqùilizador êsse anúncio para mim.

--Aqui o pretexto para tam alta renda é que as peças estão mobiladas.
Mobiladas!--comentou o conde, com uma desdenhosa mirada em tôrno,
encolhendo os ombros.--Mas de que maneira!

Não se recomendava com efeito o mercenário recheio da vélha sala nem
pelo confôrto nem pelo aceio. De reposteiros, cortinas ou alfombras, não
havia vestígio. Ao meio da principal parede, um aparatoso e ratado
grande contador japonês, ainda com preciosas incrustações de laca e
marfim, mal amparava a poder de cunhas e remendos a sua ruina
claudicante. Havia mais uma meia dúzia de desparelhadas cadeiras,
tamboretes e _fauteuils_, com o estôfo esfiampado e sujo; uma _étagère_
banal com conchas e búzios, um piano; e ao centro uma mesa redonda,
coberta por um coçado e lustroso pano franjado, de lanujem verde, agora
ciscado abominávelmente de pequenas ferramentas.

Com um novo lastimoso dar de ombros, tornou o conde para o Silveira:

--Nem uma chávena de chá lhe podemos oferecer!

--_To morrow_...--acudiu a mulher com adorável carinho.

E muito solícito o conde, interpretando:

--Àmanhan... Oh, àmanhã, certamente, com o maior prazer!--E
obsequiosamente lembrava:--O que podemos agora é preparar-lhe um
_punch_. Vai feito?

O Silveira recusou delicadamente.--Por modo nenhum! bastava-lhe gozar a
sua amável companhia.--_Mrs._ Edith ofereceu-lhe _bonbons_, atalhando
assim gentilmente o previsto fluxo de consabidas frases lisonjeiras que
de seguro ia seguir-se. E levemente ruborizado, o Silveira, a derivar,
com os lábios melados da guloseima e do desejo:

--Diga-me, conde... e a sua exposição onde a vai fazer?

--Ainda não sei... Sei apenas, isso sim! que vou _épater_ tôda esta
gente--rematou com a mais segura ufania, atirando fóra o cigarro, os
olhos muito brilhantes.

E posto súbito em pé, tomando com decisão o braço ao amigo:

--Isto é um mostruário de puras maravilhas. Veja, veja... venha ver!
Comecemos por o que está já aqui assim à vista. Aqui tem mesmo na sua
frente um Hobbena, o maior paisagista holandês depois de Ruysdaelf; a
seguir, um Corot, o grande psicólogo da paisagem; e agora em figura,
note! um dêsses graves e aristocráticos retratos de Gainsboroug, que se
pagam hoje a peso de oiro; outro, do seu émulo e contemporâneo Reynolds;
ali, um belo estudo de Salomon Konink; mais alêm, vá anotando sempre!
uma cabeça de Ticiano, de quem o Tintoreto dizia «que pintava com carne
moída». E por último,--plantava-se com intimativa diante do Silveira
boquiaberto,--por último, nada menos que um Velasquez! um genuino
Velasquez, ouviu?... o maior, o mais assombroso pintor de todos os
tempos.--A seguir, indicando pelo soalho os caixotes intactos:--Fóra o
que está ainda p'r'aí assim...--E sempre na mesma teatral fatuìdade,
dando um giro triunfante pela sala:--Não lhe dizia eu!?... É realmente
uma dôr de alma ter de desfazer-me de coisas tam raras e tam belas...
oh, mas ao menos encontro lenitivo na idéa de que o meu sacrifício há de
dar brado! e de que ficará memorável na grata lembrança dêstes bons
_porteños_ a maravilhosa selecção de obras-primas cuja aquisição eu
venho facilitar-lhes... um relicário de Arte como êles não viram nunca,
como não teem nada que nem de longe se pareça sequér!

_Mrs._ Edith, que depois de cautelosa inspecção acabára por sentar-se no
menos avariado dos tamboretes, seguia esta flamante parada estética,
sorrindo vagamente, numa complacência tranqùila. E do fundo do seu
obtuso espanto o Silveira, para o marido:

--Devem ser telas muito caras?

--Seguramente.

--Próprias talvez melhor para Museus.

--Ah, não... aqui todavia há riquíssimas colecções particulares. Duas ou
três, pelo menos. Eu estou bem _renseigné_... Sei como hei-de
manobrar.--E ladinamente, piscando o ôlho:--A coisa é segura!

Perante tanta soma de glória e de fortuna, uma instintiva dúvida chispou
na pétrea ignorância do Silveira, que aventurou tímidamente:

--E, perdoe o meu amigo, são bem autênticos?

Um claro riso triunfal aqueceu a cínica face do charlatão.

--Ora eis aí precisamente a garantia do meu êxito, a chave do meu
segrêdo! É o caso daquela minha invenção... Eis o ponto onde eu queria
chegar.

Convidou o amigo a sentar-se, sentou-se defronte, e sentencioso,
pausado, dobrando à frente o busto, os cotovelos sôbre os joelhos:

--Oiça... O amigo sabe que tem sido sempre um problema difícil poder
constatar-se com segurança a paternidade dum quadro, especialmente dos
antigos, recorrendo apenas aos meios indutivos e dedutivos até agora em
uso. Vamos a ver...--Contava pelos dedos.--A análise química das côres
empregadas não basta: primeiro, porque os discípulos dos grandes mestres
ficam usando, geralmente, as mesmas pastas e as mesmas tintas, o que já
estabelece confusão; segundo, porque, alêm disso, as melhores ou piores
condições de conservação duma tela, a humidade, o calor, as tropelias
dos vários retocadores e técnicos, e mil outros malefícios, chegam
muitas vezes a pô-la em estado de não ser possível emitir uma opinião
segura sôbre a sua idade e procedência. Bem, mas poderá então
recorrer-se, dir-me hão, ao exame e confronto do estilo, da maneira do
artista. Ora aqui igualmente o bom critério falha, falto de apoio sério,
porque não só, para cada artista, essas variantes no processo pictural
se produzem de ordinário caprichosamente, senão que ainda, quantas
vezes! os adeptos e os continuadores duma escola acabam por apaixonar-se
pelas características de execução do chefe e vão até assimilá-las
maravilhosamente. Aí tem o meu amigo Perugino e Rafael: dois
temperamentos artísticos de bem diversa índole, não é certo? E contudo,
comparados em algumas das suas melhores obras, parecem idênticos.

Contrariado e aborrecido por êste giro erudito do diálogo, o Silveira
esboçou um gesto de impaciência e mandou uma implorativa mirada a _Mrs._
Edith, que folheava uma revista ilustrada, distraídamente. O conde
prosseguiu:

--Há ainda a considerar os testemunhos da época, os chamados documentos
históricos, dum grande auxílio, seguramente. Mas tambêm êstes só por si
não bastam. Porque é por igual freqùente deparar-se uma ou outra tela
atribuida a qualquer dos grandes mestres da pintura, sob cujo nome tal
ou tal quadro foi inscrito nos Catálogos, e afinal vir a averiguar-se
que êle para semelhante obra não contribuira mais do que com a idéa e
déra a firma, tudo o mais tendo sido feito por algum dos seus
discípulos. Olhe, aí tem: o famoso _Retrato do Rabbino_, durante muito
atribuido a Rembrandt, porque em tudo correspondia à _maneira_
consagrada dêste genial pintor, hoje é catalogado como obra de Salomon
Konink. E quantos exemplos mais!

Agora, sim, a condessa, condoída da mortificada expressão e a
confrangida atitude do Silveira, tossicou, ergueu-se e veio de novo
oferecer-lhe _bonbons_, piedosamente. Enquanto, palreiro e implacável,
sempre sentado o marido:

--Esta deplorável deficiência de elementos de _contrôle_ dá como
resultado que a gente percorre os principais Museus da Europa e aí vai
encontrar, ainda hoje, muitas das suas melhores obras registadas e
inscritas sobre designações deficientes ou imprecisas. A célebre
_Visitação_ e a _Ressurreição_, do Museu de Berlim, ainda hoje se não
sabe a que primacial pincel atribui-las. O mesmo acontece com duas
_Madonas_, um _São Lourenço_, um quadro do _Gólgota_, um _Retrato de
Guerreiro_ e vários outros, todos peças de subido valor, no Museu de
Budapesth. O Catálogo contenta-se em nos dizer que são «da Escola
italiana». E semelhantemente em todos os grandes museus do mundo. Pois
bem! amigo Silveira...--acentuou com jubiloso orgulho, abaritonando a
voz, aprumando o busto,--para preencher tam lamentáveis lacunas achei eu
o processo! _Eureka!_ É a minha grande descoberta, a minha glória, o meu
segrêdo. Todos cá virão ter... é infalível! E quere saber onde pela
primeira vez ficou irrefragávelmente provada a eficácia, a importância,
a utilidade mundial do meu invento?... Foi em Londres, na _National
Gallery_. Conhece?... Há ali um grande quadro, _The Old Grey Hunter_,
que andava catalogado como obra original de Paul Potter. Porêm,
recentemente, o dr. Bredius formulára a êsse respeito dúvidas
ponderosas, inclinando-se a atribuí-lo antes ao belga Verboeckoeven.
Grande polémica nos jornais e revistas da especialidade, socorrendo-se
cada um dos contendores às suas melhores razões e argumentos, numa
renhida discussão sem fim... e sem resultado. Vai eu, que me achava
então em Londres, aproveitei... a ocasião era formidável!... propus-lhe
_crânement_ resolver a dificuldade, pôr a limpo a questão, aplicando o
meu processo microfotográfico. Acolheram-me a princípio com um
scepticismo incrédulo, mas acederam por fim. E sabe o que
aconteceu?...--E arrebatadamente, erguendo-se, num fogoso ímpeto de
vaidade:--Provou-se, mas provou-se por uma forma insofismável, entende?
que o quadro fôra realmente executado por Potter... porêm Verboeckoeven
pintára o cavalo.

No manso rosto complacente de _Mrs._ Edith, e ante a estupefacção alarve
do Silveira, perpassou o comentário burlão dum sorriso. Enquanto
doutoralmente o Améglio, em pé diante do amigo:

--Porque êste meu processo não só nos dá a segurança absoluta de saber
se um quadro é antigo ou moderno, mas qual artista, moderno ou antigo,
foi o seu autor.--Sacudiu a cabeça e ergueu as mãos com
encarecimento.--O que então se nos revela é portentoso! Tenho aí
provas... hei-de-lhe mostrar.--E agora modestamente, encolhendo os
ombros:--E contudo é um processo bem simples e ao alcance de qualquer
que tenha uma certa prática de fotografia.--Voltou a sentar-se, e com
dogmatismo pedante, feita uma pausa de importância:--A questão é esta:
cada artista, quando pinta, e considerado êste acto sob o ponto de vista
puramente _mecânico_, poisa as tintas na tábua ou na tela
_inconscientemente_, tem um toque digital invariável, traça
inadvertidamente uma grafia peculiar, que as centenas de pontas do seu
pincel vão de improviso riscando, numa impressiva obediência ao
automatismo nervoso, e naturalmente rítmico, da sua mão. É um movimento
irreflectido, instantâneo, um rasto imperceptível, que ao mesmo artista
escapa, que o seu espírito não dirige, que o seu ôlho não alcança... e
contudo ficará marcando por uma forma incontrovertida, eterna,
insofismável, a genuína autenticidade da sua obra. Qualquer
coisa,--entende?--como o reconhecimento duma assinatura por um perito
calígrafo, visto que a pena pode considerar-se como um pincel de duas
pontas. O certo é que os trabalhos de qualquer pintor,--quere sejam as
tentativas indecisas da primeira mocidade, quere os documentos fortes da
idade madura, quere ainda as já cançadas produções da sua última
maneira,--quando submetidos à prova microfotográfica, e basta ampliá-la
oito a dez vezes, revelam todos um traço, um toque, uma característica
idêntica. Em cada uma dessas minúsculas análises se apura sempre,
invariávelmente, que as sêdas do pincel, uma por uma, vão deixando um
fino sulco, ora retilíneo, ora quebrado, ora curvo, ora mixto, afectando
infinitas formas, porêm _idêntico_ sempre quando se trata do mesmo
artista, e diverso se se comparam artistas diferentes.--E novamente
posto em pé, sem pausa, sem piedade, no seu monopólio sem tréguas da
enfriada atenção do Silveira, que debalde ensaiava um derivativo
inocente da fugitiva contemplação da irlandesa:--Que me diz a isto,
hein?

--Eu acho maravilhoso!--acudiu compenetradamente o Silveira, na sua
ingénua credulidade; e erguendo-se tambêm:--Deve dar-lhe um dinheiral!

--Dinheiro e fama.

--Não precisava deixar a Europa. Tinha a sua fortuna feita.

--Alguma coisa se fez já por lá... Porêm a divulgação de benefícios
dêstes deve estender-se e apregoar-se bem por todo o mundo. Havia que
trazê-la a estas improvisadas organizações sociais da
América.--Esfregava as mãos de contente:--Vou acabar com a perniciosa
oligarquia, com a daninha praga dêsses falsos «peritos de arte»,
verdadeiros criminosos, que por tôdas as grandes cidades enxameiam e
manobram impunemente! E, aqui em Buenos-Aires, conto limpar as galerias
particulares de todos os falsos mamarrachos que uma cabotinagem sem
escrúpulos tem sabido impingir-lhes, a pêso de oiro, como obras primas.
Vai ver! vai ver!

--Uma tarefa benemérita...

--E lucrativa, pode dizer sem escrúpulos.

E os negros olhos ladinos do conde tinham a metalizada expressão duma
voraz confiança, ao atribuir-se por êste modo, com o mais audaz
desplante, o primado da invenção e o exclusivo da aplicação dum processo
que, ao tempo, estava sendo praticado com êxito notável por Laurie nos
Museus inglêses e por Thionville nas Pinacotécas da Bélgica e França.

Por fim o Silveira anunciou que ia retirar-se, desapontado galã, ante o
fracasso formal da sua visita. E solícitamente o conde:

--Então já?...

--São horas.

--Bem, mas volta àmanhã, não é assim? Queremos muito vê-lo aqui.

--_Without fault, to-morrow_,--instou numa sublinha amável a condessa.

--Teremos já então a casa um pouco em ordem e as télas tôdas à
vista,--tornou afável o marido; e persuasivamente, quáse ao ouvido,
batendo-lhe no ombro:--Tenho aí um pequeno Boucher e um Bastien Lepage
que lhe devem convir... Há-de gostar.

O Silveira sentiu frio na espinha e tomou pronto o chapéu, para
despedir-se. Crescia-lhe agora na alma, contra a gananciosa estratégia
dêste charlatão sem igual, um vivo movimento hostil, de tédio e de
repulsa. Pensou vagamente em não voltar... Porêm quando, ao receber as
ordens da condessa, sentiu nos lábios a carícia do veludo tépido daquela
mão pequenina, todos os seus apetites ribaldos espertaram e o reganharam
num instante. Rejubilou, aqueceu... e saíu, leve e ufano, todo já no
fantasioso encanto das delícias da tarde seguinte.


Era uma quinta-feira, dia habitual de _carreras_. Um passeio ao
Hipódromo estava indicado. Para poder obsequiosamente acompanhar o
amigo, o Azeredo obtivera permissão de faltar nessa tarde ao escritório.
À hora própria, tendo antes apalavrado um _taxis_, seguiram alegremente
para Palermo os dois, e em breve se incorporavam e deliam na grossa e
luzida _queue_ interminável, de peões de tôdas as classes e matizes, de
veículos de todos os preços, de meios de condução de tôda a espécie,
que, naquele desapoderado côrso à favorita diversão _bonaerense_, de
tôda a parte afluiam e acudiam avassaladoramente, bolsando gente a monte
do estribo plebeu dos _tramways_, atirando de golpe as portinholas dos
_wagons_ na via-férrea, fazendo pomposamente buzinar e rodar a sua
opulência pelo brunido asfalto das avenidas.

Considerava o Silveira com estranheza tam nutrida e animada concorrência
a um dia de semana, um dia de trabalho. O Azeredo explicou-lhe:--que
todo o mundo ali jogava, moços e vélhos, pobres e ricos, enfermos e
sãos, mortos e vivos... as mulheres e as crianças. Era a tintineira
geral. Quem não podia dar-se ao luxo de vir a Palermo, fazia obra pelos
palpites alviçareiros das gazetas. É que o jôgo, a alicantina, a
exploração, a fraude, o interêsse, a indústria da burla e o recurso ao
azar, eram o vício, a paixão, o móbil dominante, o despótico nervo
propulsor da vida da grande cidade. Os que não apostavam nas carreiras
especulavam em terras, jogavam nas loterias ou na Bôlsa. E ainda havia
os que tudo isto sabiam muito bem fazer, ao mesmo tempo. Da coisa mais
inocente nos surdia um _estafador_, das mesmas pedras da calçada nos
tomava de assalto, a cada passo, um ladrão ou um agiota.--E abrindo
depreciativamente os braços, rematou:

--Uma grande banca ao ar livre, uma batota ao abrigo das leis, é o que é
tudo isto.

--E tu?...--indagou o Silveira, num despreocupado sorriso.

--Ah, eu das corridas gosto. Bem vês... sou de cavalaria. Aos domingos
sou infalível.

Cruzavam ao tempo a aparatosa _grille_ de bronze, da entrada, e
penetravam no largo e luminoso desafôgo do _stand_, que, com as suas
luxuosas tribunas, rústicos palanques, pequeninos rondós, _pelouses_ e
minaretes, recordou ao Silveira Longchamps, porêm mais pobre de paìsagem
e com menos perspectiva. E, de roda, em pintalgados grupos sôbre a
escovada areia sôltamente ondeando e farandunando, a mesma concorrência
habitual a êstes logares, em tôdas as grandes cidades; os homens,
grandes, fortes, serenos, trajando com severa elegância, o tipo do
espanhol com vontade, no inteiro domínio de si mesmos; as mulheres,
desgarraditas e leves, numa harmonia de conjunto impecável aquatintadas
finamente, a airosa silhueta cingida com meticuloso escrúpulo ao córte
dos figurinos parisienses, mas sem afectação, numa _tenue_ de bom-tom,
num _virtuosismo_ ponderado e honesto, a que faltava aqui a nota
_criarde_ das _demi-mondaines_ lançando o estouvado pregão das últimas
extravagâncias.

Era um pouco tarde. Já os primeiros números do Programa haviam passado,
e estava-se num intervalo. Havia um grosso embate mundano junto aos
vários _guichets_ dos côbros e vendas. Cortava a suavidade pacífica do
ar o zangarreio áspero, burlão, de dois aeroplanos. Cêrca do recinto da
pesagem, um rijo mocetão trigueiro, desbarbado, gordote,--de gôrra,
_veston_ de presilha e polainas,--ao defrontar com o Azeredo exclamou
familiarmente:

--Ó amigo Azeredo, _como le va_?

--Bem, _gracias_! meu caro Jorge. E _Usted_?--acudiu, com um cordeal
apêrto de mão, o interpelado. E seguidamente, apontando ao lado o
Silveira:--Permite-me que lhe apresente o meu querido compatriota e
amigo João da Silveira?--E logo para êste, com insinuante expressão,
completava:--O sr. Jorge Saavedra, argentino, cavalheiro muito distinto,
um dos meus melhores amigos.

--_Ah, tanto gusto_...--mastigou entretanto Jorge, numa sublinha
indiferente àquele _shakehands_ banal a um desconhecido. Mas, tomado de
súbita simpatia ao encarar melhor a figura aberta e varonil do Silveira,
tornou com interêsse:--E há muito que se encontra em Buenos-Aires?

--Recêm-chegado apenas... há dias.

--E que impressões tem do meu país? Agrada-lhe?

--Enormemente! Uma linda cidade e um povo cultíssimo. Deve ser
encantadora aqui a vida.

O Saavedra sorriu, num jubiloso estremecimento de vaidade. Enquanto,
tocando-lhe na espalda, o Azeredo:

--E os seus favoritos hoje?... Agora, no _handicap_?

--Não corre nenhum produto de marca... _ché_, cá dos meus. Não me
interessa.

--Bem, e a seguir, no clássico _Montevideo_?

--Oh, bem fácil... A vitória seguramente vai ser de _Packoy_.

--Tambêm vou por êle, sim. Linda estampa, elasticidade, nervos,
magnífico sangue...

--E montado por Arturi. Não há que duvidar! Dá três quilos de vantagem;
é porque está bem seguro da vitória.

Caminhavam agora de manso os três, marginando a pista e sem maior
interêsse pela corrida, pronta e fácilmente acamaradados. Jorge Saavedra
desfazia-se, a um e outro lado, galanteador, afável, em rebuscados
cumprimentos, protectoras miradas e acenos abundantes. Os olhos espertos
do Silveira perdiam-se nas côres berrantes dos _jockeys_, na vivacidade
marulhenta do recinto, na perturbadora abundância de deliciosas figuras
femininas. O Azeredo rejubilava, irrequieto, vivo, sempre aos saltinhos;
e com familiar confiança tornou para o Saavedra:

--Diga-me, amigo Jorge, e para o clássico _Chevalier_ que aposta fez?

--Isso nem se pergunta! Vou por _Canora_.

--Como _Canora_!? É vontade de perder _plata_... Eu aposto por _Chaica_.

--_Chaica?_...--atalhou por sua vez o Saavedra, parando, com um rir
trocista.--Só por _broma_, _vamos_... _Es una cabuleadora_.

--É filha de _Pearl Rivel_!--redarguiu com intimativa o Azeredo,
formalizado.--Ora essa! Cumpridora a mais não poder ser. A sua primeira
prova foi a primeira vitória. Não se lembra? não viu que _performance_
mais distinta?... No tréno desta manhã sei eu que fez os 700^m em 41''.

--Não importa! não importa!--objectou Jorge, reatando a andar,
implicativamente.--_Canora_ é filha de _Old Man_ e procede do _haras San
Jacinto_, é bom não esquecer. É voluntariosa, por vezes, tem um jôgo
irregular, é certo. Oh, mas não há aí uma competidora com _más clase_ e
melhor estampa!

--No domingo perdeu.

--Por meia cabeça, sómente.

--Pois hoje perderá por cabeça e meia.

--_Ya lo veremos_,--pontualizou o Saavedra com arrogância. E de repente,
esperto e firme, agitando imperioso o braço:--O _Montevideo_, agora!
Atenção! Se _levantan las cintas_... A partida! a partida!

Os seis pôtros da escolhida _équipe_ para o clássico _Montevideo_ haviam
largado, com efeito, a tôda a rédea, imponderáveis, distensos, o pescoço
em flecha, disparada a garupa, os jarretes flamejantes fazendo voar a
terra. Com simultâneo gáudio do Saavedra e do Azeredo, _Packoy_ iniciou
galhardamente a direcção do movimento e nesse posto de honra se aguentou
e cumpriu, durante os primeiros 600^{m}; porêm depois, de tranco a
tranco marcando cada vez mais curto, inexplicávelmente, foi-se deixando
levar de vencida por forma que, ao desembocarem na grande recta final, o
seu distanciamento era já sensível. Entretanto, _Grey-Eyes_, um enxuto e
ágil potrito castanho que se estreava nesta corrida, atacando por fóra,
ganhava o posto dianteiro, que manteve até final, vitorioso _leader_, ao
passo que _Packoy_ apenas em quarto logar alcançou a méta.

O Azeredo barafustava e erguia os punhos cerrados, em ganas contra o
_jockey_ duma arremetida justiceira, furioso, saltitando. Enquanto, numa
concordante explosão de cólera, o Saavedra:

--Por culpa daquele _imbécil_ de Arturi! Sempre com a mania de conter as
montadas, a reservar-lhes o maior esfôrço, para efeitos teatrais, no
momento decisivo. E depois dá destas _planchas_! Iam tam bem... O que
êle precisava!

E golpeou desapontado com o chicote a sébe florida da vedação,
deslocando-se em largas e violentas passadas, o ôlho minaz, as narinas
aflantes.

Trouxe-lhe uma compensadora desforra a corrida seguinte, que resultou um
verdadeiro _match_ entre _Chaica_ e _Canora_, a sua ardente favorita, a
qual por mais de meio corpo atingiu primeiro o disco. Porêm desta vez
Jorge, delicado e comedido, não querendo ferir os machucados brios do
Azeredo como prático do _turf_, celebrou com moderado entusiasmo o seu
triunfo.

Faltavam ainda duas corridas; porêm o Silveira de relógio na mão, tomado
dum vago embaraço, arriscou--que não podia demorar-se. O Azeredo, que
estava ao facto do compromisso galante por êle tomado na véspera,
desculpou-o. Mas, sinceramente penalizado, o Saavedra, dando preguiçoso
a mão a êste fulminante captador da sua simpatia:

--Retira já?... _Qué lastima!_

--Eu é que sinto imenso ver-me forçado a privar-me, assim de repente, de
tam amável companhia. Mas... o Azeredo sabe...

--É certo, é... Precisa deixar-nos--confirmou pronto o amigo; e súbito
com um jubiloso relâmpago na pupila insinuante:--Mas eu tenho uma idéa,
amigos! Podemos comer hoje os três juntos. É uma compensação.--Premiu
afávelmente o braço de Jorge:--_Tiene Usted compromiso_?

--Não... para hoje, não...

--Óptimo! Considere-se então convidado, hein?

--_Convenido_.

--Às 8, no _Petit Salon_.--E com vivacidade, para o Silveira:--Tu
espera-me no hotel. Vou-te buscar.

Saùdando ligeiramente, o Silveira partiu logo. Pouco depois das 5 horas
estava em casa dos Di Paoli, tendo antes comprado, na passagem por
Callao, um fino ramo de _muguet_, a flor predilecta da condessa. Fez
retinir fortemente o botão eléctrico. Ia decidido a «atirar-se de vez»,
a arriscar um resoluto golpe de audácia que pronto lhe assegurasse o
triunfo definitivo.--E que auspiciosos prenúncios para o seu intento!
_Mrs._ Edith estava só, e um verdadeiro apetite, arranjada lindamente.
Pela abundância cálida do cabelo uns toques déstros de ferro haviam
passado, ondeando-o ao de leve; não menos déstras pinceladas de _kohl_
haviam engrossado a linha sensual dos cílios, haviam como que incendido
num voluptuoso fogo latente a macerada sombra das olheiras; e daquela
plástica impecável os movimentos rítmicos podiam íntegros surpreender-se
e adivinhar-se, pelas indiscretas lisuras e os denunciadores refegos do
precioso _kimono_ de sêda _grenat_ que os cingia apenas, sôltamente,
deixando por inteiro a nu os antebraços e a alvura do colo deslumbrante,
que nas suas linhas de contacto com a sêda adquiria reflexos duma rosada
e fluida transparência, como se fôra carne feita de pérolas moídas.

Foi um verdadeiro _coup de foudre_ para o Silveira a inopinada fortuna
desta situação e o supernal encanto desta figura. Beijou a mão da
condessa e entregou-lhe o ramo, tremendo ligeiramente, sem palavra
ferir, a língua sêca e os lábios frios. Ela correspondeu deixando fugaz
entrever, num sorriso discreto, a rociada frescura dos dentitos brancos.
Agradeceu o mimo da lembrança em carinhosas palavras, para a rasa
insuficiência linguista do Silveira arreliadoramente intraduzíveis. A
seguir, muito naturalmente, prendeu sôbre o coração dois dêsses cachos
de minúsculas caçoletas perfumadas, e sem perturbações nem pressas, o
olhar vago e repousado, sempre tranqùila, foi acomodar os restantes com
atento esmero numa enfusita de vélha faiança, que trouxe da
alcova.--Veio ao tempo a _mucama_, trazendo numa bandeja o chá e dois
pratitos mais, um com _sandwiches_, outro com bolos secos, sofrivelmente
sédiços. Dispôs em silêncio o serviço sôbre o pano coçado da mesa e
rodou num instante.

Na mente escandecida do Silveira o desejo, o ardor e a fúria erótica
subiam de ponto. A sua incorrigível fatuìdade, os numerosos e fáceis
triunfos que ilustravam a sua larga fôlha de conquistador, debruavam-lhe
das falaciosas côres dum prisma demasiado optimista a singularidade algo
problemática da situação; faziam-lhe tomar por claros propósitos de
sedução, por um convite formal ao galanteio, o que não passava talvez
dum ardiloso laço feminino. Pelo momento, a condessa convidára-o
simplesmente a sentar-se e servia-lhe o chá, com adorável intimidade,
era certo, num abandôno insinuante, avançando para êle o braço nu,
enquanto as amplas prégas do _kimono_, dobrado à frente, desnudavam por
igual, em perturbadores relances, a rósea maravilha do colo erguido em
suaves ondas de pecado. E tentava explicar-lhe:--O conde não estava...
não poderia talvez vir senão tarde.--Quando o Silveira tal chegou a
compreender, sentiu nas orelhas um calor de evidência, e na noite
ardente das pupilas relampeou-lhe um cântico de vitória... Mas aqui o
seu grande embaraço! Queria mostrar-se um galã à altura, dominador
seguro dêste lance de favor; urgia que iniciasse verbalmente o seu
ataque; porêm como?... se êstes soberbões ingleses faziam gala em não
manejar outra língua senão a sua! Como em nenhum idioma os dois podiam
claramente entender-se, as suas abortadas tentativas de diálogo
resultavam assim um desbarato de palavras, confuso e estéril, um
titubeio divertido e por vezes cómico, um atabalhoado duelo de absurdos,
desfechando sempre na mesma burlesca e formal impotência, cortado de
suspensões, sublinhado a risadas. Havia que suprir a deficiência da
frase pela abundância e a vivacidade do gesto, muitas vezes. E
lascarinamente o Silveira aproveitava para desbordar-se em atrevidas
manobras digitais, para arriscar sorrateiros toques sugestivos e
ensaiar, como filhas do acaso, aproximações lascivas,--que _Mrs._ Edith
acolhia entretanto com inalterável singeleza, como que sem dar-se conta,
desprevenidamente, abotoada numa cega inconsciência infantil e numa
frialdade desesperante.

Esta atitude inverosímil da condessa desconcertava o Silveira, punha-o
doido de despeito, de raiva e de desejo.--Que demónio! Voltava a
esbarrar com a mesma diva impassível, a mesma criatura calma,
desentendida e ingénua do começo da viagem... Vão lá entender mulheres!
Essa deliciosa, essa picante doidelas dos dias de Entrudo escapava-lhe
outra vez!--E no desnorteado furor que o aquecia, êle já descia a
processos de mau gôsto, cometia imprudências, roçava-a ombro com ombro,
apertava-lhe o pulso, tocava-lhe o pé debaixo da mesa.--Então,
súbitamente, e como que obedecendo a algum convencionado sinal, fez a
sua inesperada aparição na salinha a dona da casa, Lady Cowper,
sobraçando um paquetito.--Alguns dos trabalhos das suas discípulas, que
ela vinha obsequiosamente mostrar ao recêm-vindo.--O Silveira teve ganas
de lhe morder. Ela era uma quarentona repulsiva e obêsa, vestida de
amarelo, pequena, ruiva, de olhos claros, marcada por abundantes
sarapintas de bistre na face enlagostada. Mesureira, bajulando,
adiantou-se a saùdar, com o seu sorriso verde de criatura falhada, e
logo a sapuda concha das mãos sardentas a semear pela mesa uma parada de
miúdas bugigangas. Eram rebuscadas miniaturitas, medalhas e iluminuras
banais, camafeus, embrechados, pirogravuras e esmaltes, de péssimo
desenho, duma execução vidriosa e dura como o aspecto paleolítico da
professora. Esta porêm, importante e de pé, o ventre contra a mesa, não
despegava de encarecer essas efémeras obritas de _virtuosismo_ barato,
mostrando-as com ufania, uma por uma.--Que visse bem... aquele finíssimo
esmalte _Luís XV_... êsse delicioso retratinho com moldura _Império_...
_uma liseuse_ para um livrinho de Horas... esta preciosa moldura gótica
em cobre rebatido. E aqui... e agora... e isto mais. Verdadeiras peças
de arte, havia de convir. O que não admirava, feitas como eram tôdas por
meninas da primeira sociedade.--Exprimia-se num mau castelhano,
horrivelmente gutural, ora aspirado, ora cortante, como golpes de
machado rasgando lenha. E passava sem cessar a aborrecida miuçalha às
mãos do Silveira, que no propósito inocente de correr breve com a
importuna, tomava fulo cada peça e logo a arrumava, após um exame
sacudido, sumário, quáse agressivo.

Baldo estrategema, porêm, porquanto aquela empatadora inexorável tomava
agora familiarmente assento ao lado dêle, e numa astuciosa derivante,
erguendo a esborifada cabeça e passeando com admiração as pupilas
deliquescentes pela sala:

--Soberba colecção! não haja dúvida. Um verdadeiro museu. Fazia a minha
fortuna... Já reparou bem, sr. Silveira?--E num propósito de baixa
adulação, com intimativa, alongando o braço:--E que fino, que lindo o
retrato da senhora condessa! Que não está favorecida...

Só agora o Silveira notou que, com efeito, uma aparatosa fileira de
télas, em ricas molduras doiradas, remoçava e fazia viver dos brilhos da
sua cantante policromia a tristura pelintra das paredes. A um canto
havia, contrastando deplorávelmente, pela realização e pela factura, com
todo êsse broslamento sábio de figuras, de planos e de tintas, um perfil
a óleo da condessa.

Como já fazia escuro, _Mrs._ Edith dirigiu-se ao prendedor eléctrico, a
soltar a luz; no momento justo em que o marido entrava e vivaracho,
alegre, atirando o chapéu, seguiu direito ao Silveira, a apertar-lhe a
mão. E logo, dando-se conta do ponto onde curiosa a sua atenção incidia:

--Aquilo é um modesto ensaio meu. Não vale nada.

--O modêlo não podia ser melhor...

O conde baixou a cabeça e dobrou-se, num grato desvanecimento.

--É que eu pinto tambêm um pouco, não sabia?... Tôdas as belas
manifestações da arte teem em mim o mais insignificante dos seus
cultores.

A seguir, desatou-se em prolixas e sabujonas desculpas por ter vindo
assim em _retard_, faltando, bem a seu pezar, a um compromisso para êle
tam apreciável. E esfregando as mãos com ruído:

--Mas estou contente! Parece-me que tenho já local para a exposição... e
de graça. O salão dum compatriota meu, que é fotógrafo, na _calle_
Viamonte,--a fotografia mais elegante, mais _smart_, mais _select_ de
Buenos-Aires.

Lady Cowper, sentindo agora a sua presença dispensável, havia deslizado
ignoradamente. Entretanto o Améglio, com o olhar vivo e matreiro, em
presunçosas atitudes tomando a sala tôda:

--E então, agora, vê bem como são preciosas as minhas télas! Que grande
lição estética eu venho trazer a esta gente, que colecção rara, que
magnífico conjunto!--Depois, cabotino, insinuante, travando confiado o
braço do Silveira e pondo-o na frente dum pequeno _estudo_ de paìsagem,
onde uma figurita banal de aldeã se esboçava, perdida numa _aleluia_
primaveril de papoilas e malmequeres:--Aqui tem o seu Bastien Lepage.

--O meu quê?...

--O quadrito, sim, que lhe destino. Uma pequena maravilha, como vê...
Note como ali assim a figura poisa singelamente e sem _ficelles_ de
destaque, tocada simplesmente, com o mesmo valor de todos os mais
acessórios do quadro. Era, como sabe, a característica dominante dêste
grande mestre naturalista.--Encarecia sugestivo a expressão:--Uma
tentação, não é?...--E suasivo, assentando-lhe a mão sôbre o ombro:--Que
me diz?

Cabisbaixo e mudo, vergado ao pêso do fulmíneo ataque, o Silveira
interrogou numa mirada suplicante _Mrs._ Edith, cujos olhos doces
esboçaram uma solicitação de anuência, irresistível... E êle então,
pávido e submisso:

--Bem... mas por quanto?

--Oh, meu caro amigo! Isso é uma questão puramente secundária. Entre
nós, já vê... Qualquer coisa... Nem vale a pena falar... Se as coisas me
correrem bem, terei até muito prazer em lhe fazer presente dêle.

--Não, mas eu é que não quero...

--Depois! depois!

Súbito, numa bem marcada simulação de desinteresse, o conde sentou-se ao
piano, e sôltamente:

--Quere ouvir uma valsa que improvisei esta manhã? Vou tambêm
dedicar-lha.

E, com um ar boémio impagável, bamboando o busto, os olhos em branco e a
cabeça sôbre a nuca, fazia gemer numa batida monótona de compassos
triviais as cordas desafinadas.

Nos nervos em sobressalto do Silveira corria o mesmo frio arrepio da
véspera, agora mais áspero, mais persistente... subsistindo ainda e
vibratilizando-o, minutos depois, já rua fóra, junto com o exaspêro
íntimo pela sua passividade, a sua indecisão, o seu acobardamento
estúpido ante aquele descarado assalto à integridade da sua algibeira.

Numa vergonha instintiva, absteve-se de contar o humilhante episódio ao
Azeredo, que pouco antes das 8 veio demandá-lo ao hotel, conforme se
combinára. Saíram logo depois, a pé, a tomar a _calle_ Esmeralda, e por
esta se internaram até ao ponto onde uns mocitos de libré encarnada
lidavam à porta dum grande barracão, murado de espelhos.

--É aqui, meu vélho. Espera um instante.

Dizendo, o Azeredo entrou ligeiro e atento, a buscar se acaso o Saavedra
já estaria, e a marcar uma mesa; enquanto cá fóra o Silveira seguia
alheadamente o taquinar miudito das _muchachas_ que entravam para o
_cinema_ defronte.

O Saavedra apareceu por fim, às 8 e meia.--Vinha um pouco em atraso...
mas era muito bôa hora, _verdad_?--Acolhido pelo festivo aplauso dos
dois amigos, e num momento estavam todos à mesa. Jorge vestia agora um
_jaqué_ negro irrepreensível, fechando por um só botão e extremamente
cintado, colete de bandas brancas, folgado e muito aberto, uma linda
pérola a prender o nó esguio da gravata, calça raiada de fantasia e bota
de polimento. Foi êle o investido das graves funções da escolha do
_menu_.--_Petits canapés_ de _caviar_ para _hors d'oeuvre_, uma rica
_croûte au pot_, filetes de linguado com môlho de ostras, depois uma
_entrada_, espargos, e por fim um prato crioulo, o coireáceo
_churrasco_, especialidade da casa.--A questão das bebidas foi árdua,
pouco menos de insolúvel. O Silveira lembrou tímidamente o _Colares_,
que não constava da lista, não havia; então Jorge patrióticamente
insistiu que provassem _Trapiche_: porêm o Azeredo opôs-se, com um
depreciativo distender do lábio, e optou-se afinal por um qualquer
_Borgonha_ de duvidosa procedência.

Jorge iniciou a comida com apetite, e agitava-se petulante, ufano,
folgazão, todo ainda no vibrante estímulo das emoções hípicas da tarde.

--Oh, aquela impagável _Canora!_ que _preciosura!_ Viram bem?... Correu
os 1:400 metros em 1',22. É verdadeiramente o _record_ mundial da
velocidade, jámais registado nos anais do _turf_. Eu esperava muito
dela, mas não tanto, palavra! Vale o seu pêso de oiro.

--De quantos quilates?--amolou, trocista, o Azeredo.

--Oiro português, antigo... do tempo dos vossos Brasís,--soube ripostar
pronto o Saavedra, numa lisonjeira evocação que os dois acolheram com um
quebrado sorriso. E sempre contente:--O certo é que esta vitória não só
exaltou os meus brios, como trouxe a mais agradável compensação aos meus
desastres anteriores. Porque, meus caros amigos...--E numa aberta de
intimidade, abatendo a voz, dobrado sôbre a mesa:--Nestas duas semanas
últimas de _carreras_ saíram-me da algibeira ao redor de três mil pesos.
_Un clavo_... Mas a papá direi que perdi trezentos.--Depois, atencioso e
outra vez natural, para o Silveira:--E em Portugal há _aficionamiento_
pelo _sport_ hípico?

--Um pouco...

--Bastante! bastante!--acudiu o Azeredo, num saltinho convicto.--Há
muito bons calções. Tem agora havido, no hipódromo de Palhavã, uns
concursos internacionais muito brilhantes.

--Ah, eu recordo-me de ter visto no _Palace Théâtre_,--obtemperou Jorge,
complacente, atacando a sopa,--um _film_ intitulado _Os Centauros
portugueses_, que era realmente admirável.

--Sim! sim! trabalhos da nossa escola de Cavalaria.

--Que _raids_! que saltos... que segurança, que destreza! Não se pode
exigir mais.

--E pode o amigo dizê-lo sem favor. Superior aos italianos!--jactancioso
o Azeredo rematou.

E serviu cordialmente vinho ao Saavedra, que, daí a momentos:

--Eu p'r'a semana volto ao campo. Tenho tôda a família lá, aqui já
tratei do que tinha a tratar, e papá não abona mais _plata_.--Encarou
numa penhorante afabilidade o Azeredo:--O amigo, já sei, não pode vir...
_qué lastima_!--E para o Silveira, abruptamente:--Porque não vem comigo?

Ante a inesperada oferta, os olhos ladinos do Azeredo dilataram-se de
espanto, quáse incrédulos, e o deslumbrado Silveira aprumou-se, num
estremecimento de grata surprêsa. Com sincera espontaneidade Jorge
insistiu:

--Venha! Digo-lhe isto de vontade.

--Muitíssimo agradecido.

--Não conhece ainda papá nem a minha família. Mas não importa! Fóra da
cidade não há protocolo nem cerimónias. E eu posso levar as pessoas que
me apeteça. Tenho carta branca, _ché_... faço o que quero.

--Vai, vai, meu rapaz!--estimulou, crepitante de júbilo, o Azeredo.

--Bem vê, Buenos-Aires neste tempo é detestável!--tornava entretanto,
com enfatuado ar, o Saavedra.--Não há ninguem, morre-se de tédio. As
famílias com quem se pode tratar, _la gente bien_, está tudo fóra...
veraneiam pelas _estancias_, como nós, pelo Tigre, Montevideo e Mar del
Plata. Bastantes deitam té à Europa. E quem não tem _mosca_, _ché_...
para dar-se qualquer dêstes inocentes regalos, encurrala-se
herméticamente em casa.

--Pouco mais ou menos como em tôdas as grandes cidades.

--_Si pues_... Porêm o sr. escolheu realmente para a sua digressão à
America uma época aborrecida. Não há _recibos_, festas, não ha
_Colón_... _Nada ni nadie_. _Que va uno á hacer_?...--Encolhia os ombros
com enfado; e a seguir, alegre, fanfarrão, abanando promissoramente a
cabeça:--Mais tarde, no inverno, sim! é a grande animação... teatros,
bailes _farras_, _clubs_...--Franzia brèjeiro os olhos:--E há então
por'í assim umas _tertulias_ de concorrência mesclada, que são
deliciosas... onde _uno afila_ à vontade e onde não faltam _mujeres
guapas_ entre as quais se pode mesmo, manobrando com discrição, _sacar
una bolita_...

Passava junto dos três, neste momento, um curioso tipo de vélho
precoce,--desbarbado, pequeno, os lábios sensuais, longo nariz rebatido,
na préga froixa das pálpebras a marca lívida das vigílias. O Saavedra
premiu-lhe familiar o antebraço:

--Meu caro Belisário, como vais tu?... Senta-te um pouco. Queres comer?

--Ainda agora eu almocei...

E com um arrastado ar _blasé_, sem mesmo olhar os convivas, molemente,
afastou-se, dandinando. Jorge aclarou:

--É Belisário Ruíz, grande amigo meu... um incorrigível _guarango_, um
_picaro redomado_. Aparece lá pela _estancia_, algumas vezes.

Depois, na mesma cativante afabilidade para o Silveira, reatando:

--Espero que se resolva e me dê o prazer de acompanhar-me.--Que eu nada
mais posso oferecer-lhe, lá baixo, que uma casa de campo modesta e mais
modesta ainda a companhia. Papá, mamã e _mi hermana mayor_... _Nadie
más_... Que eu tenho uma outra irmã, casada; porêm vive em Paris. Tem um
filho, de 16 anos, que é um rico amor de sobrinho. São os encantos de
papá... Mas, já digo, estão longe. Aqui na _estancia_ o amigo sentir-se
há um pouco só... porêm o que lhe vai faltar em atracções de convívio
caseiro, sobrar-lhe há em hospitaleira franqueza, em pitoresco, em
inédito, em sol, em liberdade.

--Estou positivamente encantado...

--Mamã é uma santa.

--É certo,--corroborou com amável convicção o Azeredo.

--Passa os dias pelos _ranchos_ da redondeza, a mitigar dores e adoçar
misérias... Agora minha rabugenta irmã, a pobre Célia--tornou Jorge com
uma afectuosidade tolerante,--essa aparece pouco e anda sempre de mau
humor, porque lhe faltam as igrejas.--Depois, com mal contida
ternura:--Resta papá... Êste é um caturra adorável, um moralista, um
filósofo, um sonhador... mas à moda antiga. E então que morre por
conversar! Em êle apanhando uma vítima a geito, nunca mais acaba. Um
_latero_ muito sofrível, já o sr. fica sabendo... Mas há que
desculpá-lo: é homem doutra época, conhece a história com'os seus dedos,
foi contemporâneo de tôdas as grandes figuras da nossa brilhante
renovação social e intelectual, de há quarenta anos. De sorte que,
assim, na sua ronceira opinião, tudo o actual é mau... não há nada como
os homens, os sentimentos, os costumes e as coisas do seu tempo. Até a
nossa mesma casa aqui em Buenos-Aires, há-de ver... é como que uma
flagrante exumação do passado. Escura, desconfortável, triste, cheia de
coisas vélhas... parece um túmulo.

E imediatamente, a desvanecer a impressão de enfriamento que por ventura
a sinceridade juvenil da sua exposição houvera feito alastrar no
simpatismo espectante do amigo:

--Agora tambêm devo dizer-lhe: se acaso a minha prima Maria Mercedes se
resolve a aparecer, como prometeu, então tudo aquilo toma outra vida,
outra animação... é como a passagem da noite ao dia, torna-se a
_estancia_ um paraíso.

--Com efeito!

--Ela é uma criatura preciosa, rara, singular! dito por todos...
deslumbrante como uma deusa e perigosa como um demónio.

--Não tenho a honra de a conhecer,--acudiu ladino o Azeredo; e todo
vibrante, num gesto cómico de defesa:--Nem quero!

Jorge sorriu; e com intimativa crescente, comprazendo-se na sua galante
e calorosa apologia:

--P'ra mim não, que temos demasiada intimidade, mas p'r'a grande maioria
dos homens esta minha prima é o que se pode dizer uma verdadeira
tentação.--E insinuante, jovial, quáse orgulhoso, detalhava:--Viúva,
rica, com 25 anos e sem filhos, fresca, novinha em fôlha; pode
dizer-se... apetitosa; e numa terra como os srs. dizem que é esta nossa,
de mulheres bonitas, passando por ser das mais formosas. Imaginem! _una
monada_.

O Silveira escutava, silencioso e cabisbaixo, sob a tirania voluptuosa
dos sentidos. Jorge completou:

--Depois, ilustrada, viva, inteligente. Que ditos finos, que conceitos
subtís, que mordacidade, que espírito, que respostas a tempo! E o que
aquilo vai buscar p'ra têma de conversa! Só ouvindo-a... Aqui há uns
dias, o dr. Farmin Gonzáles, um dos nossos homens de mais _verve_ e
maior prestígio intelectual, quis medir fôrças com ela. Pois, senhores!
a fôlhas tantas declarava-se vencido.

--Nessa contingência me não verei eu... juro!--tornou o Azeredo, no seu
gesto gaiato.

De sua banda o Silveira, estimulado, baboso, aventurou:

--Deve ter muitos admiradores?

--Seguramente! São aos centos. Como por exemplo, êste _imbécil_
Belisário. Porêm, ela _no les lleva el apunte, ché_... Não há um que se
possa gabar! É mais indomável e arisca que uma _potranca perdedora_.
Terá ocasião de ver...

Servia o moço, ao tempo, o clássico _churrasco_,--uma pantagruélica
montanha, cebácea e sangrante, de carnes laceradas em bruto, de
gorduras, ossos, tendões, coirama chamuscada e encorreadas fêveras. Numa
instintiva náusea, o Silveira arredou a travessa, desviando os olhos.

--Deus me livre! Isto é alimento para estômagos blindados.

--Tudo vai do hábito...--compôs o Azeredo docemente.

Ao passo que Jorge, com um ademan desdenhoso e implicante, voraz,
servindo-se com abundância:

--Eu acho delicioso!

E uns breves minutos mais passaram os três amigos nesta charla
despreocupada e alegre, espontânea exteriorização da mútua simpatia, da
íntima conformidade de sentir que tam auspiciosamente parecia ligá-los,
e que a esticada munificência do Azeredo quis que fôsse selada a
_Champagne_. À despedida, depois, por seu turno Jorge intimou que
voltassem a reùnir-se, domingo próximo, no Hipódromo.--E que nessa noite
comeriam com êle no _grill-room do Plaza_.

--Será a despedida. Retiro terça ou quarta-feira; porêm não descanso sem
colhêr a certeza de que não irei sòzinho...

E, na solicitação gentil duma anuência, cravava os olhos expressivos no
Silveira, que, gulosamente, com a perturbadora visão dessa misteriosa
prima a incender-lhe a fantasia e a arranhar-lhe o desejo:

--Estou quáse resolvido...


No domingo seguinte, pela tarde, ao entrar o Azeredo, no hotel, pelo
quarto do Silveira, encontrou-o de mau humor. Amadornado no _fauteuil_,
junto à janela, lia distraídamente um jornal, que atirou longe, mal
sentiu o amigo, num movimento brusco e fransindo a testa.

--Que tens, amigo João, que é isso?...

--Nada...

--Não... algo tens que te contraria ou aborrece.

O Silveira permanecia bisonhamente mudo. Até que, a novas instâncias do
amigo, e com mal contido despeito, num sacudido gesto de desgôsto:

--É que, francamente, não compreendo esta gente!

O Azeredo sentou-se-lhe defronte, e meio curioso, meio trocista:

--Que mal te fizeram?... conta lá.

--Por várias vezes te tenho falado no meu delicioso convívio a bordo com
os Wimeyer, sabes?... Eu ingénuamente supus que se tratava duma
espontânea e lial amizade, que nos ligaria o que quere que fôsse de
sincero, de íntimo, de cordeal, não é verdade?... alguma coisa mais do
que essas mentidas e efémeras relações contraídas em viagem, e que, uma
vez terminada esta, logo esquecem, como se largam as malas. Pois imagina
tu que ontem, como era natural, fui visitá-los. Vem-me à porta uma
criadita espevitada e com cara de fastío, que me recebe desconfiada,
arisca, quáse hostil, mal amostrando a cabeça pela porta entreaberta.
Depois, apenas eu declino o meu nome e anuncio ao que ia, retruca-me
logo com uma grande secatura:--As senhoras não recebem.--E, zás! tam
pronto colheu na mão os meus cartões de visita, sem dar mais cavaco,
dá-me com a porta na cara.

O Azeredo torcia-se em esgares trocistas e ria, ria, gaiatamente.

--Ah! ah! É então por isso tanta arrelía?

--Tu ris?...

--Sem dúvida.

--Achas pouco?

--Acho que não tens motivo nenhum para tam saloia indignação, e que o
que te aconteceu é tudo quanto há de mais natural.--E doutoralmente
explanou:--Pois então tu pensas que isto aqui assim é como lá na nossa
_parvónia_, onde estamos sempre de braços abertos para acolher quanto
importuno se lembre de nos ir moer a paciência e estragar as horas?...
Annh! aqui fia mais fino... Aqui tudo anda cerimoniosamente regulado,
pautado e medido; as relações e os negócios, os ódios e as afeições, o
sentimento e o interêsse.

--Um pouco como em tôda a parte.

--Aqui mais do que em parte nenhuma... Cultiva-se a sociabilidade a
distância. Famílias que se dizem íntimas, vêem-se duas vezes por ano.
Olha, sabes que mais? tens que comprar um livrinho que aí há, de
marroquim azul e fôlhas doiradas,--custa-te dez pesos, o equivalente a
quatro escudos,--barato não é... mas, alma piedosa como tu és, deves
dá-los por muito bem empregados, porque essa _massa_ destina-se ao
custeio duma obra pia qualquer, privativa função do _high-life_: a
Associação _del Divino Rostro_. É uma coisa do tom.--E, reatando:--Ora
nessa espécie de mundano florilégio tu vais encontrar, metódicamente
distribuidos por ordem alfabética e púdicamente apartados segundo os
sexos, todos os nomes, sobrenomes, apelidos, moradas, e a direcção
telefónica mail'a indicação dos dias de receber, das famílias que se
prézam, tôda a graúda gente. É um código inviolável, sabes? um índice de
elegância, um complicado e melindroso calendário social, cujas
efemérides são infalíveis... São dogmas, são escrituras. Por isso o seu
conhecimento, o seu uso se torna imprescindível _à los muchachos
distinguidos_ como tu.--Ao ameno afago destas leves humoradas, o rosto
cenhudo do Silveira desanuviára; e prazenteiro e cáustico, o amigo:--Já
sabes pois que fóra de tais prazos rituais da etiqueta, nenhuma dessas
meticulosas figuras é acessível. Não são criaturas reais, são
abstracções, são símbolos... sobretudo agora. De sorte que, realmente,
demandá-los nos dias dos seus convencionais eclipses, conforme tu
fizeste, é um triste documento de plebeismo, uma _gaffe_ imperdoável.

--Quéro lá saber!--atalhou de ímpeto o Silveira, num sobranceiro dar de
ombros, mas no íntimo vèxado, erguendo-se.

--Que remédio tens tu! se quiseres tratar com gente limpa,--contestou,
numa ironia amável, o amigo; e rápidamente, tendo consultado o relógio,
erguendo-se tambêm:--Vamos, que são horas.

Depois, já fóra no _hall_ os dois, e enquanto esperavam o descensor:

--Tu deves mas é aproveitar e ir até ao campo. Repara bem que êste
convite do Saavedra foi um rasgo positivamente imprevisto, raro,
excepcional... eu ainda não quero crêr. És um burro de sorte! Porque não
está nada isto no carácter argentino. São amáveis e hospitaleiros êstes
bons _porteños_, é certo... porêm morosos sempre e difíceis na
exteriorização do seu agrado.--Bateu-lhe no ombro com
entusiasmo:--Caíste-lhe em graça, não há duvida!

--Sei lá...

--E depois, êstes Saavedras são das poucas famílias autênticas de antiga
linhagem, que, com os Vicente Lopez, os Lastra, os Alvear ou os Acosta,
ainda aí figuram e manteem as nobres tradições do vélho tempo colonial.
São óptimas relações, já vês... e a melhor chave pr'a te franquear no
inverno o ingresso à bôa sociedade, como desejas.

Atingiam, em baixo, a rua; e então o Silveira com os lábios crêspos e
uma vaga onda lúbrica a empanar-lhe o esmalte dominador dos olhos,
aventurou docemente:

--Aquela prima...

--Aí está! P'ra mais, com o lascivo apetite da prima já a aquecer-te os
miolos... E mais, quem sabe? talvez que a ela lhe quadres. Marcha!
marcha, homem! Que mais queres?

O Silveira atirou-se de golpe, apreensivo, sonhador, para o fôfo recanto
do _taxi_ que haviam tomado, e enquanto faziam o caminho de Palermo,
poucas palavras trocou com o amigo. Ia alheadamente escrutando os
indecisos aspectos morais da sua situação. Repugnava-lhe aquela fria
subalternisação, aquele anonimato estéril do presente; vinham vagamente
acariciar-lhe a fantasia miragens promissoras do futuro.--A coisa afinal
estava bem clara: essa ideal Irene aparecia-lhe uma criatura
inabordável... a amizade desbordante dos Améglio não passava do verniz
caviloso duma descarada exploração. E dos mais... disse! Nem
conhecimentos, nem apetites. Que demónio fazia êle então com tal gente,
ali assim?... Seria perder o seu rico tempo. Pouco menos que um
achincalho. Soberanamente ridículo... Não era p'r'o seu feitio!--Assim,
quando os três, já noite feita, regressaram do Hipódromo, estava justo
que o Silveira acompanharia Jorge à _estancia Amália_. Belisário Ruiz
tambêm por lá devia aparecer. Lialmente, o Azeredo lamentava não poder
«fazer parte do rancho», e aplaudia-se de haver sido o espontâneo e
gostoso interventor daquelas duas abertas simpatias juvenís. E numa
efusiva e sincera mutuação de impressões, os três foram seguindo,
chalrando à compita, deblaterando anecdotas, concertando planos,
visionando fortunas, soprando projectos irisados dos cambiantes
esplendores da mocidade.

Passada porêm a avenida Santa Fé, o _auto_ teve que ralentar súbito a
marcha, e qualquer coisa de anormalmente pejorativo e tumultuário lhes
travou com fôrça a atenção.

É que na sua frente, agora, uma formidável e pesada barreira, uma
barricada estrepitosa e farfalhante, se fechava, de _tramways_, de
cavaleiros, ciclistas, coches e _autos_; de meios de condução de tôda a
casta, cada um vibrante e álerte na ância de adiantar-se aos demais, e o
seu arrastado travamento paralisando o trânsito, tomando de lés a lés a
rua tôda. Não era sómente a luzida afluência dos que de Palermo
regressavam, como êles; era algo mais que o grosso movimento
domingueiro, habitual da rua: era qualquer coisa de deliberadamente
chocarreiro, de impetuoso, de trocista, de hilare e audaz ao mesmo
tempo, cujo atropelado escoamento se fazia com dificuldade e de cuja
turbulenta acumulação expluiam risos, motejos, apupos, estraladas fulvas
de ridículo.

Quando, a poder de paciência e tempo, os três amigos conseguiram atingir
a praça Rodriguez Peña, tiveram por fim a noção clara da grotesca
realidade.--O amplo recinto estava tomado e abarbado literalmente pela
multidão, que, parada e compacta, desbordando a areia rubra das
alamedas, pendurada das árvores em cachos, posta em pinha sôbre as
tenras _pelouses_ machucadas, escutava e recolhia em êxtase a
torrentuosa eloqùência dos vários oradores fantochando de riba dos
bancos a sua mímica redentora.

Jorge avançou, impaciente, a cabeça, despediu o seu inquiritivo olhar ao
largo, e logo, retraíndo-se novamente e com mal contido desdêm:

--Negócio de eleições... logo vi. É um comício dos radicais.

Ao mesmo tempo, porêm, e fazendo o ruidoso circuìto da praça, uma
_queue_ por igual cerrada de veículos se lhe enrolava em tôrno,
atulhados por uma turbamulta de rapazolas que, chinfrineiros,
implicantes, chasqueando, assobiando, berrando, buscavam por meio dum
alarido infernal amesquinhar e abafar as iluminadas vozes cívicas dos
apóstolos do centro.

--Êstes são os socialistas,--tornou aclarando Jorge; e num crescente mau
humor:--O alargamento do sufrágio deu nisto!

De roda crescia tambêm naturalmente a onda dos _mirones_, atraídos pelo
inéditismo do espectáculo. Porque parecia uma esporádica prolongação do
Entrudo, formava o mais canalhesco e adorável dos contrastes, esta
palinódia colossal,--a solene gravidade e a impertérrita coragem dos
meetingueiros fieis, parados e atentos tomando em massa o vasto recinto,
com a algareira sublinha daquele rodeio impudente dos contrários,
afogando-os numa implacável cinta de arruaças, de burlonas apóstrofes,
vaias, chistes plebeus e guisalhadas de troca. E nenhum dos dois bravos
campos se dava por intimidado ou vencido, nenhum queria ceder. Nesta
inofensiva e gritada briga mantinham-se testarudamente rivais; os de
fora na sua truanesca assuada, os de dentro na sua caturra perseverança.

O Silveira e o Azeredo seguiam a scena sorridentes, num maligno regalo;
ao passo que Jorge, sem perder a sua linha de pretenso aristocrata,
enfastiado e severo:

--Parece um bando de _patoteros_! Súcia de _gringos_... A culpa é da
polícia.




VII


Ás 7 horas precisas da manhã, o Silveira entrava na estação
_Constitución_, com um moço carregando as suas duas ligeiras maletas de
_touriste_ e uma chapeleira de coiro; e em vão demandava agora, pelo
imenso e sombrio _hall_, a presença do seu amigo Jorge, que chegou nos
últimos momentos, correndo açodado à bilheteira e logo tomando de
assalto um dos _wagons_ de 1.^a, já de portinholas cerradas, justo ao
tempo em que o silvo da locomotiva arquejante dava o sinal de partida.
Cómodamente instalados os dois num compartimento que ia vazio, pronto
acendiam os cigarros e, baixando a vidraça, seguiam despreocupadamente o
manso e bucólico deslise da paìsagem, na fina aquatinta daquela
deliciosa manhã, clara e tranqùila. Primeiro, o complicado e barôco
bracejar, o espreguiçamento indefinido do arrabalde da
cidade,--_tiendas_, _conventillos_, fábricas, riachos, poços, jardins,
_azoteas_ sôbre monturos, caliças entre arvoredos,--tudo isto cortado a
cada instante pela paragem barulhenta nas estações, tudo riscado de
vagos esboços de alinhamentos de ruas, abertas no sólo virgem, e que,
longe a longe, raro marcavam apenas, como afoitas vedetas, umas fieiras
de casitas sôltas, cada vez mais raras, mais sumárias e mais humildes.
Depois, no progressivo despovoamento da planura, vinham os altos tufos
desgarrados de eucaliptus, dominantes e protectores como guardiães do
deserto, vinham os penachos sussurrantes dos álamos e dos salgueiros, os
bosquetes, os telheiros, os _ranchos_, os sarçais, as lomas de areia; e,
contidas na utilitária rêde de inúmeras vedações de arame, as primeiras
manadas de gado pastando suavemente. A pastosidade atascadiça do terreno
e a vizinhança do mar empapavam de humidade o espaço; a relva fumegava,
e as esfumadas tintas do ambiente esbatiam-se numa mortiça e branda
deliqùescência, feita de calma e de frescura; passada porêm a estação
_Ferrari_, a linha férrea internava-se, inflectindo marcadamente ao sul,
e então o ar ia alimpando, aquecendo, já as linhas eram mais firmes, os
contornos definiam-se, e por fim uma enxuta _aleluia_ matinal realçava e
doirava, a perder de vista, aquela rústica pacificação dos homens e das
coisas.

O trem seguia sempre pelas suas implacáveis e vibrantes talas de aço,
ferralhando, arfando... Ante a gostosa complacência e a interessada
atenção do Silveira, o seu amigo, que conhecia naturalmente a região a
palmos, ia de espaço apontando panoramas e desfiando pormenores, fazia o
cadastro pitoresco do país, obsequiosamente. Até que, andadas assim
cêrca de 2 e meia horas, atingiam a encantadora cidadesita de Chascomús.
Aqui havia que deixar o trem de ferro para empreenderem caminho a oeste,
hora e meia de auto até à _estancia Amália_, o apetecido termo da
viagem. Jorge Saavedra julgou oportuno aproveitar esta mudança para
fazerem, antes de seguir adiante, o circuito rápido da linda povoação,
marginando a melancólica lagôa que a rodeia por oeste e pelo sul, depois
passando frente ao _Club de regatas_, ao _Hospital de São Vicente de
Paulo_, dando a volta da _Praça Municipal_, e tornando por fim à beira
da lagôa, em piedosa visita ao desmantelado «cemitério vélho», dentro de
cuja rocalha carcomida, e por entre a parada fúnebre de ciprestes,
destacava a mancha ratada e lívida duma alvenaria simbólica.

Com um sobrecenho comovido e grave, o Saavedra explicou:

--É o moimento à memória dos chamados «bravos do sul», que aqui
sucumbiram na famosa jornada de 7 de novembro de 1839, paladinos
sublimes do engrandecimento pátrio, pela libertação da sua estremecida
terra batendo-se como leões, dando de barato em holocausto a vida.

--Contra quem lutavam êles?

--Era um grande movimento insurrecional organizado contra o tirano
Rosas, sabe?... Uma das páginas épicas da nossa história, quáse
desconhecida, entretanto, apesar de haver sido escrita com sangue
autêntico de heróis.

--E tiveram por cá muito tempo de guerra civil?

--Uns quinze anos, nada menos! _Una barbaridad_. Felizmente, já não é do
meu tempo... Mas êste santo movimento emancipador, aqui, foi a brava
seqùência do célebre _pronunciamiento_ de Dolores, cinco dias antes.
Tenho-o ouvido contar a papá centos de vezes. Diz êle que êste comovente
episódio é dos que mais nos engrandecem, mais nos honram... e que deve
ser magnificado como o precursor imortal dos dias gloriosos de
Caseros.--E com progressivo e varonil entusiasmo:--Pelos modos, os
revolucionários vieram por'í acima capitaneados por Castelli e
concentrados primeiro em Dolores, o berço humilde dêste movimento
redentor, como lhe disse. E havia um entusiasmo doido! tinha-se o
triunfo como certo, contava-se com que as fôrças do temido caudilho
Granada se passassem aos revoltosos, esperava-se o refôrço prestigioso
de Lavalle,--que sei eu?... A gente de Rosas saltou-lhes ao encontro,
mas cá os bravos do sul repeliram-na, apesar de constituir a vanguarda
inimiga a famosa cavalaria de Catriel, uma indiada temível! Quando de
repente... não sei bem como aquilo foi, parece que houve traição dum
capitão... O certo é que, seguros já os revolucionários da vitória, de
repente as coisas mudam, a gente de Rosas encurrála-os contra a lagôa,
êles resistem, e um a um vão caíndo, raros tendo escapado à morte. Uma
coisa bela!--Agora Jorge fremia de raiva, e indignadamente:--Pois, a
seguir, êsses brutais vencedores, dignos servos do tirano, todo o dia
levaram chacinando, degolando, lanceando a torto e a direito, por essas
ruas. Inocentes, vélhos, mulheres, crianças, tudo a eito! Uma vertigem
de canibais, macabra, horrível... E foi como ficou assegurado por
catorze anos mais o domínio feroz do ditador!

Mas o automóvel deixára a calçada e breve reganhava o campo,
internando-se, salteiro e ofegante, no majestoso encanto da solidão,
investindo com o desconhecido. Pela carreteira mole e insegura, no seu
rodar silencioso, aventurosamente se ia deixando envolver e perder-se no
problema insondável da imensidade. Porque à sua ilharga e na sua frente,
alargando, crescendo, agrandando sempre, inexorável, monótono,
desdobrava agora a sua toalha de fertilidade inexgotável o maior celeiro
do mundo,--inestimável manancial de produção e tesouro de abundância em
que os nativos firmam a sua imprevidência, os colonos a sua esperança,
os mercadores a sua codícia e os milionários a sua riqueza. Começava o
desdobramento da interminável _steppe_ argentina, a lendária _pampa_,
essa famosa e imensa planura verde, dum verde característico e próprio,
um verde que à fôrça de carregado e sombrio, é quáse azul; assim como,
ao alto, o azul da abóbada celeste, a poder de claridade e leveza, é
quáse branco; assim como, na sua fecundade palpitante, é quáse negro o
sulco rasgado na crôsta húmida da terra. E não há suspensões, córtes,
paragens, não há derivação nem termo, nesta avassaladora invasão do
Infinito. Por essa divina manhã de outono e sôbre a suave pradaria sem
fim, paira a carícia inefável duma poesia dulcíssima... e da luz a
diáfana pureza esbate e aparta em cristalinas nuanças a tonalidade
cambiante das coisas; aqui, em rústicos e tenros _bouquets_, as floritas
púrpura da luzerna; logo, o verde gordo dos pastos, mosqueado da
manchita grisácea ou bistre dos mansos gados, ruminando; mais alêm,
definido pela lacrimosa fita dos _sauces_, o colear rumorejante e claro
das ribeiras; ou a nódoa triste dos currais, dos _ranchos_, das
_taperas_, dos celeiros; ou a imobilizada ondulação das dunas de areia,
com a epiderme rugosa e árida estriada pelo vento; ou ainda a ponta
lívida das míseras e frágeis _carpas_ dos colonos, grupadas como as
tendas dos _beduinos_ no deserto. De raro em raro, sôbre a esmagadora
rasoira da solidão virgulando ténues e mal perceptíveis, como
infusórios, as _cuadrillas_ minúsculas de peões cingem-se à terra e
incessantes moirejam, como formigas,--uns colhendo o milho em sacos,
outros acamando o rastolho, outros, mais previdentes, já rastreando,
arando... E sôbre a gleba recêm-revôlta, nos ávidos mamilos dessa fresca
terra virgem, a bênção gloriosa do sol, como querendo antecipar-se à
fecunda labuta do homem, cái e entorna-se, palhetada, coruscante, em
pródigas sementeiras de oiro.

No último limite da percepção visual, tam ao largo como pode alcançar a
nossa vista cansada e extática, o esmalte pálido do céu e a linha fôsca
do horizonte tocam-se, mas não se confundem. São dois antagonismos, são
dois infinitos, duas grandes interrogações, tangentes mas opostas,
raiando e barrando a tôda a volta a imensidade do espaço, como os dois
batentes da incorruptível porta do Mistério. Ao mesmo tempo acontece
que, na chata uniformidade dêste solo raso e sombrio, os mínimos
acidentes topográficos, os contornos mais insignificantes, um ligeiro
médano, uma leve saliência, qualquer ínfimo relêvo, como se projectam
inteiros na despejada tela do horizonte, e pela sua mesma raridade,
ganham assim valor, crescem, avolumam, assumem dimensões gigantes, e
alçam-se e aprumam-se bruscamente, caprichosos, enormes, como solitários
ilhéus no berço cavo das ondas. Tal imponente e vago mamelão que ao
longe nos aparecia como um punhado ciclópico de rochedos, à medida como
depois, fazendo caminho, dêle nos acercamos, vai apequenando, minguando,
a aproximação desbasta-o, come-o a realidade, as suas linhas
reduzem-se... a termos que, quando lhe passamos perto, temos que
verificar por fim, desencantados e tristes, que essa miragem hiperbólica
da solidão não era mais que uma modesta mêda de palha ou de feno, uma
casota humilde, um pôço, um _hangar_ ou um monte de estrume. Por igual,
o ligeiro arcaboiço em ferro das bombas elevadoras de água, com o seu
aéreo penacho rodiziando ao vento, figura-se-nos a maciça evocação
dalguma lôbrega tôrre feudal, rasgada em seteiras, cingida em barbacãs,
coroada de ameias. Há pequenas _estancias_ que parecem cidades, toiças
de mato que parecem florestas, simples lomas que parecem montanhas. E
por vezes, sôbre o esfumado pedestal dalguma dessas perdidas cumieiras
distantes, vinca-se e agranda súbito, monstruosa e negra na claridade
sideral do ambiente, qualquer coisa como a mégalítica renovação de algum
lendário animal sagrado, e que não é mais entretanto do que a pacífica
silhueta dum cavalo ou dum toiro imóvel e sonhador na muda passividade
do deserto.

O silêncio é vasto, esmagador e solene como um crépe de olvido, como uma
mortalha de sombra... apenas de longe em longe picada pela microscópica
nota estrilante, encarnada ou azul, de algum raro saiote feminino. Nesta
melancólica extensão sem fim, ténues nuvens grisáceas se desenrolam por
vezes e vão correndo... é o penacho arquejante duma locomotiva, é a
poeira erguida por uma tropeada abundante de vacas ou de cavalos; mas
tudo isto sempre fugaz, miudito e distante, como imponderável, sem
importância e sem ruído. E sôbre o domínio infinito da solidão paira um
fundo imanente de tristeza. Há tímidos lamentos pelo ar, e os sulcos
abertos pelo arado são como as crêspas vibrações duma resignada
angústia, duma dôr enfreada e humilde... que é a dôr da própria terra.
Porque esta é a terra maravilhosa das bárbaras lendas _gauchas_, terra
de promissão, de paz e amor; terra de humildade e de sacrifício, a terra
fatalista, a terra paciente, a terra mártir,--retalhada primeiro pelo
aço dos conquistadores, que, empapada de sangue indígena, havia de mais
tarde florir na assoberbante iniquidade dos latifúndios; hoje com não
menos avassaladora impudência assolada e batida em tôdas as direcções e
sentidos, pisoteada pela bota surramposa de tôda a sorte de colonos,
violada pela torpe especulação material de tôdas as raças.

A pródiga, a inexgotável, a doce e lendária _pampa_...


Um momento veio em que, à direita e muito ao largo, sôbre uma ligeira
ondulação como que assoprada na frialdade jacente da planura eterna,
começou a definir-se, a crescer e a afirmar-se potente, na claridade
vítrea do céu, uma ampla construção, tarraca e singela, hospitaleira a
sorrir entre o arvoredo.

E logo Jorge, convidativo e alegre, alongando o braço:

--Lá está a nossa casa. Pronto vamos chegar. Bem situada, não acha?...
Alcança-se a grandes distâncias. E ademais é fácil de reconhecer, por
aquele grosso penacho verde-negro que se lhe ergue um pouco à frente,
não vê?

--Sim... Distingo perfeitamente.

--É um vélho _ombú_, não sei quantas vezes secular... um dos raros
exemplares que por'í ainda restam desses abomináveis veteranos do
deserto.

O Silveira aprumava-se e movia-se a cada instante, buscando concretar
impressões, progressivamente interessado; enquanto ao lado dele, Jorge,
preguiceiro, indolente, com a sua ligeira ponta de fatuìdade, ia
explicando:

--E, sabe o meu amigo? há muito que vamos já caminhando por terras
nossas. Tudo isto em volta. Ao redor de seis mil hectares. Não é nada...
Mas, em suma, p'ra passatempo chega bem.--E regaladamente, estirando-se
mais, tirando o chapéu e com a mão suave acamando o cabelo negro e
corredío:--Papá poderia já ter alargado a propriedade, mas não quere.
Está contente com o que tem. É que êstes campos p'ra cria de gado são o
que há de melhor, porque dão magnífica luzerna; e são igualmente
imelhoráveis para tôda a casta de produção agrícola. Tambêm, por isso,
reservâmos apenas uma terça parte para nós, e o mais anda tudo p'r'aí
assim repartido por essa malta de _gringos_. O pior é que nem todos são
pontuais na renda, há que ser-se duro com êles. Porêm dão vida a estas
redondezas e precisamos dos seus braços no fim de contas. Formam uma
família já bem numerosa... e por vezes bem incómoda.

Com efeito, para onde quere que o Silveira alongasse, cativado, a vista,
invariávelmente ia encontrar, aquecendo o ambiente e salpicando de
pitoresco o espaço, a nota viva, rude, impressiva, da utilitária obra do
homem: a um lado, sempre a mesma basta e complicada rêde das vedações de
arame a dividir os _potreros_ travadas e geométricas como os alvéolos
duma colmeia, disciplinados cárceres ao ar livre por onde os
contemplativos rebanhos arrastam mansamente a sua vida vegetativa e
incerta; ao outro, por igual a mesma intensiva e estreita parcelação da
terra, aqui riscada em hortas, vicejando em pomares, vergada ao pêso das
colheitas, ali eriçada ainda do rastolho, ou já limpa, revolvida, fresca
e fumante, esperando as sementeiras novas. E por tôda a parte tambêm, ao
acaso semeadas e dispersas, como tubérculos, rugosas e negras como
concreções de _tophus_ bretoejando na uniformidade epidérmica daquele
sólo gordo e húmido, destacam as casotas sumárias dos colonos, míseras
choças de barro amassado com palha e feno, tendo cavado na frente um
pequeno pôço e à ilharga o inseparável forno,--redondo êste, enorme,
dominador, como um zimbório, muito liso e claro.

Atingiam agora os dois amigos a gradaria singela de ferro que
circunscrevia um tôsco e reduzido esbôço de jardim, frente à almejada
_estancia_. Então o Silveira pôde notar de relance: esta era um grande
edifício quadrangular, de modesta elevação e linhas simples, apenas um
andar sôbre o térreo, e tudo em alvenaria escaiolada a côr de ervilha.
Numerosas portas, tôdas de córte igual, ofereciam acesso ao andar
térreo, à altura de cuja cornija uma espécie de farta cobertura de
_hangar_, em zinco ondulado, avançava e corria a tôda a volta,
protectoramente tendida sôbre o amplo _pasillo_, ladrilhado a mosaico e
vindo à sua frente apoiar-se em colunas. Depois, transposto o largo
portão do jardim, francamente aberto, e dados alguns passos mais, Jorge
e o seu hóspede deixavam a espaldas a atormentada silhueta do vélho
_ombú_; e agora, já junto à casa, a projecção aérea do _hangar_
mascarava-lhes a visão do andar superior, e tinham ali ao seu alcance,
em baixo, transposto apenas um degrau, o piso sombreado e confortável
daquela espécie de garrida galeria andaluza, adornada por vélhos
lampiões de cobre, enrediças, gaiolas de canários, faianças com plantas,
cadeiras de _hamaca_ e mesitas de vêrga.

Pai Saavedra estava com o _mayordomo_, no seu escritório,--informou o
_mucamo_ que acudiu solícito à entrada dos recêm-vindos. Era a primeira
casa à direita do vestíbulo. Jorge pediu vénia por um momento ao amigo e
entrou. O tempo suficiente para o Silveira, continuando o seu sucinto
exame, notar a ática singeleza e o escrupuloso aceio do pequenino átrio,
luminoso, arejado, o brunido soalho em pedra mosqueado de miuditos
arabescos, e do estuque cinzento das paredes pendendo em simétrico
arranjo cabides, petrechos de caça e armas gentílicas. A face oposta à
entrada era tomada tôda por um grande vitral colorido, ocasionalmente
aberto, e desvendando assim o risonho _patio_ que no seu interior os
sossegados muros da rústica habitação enquadravam ciosamente,--apenas
com uma furtada aberta, ao fundo, para a vaga imensidão do campo. Devia
ser a cozinha a casa que aí, interrompido o circuìto, formava ângulo,
porque à sua porta uma mulher estava pelando aves, sôbre um balseiro
fumegante. E não longe, junto ao pôço de gancho e roldana, um peão,
arremangado e de lenço ao pescoço, brunia metais de arreios, com um
balde entre os joelhos.

Mas já Jorge voltava, risonho, ligeiro, no momento justo em que tambêm o
_mucamo_ e um outro peão entravam do jardim, conduzindo as malas.

--Papá está só e morto por vê-lo, amigo. _Pase! pase!_

E daí a instantes o Silveira colhia o efusivo apêrto de mão dum bom
vélho afável, rosado, pequenino, que com uma voz enternecida e confiada
lhe dava as bôas vindas.

--Imenso gôsto em conhecê-lo... Que honra, que prazer nos dá! Que bem
que fez em vir!

--O prazer, o encanto é todo meu. Estou imensamente reconhecido...

--Como, reconhecido?... Qual! _Qué esperanza_... Pelo contrário, a nossa
gratidão é que é infinita p'ra todos quantos teem a complacente bondade
de vir alegrar esta nossa solidão aqui. E quanto ao meu amigo, já
sabe... recomendado por Jorge, considere-se da família.

--Isso é dos livros!--exclamou Jorge jovialmente, num aprovativo acêno
da cabeça.

E o pai com a mais desafectada naturalidade para o Silveira, simples,
insinuante:

--Perdoe-me se o fiz esperar... _Este_... estava aqui caturrando com o
meu _mayordomo_. Coisas fastidiosas por vezes, mas inevitáveis... coisas
práticas. Contas atrasadas que p'r'aí andam... E àmanhã é dia de abater
gado.

--É cá p'r'o consumo da _estancia_,--acudiu obsequioso Jorge,
interrompendo.--Dois dias por semana.

--É certo,--mansamente o pai confirmou.--Um serviço corriqueiro,
trivial. Pois êstes _capatazes_ são uns _atorrantes_ e vingam-se, sempre
que podem, da sua condição subalterna, sacrificando, p'ra nos fazerem
dano, os melhores exemplares, ou então mandando abater rêses nocivas,
enfêrmas. O demónio! Há que andar sempre em cima dêles. _Mucho ojo!_

--E um bom _rebenque_, não seria pior...--completou Jorge, ameaçador,
com um gesto expressivo.

Calmo porêm e bonachão, o pai corrigiu suavemente:

--Cala-te! Não digas barbaridades.--Depois, amável e voltado para o
Silveira, derivando:--Bem, mas isto não são coisas p'r'o nosso querido
hóspede. Vamos ao que lhe interessa. A minha senhora não sei se está...
minha filha Célia tampouco. Queria apresentá-lo... Porque,--e num
mimalheiro sorriso, indicando Jorge--com êste _gran bribón_ mais, somos
aqui tôda a família.

E carinhosamente Jorge, abraçando o pai sôbre os ombros, com uma
liberdade e uma irreverência chocantes para os rígidos preconceitos
educacionais dum europeu como o Silveira, ripostou:

--_Qué rico tipo!_

Os miuditos olhos garços do bom vélho molharam-se de ternura; e outra
vez voltado para o hóspede, com a mesma acolhedora expressão, bondadoso,
aberto:

--Em suma, daqui a um momento juntamo-nos todos à mesa. Vai ver: pouco e
ruim... mas sabemos ser amigos, de todo o coração e co'a melhor vontade.

O vélho Saavedra dizia estas coisas com uma familiaridade calorosa e
espontânea, com uma simpleza tocante. Era uma figura interessante e
invulgar. Vestia todo de negro, tinha um ralo bigodito em escôva, a
barbicha grisalha, aparada e têsa por igual, contornava-lhe a face de
orelha a orelha, e à volta do imaculado colarinho sem goma
enrodilhava-se um farto lenço de setim, como há sessenta anos, negro por
igual e retido à frente por um nó com duas pontas. Dois fundos vincos
entre os cilios, a clara testa repregada e vibrátil, o cránio mal
guarnecido de longas e sedosas cãs, amplo e redondo, denunciavam o homem
de pensamento e de sonho, um recto entendimento alumiado por uma ingénua
alma. Flagrante espelho desta, os seus pequeninos olhos húmidos, dum
verde atenuado e translúcido, eram fontes de doçura, palpitavam duma
mobilidade inquieta, mantinham ainda essa fácil emotividade que é o
apanágio das crianças. Vibrava pronto, ao sensitivo rodeio das
impressões. Os seus lábios eram ungidos de bondade, e tinha o gesto
acanhado e infantil das criaturas que menosprezam o mundo, que evitam o
convívio social e deliberadamente se mantêem esquivas ao atrito
deletério dos homens e das coisas.--Assim entrevisto na meia-tinta
austera daquela casa mobilada parcamente, êste doce e pequenino vélho
aparecia aos deliciados olhos do Silveira como uma encantadora quimera,
um absurdo, uma anómala figura perdida... como algum anacrónico painel
já lambido da _patine_ veneranda do passado. Era o vivo e adorável
_pendant_ dêsse outro óleo de franco e rude batalhador que êle agora
descobria sôbre a maciça secretária de roble, tomando a parede.

Então Jorge, que lhe surpreendeu o movimento, adiantou-se a explicar:

--É meu bisavô, o criador desta _estancia_.

--Um andaluz inteligente e trabalhador,--acudiu o pai quáse ao mesmo
tempo,--mas pobre como Job, que veio p'r'aí assim sem um centavo.

--Felizmente, vejo,--o Silveira julgou oportuno observar,--aqui a
fortuna sorriu-lhe.

--Ah, não há dúvida... e êle bem o merecia,--acudiu com desvanecimento o
vélho. Depois, espontâneo sempre e afável:--Mas enquanto se não almoça,
venha vendo a nossa casa.--Abriu a pequena porta à direita, e, tendo
antes feito passar o Silveira:--Aqui tem... _este_... a nossa
biblioteca.

Um severo e discreto compartimento, recebendo luz apenas do _hangar_
exterior e totalmente vestido em volta por uma alta cinta de estantes de
carvalho, em cujas prateleiras bambas um milhar de sonolentos volumes se
alinhava gravemente. Do escasso trecho de parede sôbre uma das portas
pendia uma litografia detestável de Domingo Sarmiento. Sôbre a estirada
mesa de leitura havia desparramadas algumas pequenas estantes de
dobradiça e um grande e aparatoso tinteiro, coroado por um Napoleão de
bronze com um termómetro no tórax e um relógio no ventre.

Entretanto o bom vélho, complacente e palreiro:

--Não passa dum gabinete de leitura modesto, uma tentativa, um esbôço,
um ensaio, como vê... Mas há aí de tudo um pouco: filosofia, literatura,
jurisprudência, viagens. O agradável e o útil. E as melhores _Revistas_
e alguns livros portuguezes. De sorte que, já sabe, quando esteja
aborrecido de nós ou lhe apeteça isolar-se, é êste o cantinho que lhe
convêm. Os livros é que nunca nos pregam _lata_; a gente larga-os sem
cerimónia, quando muito bem quere. E ainda são os nossos melhores
amigos.

Mas aqui Jorge interveio, e com vivacidade:

--Papá, lembra-te de que o nosso hóspede há-de querer lavar-se, mudar de
roupa...

--Ah, sim... _este_... perdão! Vamos então levá-lo ao seu quarto.
Fica-lhe aqui já, no seguimento para o interior. Aí à direita é o meu
arquivo.

Abriu outra porta, à esquerda, e entrou com os dois amigos numa ampla
peça, fresca e clara, tendida de cassas e _cretonnes_ e mobilada a pinho
de Flandres, com duas janelas abrindo para o campo e, fronteira, uma
porta sôbre o _patio_ interior.

--Veja se lhe agrada.

--Oh, sr. Saavedra...

--Tem que se contentar, melhor não lhe podemos oferecer. Mas, veja...
comunicação directa com a biblioteca, e ali a seguir, _toilette_, banho
e mais serviço. Creio que aqui assim na _planta baja_ sempre fica mais
em liberdade e mais cómodo. Mesmo nós no _piso alto_, que dispõe de
menos espaço, não temos senão os quartos da família. Quere dizer, há uma
única excepção: os aposentos dessa endiabrada _Miquêtas_... que, a bem
dizer, família é tambêm.--E batendo com as mãos em concha e sorrindo, na
lisonjeira evocação duma pessoa querida:--É o benjamin da casa. O que
ela faz... o que aquilo diz, imagina e inventa! Um vivo demónio!

E logo Jorge no mesmo admirativo tom para o Silveira:

--É a prima Maria Mercedes. Não lhe dizia eu?...

Pouco depois do meio-dia, a grande sineta do pátio tangia para o almôço.
Tendo acabado de ajustar a gravata e enfiar os anéis, e dada uma última
casquilha mirada ao espelho, o Silveira abriu a porta do seu quarto e
transpôs compassadamente os geométricos canteiros, debruados de buxo e
salpicados de japoneiras, _aucubas_, _pitcarnias_, cravos, rosas e
malmequeres, seguindo diagonalmente em direcção ao pôço, a cortar
caminho para atingir o comedor, que lhe ficava no recanto em frente, a
entestar com a cozinha. Dentro estavam já Toríbio Saavedra e a mulher,
que recebeu o Silveira carinhosamente.--Era uma grande senhora adiposa e
obêsa, um monolito ambulante, o crasso busto sumido na montanha
enxundiosa dos quadris, os braços maciços e curtos, as mãos como
palmoiras. Tinha uns longos lábios froixos, a face pendente, e o
assetinado fulgor dos olhos castanhos perdia-se afogado na papugem
abundante das olheiras. Tôda de negro, como o marido, com o volumoso
espaldão dos ombros resguardado por uma capota ligeira de veludo. O seu
ar era repousado e lânguido como o das criaturas que se sentem
instaladas na vida cómodamente, sem alternativas, angústias, apetites,
preocupações nem ódios. O seu aspecto desprendido e plácido apenas
estava desmentido por um antitético resíduo de vélhos e irredutíveis
coquetismos no colar de grossas pérolas que em vão tentava remoçar-lhe
as pelhancosas estrias do pescoço, bem como na origem, claramente
industrial, do loiro inalterável do cabelo.

Tomou ela a cabeceira da mesa, ao passo que, cerimonioso e lento, o
Silveira entendeu dever manter-se a distância, apoiando maquinalmente as
mãos sôbre o espaldar da cadeira que aí lhe correspondia, como no íntimo
desígnio de quedar-se ali. Mas súbito, sorridente e num piedoso alarme,
a dona da casa:

--Ah, não, não meu caro sr.... aí não! Êsse é o logar da _Miquêtas_.
Conservamos-lho sempre... como se ela esteja. Queira tomar assento aqui.

E indicou-lhe o logar de honra, à sua direita, que o Silveira acudiu a
ocupar, pressurosamente. Entrou neste momento, do pátio, Célia,--uma
joven de aspecto bisonho e triste, o busto dobrado, os olhos baixos,
flácida, delgada, ictérica. Vestia blusa branca e uma singela saia de
côr indecisa, e da mesma indecisa e mortiça côr tinha a epiderme, os
olhos, os lábios e o cabelo, lambido como um penteado de colegial e
repuxado à nuca. Quando lhe apresentaram o Silveira, dobrou-se mais,
baixando as pálpebras, cortejou a distância, sem lhe estender a mão e
sentou-se logo à esquerda da mãe diante dêle.

Entretanto pai Saavedra vinha tomar logar ao lado do hóspede, e
desdobrando o guardanapo com ímpeto, alegre, menineiro:

--Vamos a isto, que são horas!

Uma criadita começou servindo carnes frias; e para o Silveira, muito
atenta, D. Teresa:

--Não lhe podemos aqui oferecer grandes mimos culinários... tem que
desculpar... porêm um bom _puchero_, isso sim! como certamente não come
na cidade.

Imediatamente o vélho Saavedra lhe pedia para avançar o copo, e vertia
nêle com afectuosa solenidade um vélho Jerez «como não havia de
encontrar muito». Só de casa tinha quarenta anos. E de passo explanou-se
falando sôbre as apregoadas excelências e virtudes do Madeira--que êle
apenas conhecia vagamente... um vinho de reputação mundial e ali na
Argentina quáse desconhecido.

--Ah, é um vinho precioso, divino!--exclamou o Silveira com orgulho,
dealbando os olhos.--P'ra mim é superior ao Jerez... ao mesmo Pôrto. É
mais aromático, mais gordo, mais suave.

E prometeu presenteá-los com uma porção de garrafas, que ia já no
primeiro correio pedir a um seu amigo.

--E de doce não gosta?--tornou solícita e voltando-se para êle, D.
Teresa, entre duas garfadas.

--Bastante.

--Pois nesse particular é que poderemos ser-lhe agradáveis. Em doces de
cozinha especialmente...--E com mimada ufania, apontando a filha:--Aqui
tem uma especialista.

--Não digas isso, _mamita_!--gaguejou Célia ariscamente, retraíndo-se e
como querendo anular-se sob a mesa.

Mas, sem dar tento de ouvi-la, sempre no mesmo tom mimalheiro a mãe a
insistir:

--Quando está de maré faz um _dulce de leche_, uns _huevos quimbos_,
como não é possível imaginar melhor.--E ante a modesta esquivança da
filha:--_Verdad!_--Depois, mirando-a amorávelmente:--Quem te não fez
freira!

Mas agora D. Toríbio, que não cessava de, a curtos intervalos, olhar com
impaciência a porta em frente dêle, murmurou contrariado:

--Que haverá passado a êsse Jorge, que não aparece?

Grande algarada entretanto no exterior. A terra estremecia ligeiramente,
como sacudida pelas atenuadas vibrações dalgum terremoto distante, e de
envolta com a trémula comoção dêsse largo abalo, montava, crescia e
espirulava grossa pelo ar uma difusa e vaga ressonância, que parecia
feita de vozes humanas, saltos, roncos, mugidos, tropeadas brutas de
animais, e choques bruscos de ferragens.

Poucos minutos depois, entrou finalmente Jorge ao comedor, e vivo e
cortês, enquanto se sentava ao lado da irmã:

--Peço perdão se venho em atraso... Demorei-me a ver passar essa
_tropilla que se va al rodeo_. Não ouvem?...

--Ouvimos, ouvimos, sim...--contestou D. Toríbio, já tranqùilo.--E
então?...

--Não sei... vi só de relance. Porêm tenho o ôlho bem experimentado...
havia ali grandes falhas.

--Estás sempre imaginando o pior.

--Muito roubada ia, papá... podes crêr! Por exemplo, das nossas
_vaquillonas_ Shorthorn não vi nem meia! E eu sei donde nos vem o
dano...

--Bem, bem...--conciliadora a mãe rematou.--Senta-te e come. Seja que
não seja, não é ocasião agora p'ra nos azedarmos com retaliações e
suspeitas; estamos à mesa.

Terminada a frugal refeição, Jorge opinou irem tomar o café ao ar livre.
Breve vinham buscar logar fóra, naquele aconchegado e tranqùilo recanto
ao abrigo do ressalto da _azotea_, entre o pequeno pôço e a cozinha.
Meia dúzia de cadeiras de vêrga de ferro, pintadas a verde, rodeavam uma
tôsca mesa de eucaliptus, em volta da qual os cinco se sentaram
indiferentemente. O Silveira, porêm, para melhor poder observar o
recinto, postára-se de costas junto à parede; e então pôde notar que, à
sua ilharga e um pouco arredada, uma outra cadeira havia, porêm esta
mais confortável, ampla e de aparatoso espaldar com a cabeceira
acolxoada, e tendo mais, na protectora concha dos braços, duas almofadas
de setineta azul guarnecidas com renda de bilros, molemente adormecidas.

--É a cadeira da nossa _Miquêtas_...--murmurou D. Teresa com
meiguice--Todo aquele preparo, veja... Chamamos-lhe a menina das
almofadas. É uma comodista!

Pairava um suave e acariciador ambiente, uma lisa atmosfera de sonho, de
calma e de beatitude. Aquele quadradito horto, fechado por espêssas e
mudas paredes, matizado de flores quietas e tristes, parecia a remota e
nostálgica evocação dalgum claustro, furtando o espírito à realidade,
transportando-o a um outro mundo... Nessa embaladora hora de sésta, a
majestade do silêncio amigo apenas era cortada pelos vagos sussurros
tilintantes que vinham da cópa e da cozinha. E, oposta a esta, via agora
o Silveira a caixa da escada para o andar superior, o qual, em cima,
acanhadito e modesto se desenhava, mas tomando apenas parte da casa,
pouco mais do que a frente. Rodeava-o a tôda a volta uma garrida
varanda, de grades de madeira, em profusão festoada de arbustos, e
vestida e enredada de trepadeiras, por entre cuja engalanada opulência
as floritas maceradas da _balsamina_, embebedando o ar, rompiam
abundantes, e onde alegre e crepitante saltava a mancha escarlate das
_estrelas federales_, grandes como girasóis, com os seus estames de
oiro, e as longas pétalas aveludadas e sangrantes como tiras de púrpura.

Então com repousada familiaridade D. Teresa aventurou:

--Que tal encontra o nosso refúgio?

--Delicioso, minha senhora. A mim parece-me completo.

Mas logo Célia, com uma mansidão em certo modo implicante, tomando a
chávena da bandeja que a serva lhe oferecia:

--Ah, isso é que não! Peço desculpa, mas não estou conforme. P'ra
completo falta-lhe alguma coisa.

--Vossa excelência dirá...

--Pois então não salta aos olhos? Esta casa, tal como é, quero-lhe
muito... é claro. Mas nem por isso deixo de convir que ela não passa
duma acumulação semsabor de enojosas coisas materiais. Nada que nos fale
à alma, que nos aqueça o coração, que nos eleve o espírito... Não há uma
nota de ídeal, um qualquer _motivo_ religioso... um painel, uma cruz,
uma capela.

--Onde vês tu por'í capelas ? - observou D. Toríbio, sorrindo
burlonamente.

--Ó papá! por tôda a parte... menos aqui. Não vês aí, a não mais de
oitenta quadras, na _colónia Esperanza_? E na _estancia_ das Argerich, e
na das Moreno?... Dize antes que não queres.

--Tem paciência, minha filha, mas eu sou um grande cultor do passado: o
que quero é conservar íntegro e singelo, tal como recebi, êsse nosso
ninho. P'ra que deturpá-lo agora com enxertos?

--Meu pai, que profanação!

--Profanação seria desfigurarmos com excrescências dispensáveis a amiga
pureza tradicional de coisas com que fomos criados.

--E de muito mau gôsto,--sublinhou Jorge com impertinência, traçando as
pernas.

--Todavia teem-se farto de construir p'r'aí assim tôdas essas bisarmas
de _cabañas_, depósitos, armazêns e celeiros.

--É lá ao largo, filha. E são coisas precisas.

--A religião não o é menos,--acudiu pronto Célia; e como que logo
arrependida dêste súbito ímpeto de vivacidade, suasiva e mansa
reatou:--Pois então, por exemplo, aqui ao fundo e do lado de lá,
formando esquina, uma simples ermidita não ficava tam bem?

--Cortava o trânsito.

--Ainda ficava espaço bastante. Sr. Silveira, que lhe parece?

Colhido de golpe por esta interrogação, que era uma evidente demanda de
auxílio, o Silveira titubeou um instante; mas logo, afável e galante,
recobrando-se:

--Eu em assunto de tamanha transcendência não sei, realmente... não
queria atrever-me a emitir opinião. Parece-me entretanto que se
poderia... sem nada quitar ao carácter desta adorável construção...

--Como? como?...--fez Célia, muito interessada, adiantando-se e
abandonando a chávena sôbre a mesa.

--Fazer um pouco como na Europa... lá pelas nossas terras. O traço da
conciliação seria talvez erigir por'í assim um retábulo em azulejo,
figurando a divindade de sua maior devoção, e que saltasse, nada mais,
da esquina dum muro ou embutido na parede.

--É certo!

--E então com uma lampadasinha à frente, tôda a noite acêsa, até teria
um certo _cachet_.

--Como compreendeu bem o meu pensamento!--exclamou Célia, erguendo as
mãos em êxtase, enternecidamente, os olhos húmidos, e a um e outro lado
movendo-se com presteza, alegre, triunfante:--Valeu, papá?... _Mamita_,
ouviste?...--E batendo palmas:--Seria lindo!

Depois, vibrando ainda na exultante comoção e notando a tímida bandada
de avesitas que manso e manso de roda dela vinham abatendo-se:

--Ai, que já me esquecia das minhas inocentes amiguinhas! Dispensem-me,
sim?

Atravessando o pátio, subiu num relance ao primeiro andar; e daí a
instantes esta apagada e ascética figura reaparecia ao alto
momentâneamente aquecida e chegando a parecer formosa, no enquadramento
rústico da varanda, donde o seu braço amorável começou espargindo
bagoadas de arroz e punhados de milho sôbre a graciosa farândola de
_chuños_, viuvitas, tarambolas, flamingos e pombas, que pedinchonas e
ávidas se abatiam sôbre o terreiro, patitando, volitando, ruflando...

Havia que organizar o programa da tarde. Mas de repente o céu encapotára
e o vento forte de oeste presagiava tormenta. Sinalou D. Toríbio o
fenómeno com desgôsto, bordando lástimas sôbre aquela tremenda
instabilidade do clima regional, em que não havia nunca que ter
confiança, «nem mesmo no outono, a melhor quadra do ano». Assim, embora
Jorge tivesse até já mandado aparelhar dois cavalos para uma saltada ao
campo, foi julgado como de mais prudente aviso não saírem e entreter o
resto do dia num exame mais detido à _estancia_.

Tomados os chapéus, e tendo pedido vénia às senhoras, D. Toríbio e os
dois jovens encaminharam-se então à suave atracção do campo, tomando
aquela aberta posterior do pátio e dando o flanco à cozinha. E logo aí
havia a notar, entestando com esta diagonalmente, uma espécie de longo e
raso aqueduto, em tijolo, que disparava depois rectilíneo e rasteiro
pela lisa planura sem termo, até ir mergulhar e perder-se por fim num
fechado penacho de eucaliptus, longe, muito longe, já no esfumaçamento
vago da distância.--Era o encanamento que trazia a água para toda a
sorte de usos domésticos. O vélho pôço do pátio para pouco mais servia
do que para regas... estava condenado.

Depois a seguir prolongava-se paralelamente, a um e outro lado, uma
dupla fita de leves, sàdias, frescas e arrogantes construções, dando a
nota actual, porêm mantidas tôdas, no mesmo enfiamento das paredes da
casa primitiva. Eram a carapaça industrial da _estancia_, o seu fecundo
traço de união com o utilitário credo do presente, os maravilhosos
instrumentos, ali, desta subjugante caudal de energias duma nova raça,
que são o segrêdo do portentoso milagre da prosperidade argentina. Era o
hino fulvo da riqueza, o _allegreto vivace_ da abundância. À esquerda,
sorriam os rubros tôldos e as alvenarias deslumbrantes das cavalariças,
estábulos e curralões para gado, erguiam-se as afusadas _torricellas_ e
mirantes da fábrica de lacticínios, das várias _cabañas_, _tambos_ e
celeiros. Vinham de dentro perfumadas, tépidas emanações de feno e de
amôjo, um genésico alento, um ar criador, um bafo gordo e tenro acusando
o protéico germinar da vida. Quando os três passavam, do brunido
tejadilho dum _haras_ surdiu e avançou para êles, coquetona, mimalheira,
familiar, uma linda e enxuta cabeça de cavalo castanho. Jorge acudiu
desvanecido:

--É o meu rico _Emir_... um autêntico meio-sangue, um corredor de
primeira. Que dizes, _mi valiente_?

E do lindo animal acariciou o focinho brincalhão, vibrátil, em curtas
pancaditas, suavemente.

Passando ao lado fronteiro, aí as instalações novas, nas suas apagadas
côres, na sua arquitectura sumária e rude, tinham o que quere que fôsse
de mais poderoso e mais severo. Singelos e amplos armazêns, por vezes
simples _hangars_ cobertos de zinco e telha de Marselha, eram contudo o
centro propulsor, a potente fonte dinâmica de tôda aquela parada enorme
de trabalho. Ali se alinhavam por dezenas as carretas de mão, os grandes
_camions_, as zôrras e as locomotoras, brunidas, scintilantes; depois
havia os grandes aparelhos geradores da energia eléctrica, duas máquinas
_desgranadoras_ para descascar o milho, uma _esquiladora_ para a tosquia
de lãs, três _trilladoras_ para apartar o trigo, a luzerna e o linho; e,
a seguir, os intermináveis depósitos dos produtos habituais do país,--o
milho em pirâmides colossais, o trigo empilhado em sacos, a luzerna e o
linho acamados sôbre a lisa sucessão dos mostradores, esperando a
secagem definitiva.--O vélho Saavedra, passando orgulhoso em revista
êste formidável organismo industrial, parecia remoçado, ia acumulando
detalhes, multiplicava as instruções, fazia pôr a seu tempo cada peça em
movimento; extasiava-se e como que se identificava com tôda aquela
batida vibrante de luz e de ruídos, com o engrenar suave das rodagens, a
galopada arfante dos metais, o alucinado sôpro das turbinas. E então,
fatigado a espaços mas não vencido, parava e encolhia os ombros,
sorridente:

--Isto já não são coisas pr'a mim... Mas, que remédio! se êste meu filho
de nada quere saber...

--Eu nunca, papá, poderia substituir-te capazmente,--advertiu Jorge, num
parêntesis hipócrita de modéstia.

Mas logo o pai com carinhoso desdêm:

--Vós, os rapazes de hoje, não valeis nada!

Porêm a atenção do Silveira fatigava-se e ao seu carácter volteiro e
indócil êste rígido e automático aparato industrial interessava-o
mediocremente.

Às 5 horas, outra vez no mesmo aconchegado recanto do pátio, reùniam-se
a tomar _mate_. Desta vez, por uma atenção especial para com o novo
hóspede, a tradicional bebida foi servida, não na lisa concha habitual,
porêm numa antiga cabacita de prata, vélha não mais de cincoenta anos,
modesta data que entretanto, perante o ingénuo critério dêste país
nascente, assumia fóros dum raro valor arqueológico. Foi a preciosa peça
trazida da _étagère_ envidraçada do salão, onde em religioso recato era
conservada com outros mimos mais e saùdosas relíquias de família. Era
duma cinzeladura rudimentar. O seu redondito bôjo assentava sôbre um
tripé de cabeças de grifos estilizadas, e ostentava no anverso,
emergindo triunfal dum entrelaçamento gordo de folhagens, o suave escudo
argentino.--Depois de cuidadosamente escaldada, D. Tereza verteu-lhe
pelo afunilado gargalo a rica infusão do _mate_ a ferver, introduziu-lhe
uma cânula tambêm de prata com o fundo em crivo,--a clássica
_bombilla_,--e logo de oferecer obsequiosamente o inédito aparelho ao
Silveira, que, na sua titubeante inexperiência de sucção da _bombilla_,
queimou a língua, apressando-se a passar o bárbaro instrumento à dona da
casa. Os circunstantes sorriram ao observar o cómico efeito, por demais
esperado, da desastrada iniciação do recêm-vindo. Mas logo se repuseram.
E agora a preciosa tacita foi passando de mão em mão, e lábios após
lábios foram sucessivamente abocando sem escrúpulo o mesmo tubo
aspirador como quem se desobriga dum rito sagrado, num recolhimento
quáse solene, num inalterável silêncio, de longe e apenas vagamente
cortado pelo mugido das vacas e o balar dos cordeiritos que vinham dos
curralões distantes.

A seguir, por uma natural expansão neste ambiente de pacificação cordeal
que a familiar cerimónia desdobrára, a bisarmal D. Teresa deu conta do
seu piedoso giro de manhã. E naquele bondadoso ar habitual, repousado e
manso, convictamente impôs ao marido:

--Já outro dia to disse, tem paciência... mas há que perdoar a renda a
êsse pobre Juan Valério. Que desgraçada gente! Se tu visses...

--Mais outro?--balbuciou o vélho Saavedra com fastio.

--Êle está com um antraz, tolhido, roído de febre... bem sabes.

--Então não lho queimaram?--atalhou Jorge, numa ligeira impaciência.

--Sim, porêm já tarde, infelizmente! Parece que não escapa. Que vai a
pobre da mulher fazer?

--Tem os filhos.

--Que filhos? Não blasfémes. O mais vélho, depois daquele desastre na
via-férrea, ficou sem uma perna. E nem um centavo lhe deram de
indemnização. A filha desarvorou com _uno tal por cual_... O mais moço
foi de conscrito.

--Há-de voltar.

--E enquanto não volta?--acudiu Célia com carinho.

Seguiu-se uma breve pausa de embaraço. D. Toríbio, agora silencioso,
bamboava o busto hesitante, e os seus pequeninos olhos verdes adoçavam,
molhavam-se de ternura. Por fim, com maligno sarcasmo, Jorge:

--Bem, bem, _mamita_... perdôa-me que te diga... mas o certo é que
estamos aqui à mercê da ganância de todo o _gaucho vividor_. Por êste
andar, daqui a pouco seremos nós que teremos que pedir por esmola aos
nossos colonos que nos dêem algo com que viver!

E levantou-se sacudidamente.

Um novo silêncio se abriu, arreliativo, apremiante, o qual Jorge
aproveitou para senhorear-se do Silveira e levá-lo consigo, atravessando
pronto o pátio e logo alcançando a desafogada galeria da entrada, onde
êle se atirou aborrecido para uma cadeira de _hamaca_ e acendeu um
cigarro. Das nuvens grisáceas e rasteiras caíam os primeiros salpicos de
água, e o joven Saavedra lamentou que o tempo os _embromase_ por aquela
forma, impedindo-os de sair, logo no dia da chegada. Lamentou-se
igualmente da insuportável monotonia e da extensão sem termo, ali, das
noites. Bocejou e alongou preguiceiramente os braços, numa mole
distensão de tédio. Mas logo, insinuante, gaiato, aprumando-se e
assentando familiar a palma da mão sôbre a coxa do amigo:--Que não lhe
désse cuidado! êle sabia bem como e aonde amenizar um pouco a coisa...
Os vélhos recolhiam cedo, ficavam os dois em liberdade; e então nada os
impedia de irem por'í onde melhor quadrasse... Tambêm havia meio de
_farrear_ pelo campo, correndo essa _chinería_ em roda.--E, como
antecipado aperitivo, já o inflamado mocetão deblaterava e fazia correr
a visão de vários episódios patuscos, ante o ôlho lúbrico do amigo.

À noite, sôbre o jantar, passou o pequeno grupo ao salão de _recibo_,--o
primeiro compartimento à esquerda do vestíbulo, na frente da casa.--Uma
arcaica mobília estofada, envôlta em protectoras lonas; fogão de
aparatoso friso em escaiola, simulando mármore, com relógio e castiçaes
de prata; fronteiro, sôbre o sofá, um grande espelho com a moldura
ratada; quadritos a missanga pelas paredes, e, sôbre dois singelos
tremós doirados, vasos barôcos de antiga porcelana, com flores de cera
sob redomas de vidro.--Logo de entrada o vélho Saavedra, correndo a um
armário e com os olhitos codiciosos, invitou para uma partida de xadrez
o Silveira, que declinou com mal dissimulado horror a iminente estopada.
Entretanto, D. Teresa vinha abater-se em pêso sôbre o queixoso sofá, que
se enrugou, gemendo; e chamava para o _fauteuil_ ao lado o hóspede, a
interrogá-lo sôbre coisas de Portugal. Da mesma forma, Célia,
jucundamente posto agora de parte o seu aspecto bisonho e arisco, tomada
de súbita e grata simpatia por êste galhardo advogado, ao almôço, do seu
desejo, interpelava-o com piedoso interêsse sôbre os lindos templos que
lá devia haver, na sua terra... e preciosíssimas alfaias religiosas,
relíquias autênticas, oiros, pratas, pedrarias, magníficos
tesouros.--Desvanecido e importante, o Silveira fazia acenos aprovativos
de cabeça: falou na custódia dos Jerónimos, nos retábulos da Madre de
Deus, nos paramentos de Mafra, nas riquezas de S. Roque. E íntimamente
maravilhava-se daquela sua esporádica explosão de patriótica sciência.

Por seu turno então D. Toríbio, espontâneo, afável, acudindo gostoso à
deixa:

--Ah, não há dúvida, Lisboa é uma linda cidade, e é um admirável povo, o
português!

O Silveira soergueu-se e dobrou-se numa lambida mesura. E o bravo pai
Saavedra, confirmando:

--É certo! Os senhores, sonhadores e plácidos como são, teem um grande
espírito de iniciativa. Eu sou insuspeito. _Este_... Veja o meu amigo...
Eu descendo de espanhóis, tenho algo dêsse sangue impetuoso e ardente da
terra que é o símbolo vivo da bravura, o berço esplendente da alegria,
da arte e da beleza. Sou um admirador incondicional e formo ainda um
rebento distante dessa formidável, cavalheiresca e valente Espanha,
pátria do amor, filha do sol, senhora do mar, _nodriza de mundos_!
Contudo sou o primeiro a reconhecer, e tenho o maior prazer em dar disso
público testemunho, que o progresso social da nação lusitana leva bem um
século de dianteira ao dos outros povos ibéricos.

--Demasiada amabilidade...

--Quere ver?... Max Nordau tem razão... Ainda durante dois séculos o
_muezzin_ havia de continuar a evocar os crentes maometanos em Sevilha,
em Granada, em Córdoba, quando já o vosso Afonso III repelira dos
Algarves o último rei moiro. Meio século antes que Colombo, de país para
país correndo, como um mendigo, obtivesse dos reis católicos as
caravelas com que veio descobrir a América, já o Infante D. Henrique
descobrira as costas de África té muito alêm do Equador. Muito antes que
Carlos V levasse a bandeira espanhola para alêm do Mediterrâneo,
Portugal conquistava Ceuta. Pombal expulsou de Portugal os jesuítas,
quando ainda em Espanha luziriam sinistras por muito tempo as fogueiras
dos _autos de fé_. Portugal foi dos primeiros países a repudiar a pena
de morte, a abolir a escravatura; e últimamente, renegando os vélhos
dogmas centralistas de tôda essa Europa rígida e feudal, adiantou-se a
formar com a Suíça e a França uma valente trilogia democrática. Não é
tudo isto verdade?... Aqui tem, meu caro amigo... _este_... porque eu
tanto os aprecio e admiro!

Não foi muito do agrado do Silveira êste fecho revolucionário da
apologética parlenda; contudo, como réplica obrigada, espraiou-se êle
então em lisongeiros encarecimentos bordados sôbre a formidável
exuberância e o vertiginoso progresso «da admirável nação argentina».
Entretanto, êsse bom _calavera_ de Jorge aproveitára o giro erudito da
palestra para escapulir-se. E aí estava agora Célia de novo a contas com
o pai, litigiando a favor da sua litúrgica birra.--Que tinha um nome
demasiado profano a _estancia_. Era até um repto de orgulho feito ao
céu. Forçoso baptizá-la.--O pai torcia-se contrariado, desfiava perante
a piedosa querença da filha todo um rosário de ponderosas objecções,
mastigava, opunha-se.

--Não, filha, que idéa! Bem vês, não pode ser. Sabes que êste grande
nome, _Amália_, justamente consagrado aqui como em tôda a rèpública, não
é o caso dum nome banal, não é uma designação anodina, arbitrária,
familiar, pueril, não! Tem a sua santidade tambêm... é um símbolo de
dedicação e heroísmo, evoca uma das páginas mais impressionantes da
nossa história.

Porêm já mãe e filha, sem darem maior tento à resistência formalista do
bom vélho, com cuja doce aquiescência, contavam, afinal, tudo era
discutirem agora e esmiuçarem meticulosamente qual dos cerúleos
habitantes deveria como futuro patrono da _estancia_ merecer-lhes a
preferência. E tinham dúvidas, hesitações, receios.--Talvez a adorável
_Virgen del Pilar_, duma lenda tam popular e tam poética... Contudo, a
_Virgen del Carmen_ tinha mais tradição crioula. Ou então seria melhor
_San Lorenzo_, protector das bôas colheitas. E porque não _Santa
Bárbara_, advogada contra as tormentas?

Ao que, trocista e afável, o bom vélho Saavedra:

--_Este_... já agora, p'ra que ninguêm lá no céu fique descontente,
chamem-lhe--_De todos los Santos_.

Por fim, a cortar cérce a dificuldade, os três foram unânimes em convir
que a _Miquêtas_ decidiria.

E sôbre êste ditame conciliador a patriarcal _tertulia_ fechou, por
aquela noite. D. Teresa ergueu-se pesadamente, com austera gravidade
obtemperando--que já eram as dez passadas... havia que despertar cedo,
ali: ela para os seus pobres, o marido para a _peonada_ do
campo.--Depois, já fóra, no vestíbulo, e como última das solícitas
indicações com que a bondadosa senhora despediu o Silveira, aconselhou
com carinho--que, em suma, a estação já ia avançada... mas em todo o
caso, pelo sim, pelo não, que não se esquecesse de cerrar o mosquiteiro.


Neste acolhedor ambiente de límpida cordealidade e benéfico repouso
foram decorrendo para o Silveira deliciosamente os dias. Ali êle
encontrava uma íntima e perfeita conformidade entre a amiga efusão das
almas e o afago tranqùilo das coisas. Embalavam-no na mesma onda de
beatitude e carinho, o sorriso afável das figuras e a placidez infinita
da paìsagem,--aqui tam diversa das fragoeiras e montanhosas agruras dos
cêrros da sua terra. Tinha uma vida leve, encantadora, fácil, vida de
confiança e olvido. E todo êste suave meio, abundante em agrados e
repassado de inédito, trazia ao seu ser moral e físico um salutar
estímulo.

Assim, logo em cada antemanhã, aí estava êle a cavalo e partia, de
ordinário com Jorge, ou com o _mayordomo_, a surpreender na sua
complexidade pitoresca, na sua poesia sádia e rústica, a labuta áspera
do campo. Pelas manhãs limpas e claras, ainda mal o oriente aquecia da
carícia auroral do sol, e já êle seguia com algum _capataz_ a verificar
o estado dos _alambrados_, a revizar e contar o gado. Assistia ao
apartar das rêses, aprendia a ferrar, a castrar, a _carnear_, a
_investir_, a atirar o laço. Muita vez então êle estacava, e, com mal
contida inveja, quedava-se em admirativa contemplação perante a nobre
silhueta dalgum _paisano_ montado que passava arrogante e viril a
aprumar-se e a crescer na lisura uniforme da planície. Encontrava
realmente belas, impressivas, soberbas de linha, de ímpeto e de
carácter, cada uma destas rudes e íntegras figuras, curtidas pelo ar,
tisnadas pelo sol,--mescla de oiro e bronze, e como o mesmo bronze duras
e indobráveis,--envaginadas toscamente na sua singela blusa e na
_bombacha_ ou enfiando o _poncho_; ao pescoço, com um nó à frente, o
indispensável lenço enrolado; protectoramente a cabeça envôlta nas
grandes abas do clássico _chambergo_; do cinturão, sôbre os rins, o
inseparável _cuchillo_ colgado, e o laço e as _boleadoras_ na garupa; as
retêsas botas coladas e firmes sôbre os aparatosos estribos, de tábua ou
de coiro, profusamente rendados de guarnições de prata. E então,
naturalmente, ao vêl-lo assim contemplativo e atento, Jorge orgulhava-se
e compartia daquela admiração complacente do amigo. Logo, comprazia-se
na exaltada apologia dêsses centauros errantes da planura,
completava-lhes a fisionomia moral, enaltecia a sua bravura, a sua
generosidade, a sua altivez, o seu desprendimento, o seu desprêzo
estóico pelo dinheiro, a sua resignada submissão ao destino. Galopando
eram um turbilhão, parados eram estátuas. E acumulava pormenores,
desfiava anecdotas.--Jàmais consentem _que les pisen el poncho_. Eram de
sua natureza altercadores e brigões, cultivando apaixonadamente, como um
_sport_, tôdas as várias formas da luta, porêm nunca a sua lisa alma
abrigava o rancor e poucos baixavam ao crime. Cada um dêstes bravos
senhores do deserto poderá dar um herói, raro um facínora. Uma vez
vencedor desinteressa-se pronto do vencido, que desdenhoso se limita,
quando muito, a marcar com o estigma cortante dalgum _tajo en el
rostro_, um simples _barbijo_.

Mas, breve, com o glorioso avançar do dia apertava o calor, e então
quáse certo era irem os dois amigos demandar por um instante o
confortável refúgio de algum dêsses humildes _ranchos_ dos colonos
agrícolas, sumaríssimas construções de palha e barro, tímidas e míseras
palhoças que abrigavam sob o teto, raso e intonso, uma vida tam
elementar como as suas paredes eram primitivas. Ausência quáse total de
mobília, reduzida a alguns polidos cránios de vaca servindo de assento,
e a raros catres ou esteiras sôltas sôbre a terra nua. A alimentação
parca e simples, por igual: carne, pão, _mate_, açúcar, e mais um pouco
de arroz nos dias de festa. Um campo rudimentar de acção e um reduzido
vôo de desejos. O miudito espaço fechado por estas ingénuas tócas à flor
da terra, parecia entretanto naqueles depressivos momentos, ao
quebrantado ânimo dos dois jovens, um delicioso rincão do Paraíso. No
que ia tambêm um pouco de sugestivo encómio feito convictamente pelo
colono ao próprio ninho.

--Passa-se aqui melhor que na cidade, senhores... O _rancho_ é fresco no
verão e quente no inverno.

Na Argentina corre geralmente despreciada e ignorada a obra, sôbre tôdas
fecunda, do colono, do emigrante, mercê do anonimato iníquo a que a
relega ainda a persistência tenaz da tradição romântica do _gaucho_. E
contudo, aqui, as flutuações na produção da terra dependem
essencialmente e são inseparáveis das vicissitudes da vida do colono
estrangeiro, progressivamente vinculado pelo mortificado plasma do
próprio suor à mesma terra. E é em primeiro termo à beneficiosa
influência e ao pastoso esfôrço dessas protéicas aluviões humanas que
êste privilegiado torrão, de flancos sangrantes, deve a maravilha da sua
abundância e o milagre da sua riqueza.

Pela tarde, depois de uma breve sésta, novo giro. E, nesta vagabundagem
de acaso dos dois amigos, vinham a ser estases de obrigado repouso as
várias _pulperias_ (casas de venda) com que êles deparavam no caminho,
umas rodeadas de meia dúzia de casotas mais, outras singelas e sós
aflorando tímidamente, como incrustadas na monotonia imensa da paìsagem.
A _pulperia_ participa simultâneamente do carácter de taberna, centro de
reùnião, estação postal e loja de comércio,--um comércio sem
especialização e sem limite, extravagante e imundo _bric-à-brac_ de
objectos para todos os usos, de utensílios para tôdas as necessidades,
de produtos de todos os países, de farrapos de tôdas as épocas. Na
primeira casa dêste género em que o Silveira entrou, surpreendeu-o a
confusa variedade, a atropelada profusão e o baralhamento infinito das
coisas disparatadas e antitéticas que dêste caótico mostruário formavam
o recheio. A um canto, ao lado do mostrador e tomando tôda a parede,
havia um desordenado empilhamento de atributos hípicos,--cabeçadas,
rédeas, freios, selins, açoites,--crestados já uns pelo uso, novinhos em
fôlha os outros. Ao lado oposto, era uma bárbara inundação de ferragens
de tôda a sorte, de cilindros e novelos de fio de ferro, de fusis e
petrechos de caça, ferraduras, martelos, cravos, navalhas, facalhões,
tesouras, tudo isto alternado com prateleiras cheias de produtos de
drogaria e especialidades farmacêuticas. Ou eram fieiras de lâmpadas de
petróleo suspensas sôbre sacos de milho, feijão e arroz; ou ainda, um
pouco alêm, os mais tôrpes especimens de calçado vélho pendurados à
mistura com résteas de alhos e mólhos de cebolas; ou a tentadora bateria
de cervejas, do _brandy_, do _whisky_, dos licores, nos seus frascos
rutilantes; ou, emfim, as cabacitas de _mate_ e as peças de algodão de
côres berrantes, infalível engôdo às predilecções louçãs das raparigas.

Abancavam os dois amigos a alguma das mesas livres e pediam cerveja,
flanqueados de cêrca por outras mesas, de roda das quais pacíficos
grupos, de gente rude e simples, bebiam _cana_, jogavam as cartas ou
concertavam transacções comerciais, dilatadamente. De quando em quando,
algum novo freguês entrava, saùdava com gravidade, despedia um vago
olhar em tôrno, depois ia sentar-se e ficava-se indefinidamente
silencioso, esquecido, quáse imóvel, enrolando o cigarro, antes que
exteriorizasse a sua intenção ou manifestasse o seu desejo. Porque o
_gaucho_ nunca tem pressa. Habituado como êle anda a medir o tempo
segundo a declinação do sol, assim perante o seu modo desprendido e
calmo de encarar a vida, uma hora a mais ou a menos não conta uma
apreciável diferença. A _pulperia_ é, para êste dominador lendário da
_pampa_ argentina, mais que um vicioso centro de atracção: é um
inviolável asilo de meditação e de repouso. Casa-se íntimamente com a
sua inata altivez, com a sua natureza indolente e agreste, a soberana e
apartada independência, o calmo e tépido ambiente dêstes baratos _oasis_
industriais, onde êle em pleno olvido dormita e sonha, enquanto, fóra,
por essa extensão sem fim, dardeja fogo o gládio em brasa do sol ou
fustiga o ar a asa revôlta da tormenta.

Por vezes havia na taberna um guitarrista; e então os preguiceiros
_gauchos_ desentorpeciam, chalravam mais alto e bebiam mais forte,
estimulados pelo zangarreio mole e sensual dos _tristes_, _vidalitas_ e
outras corridas árias crioulas. E tambêm, a espaços, uma que outra vaca
ou bezerro, metendo a cabeça, vinham mugir familiarmente à porta;
enquanto os gafanhotos e as borboletas a cada momento entram e sáem
volitando, zombeteiros e livres, num como que desdêm trocista por êsse
mesquinho produto da indústria humana que se permitira a ousadia de vir
ali ridículamente enxertar-se na majestade soberana do deserto.

Porêm para o feitio mulherengo e ribaldo do Silveira, as mais saboridas
horas nesta folgada digressão campestre, eram sem dúvida as noites.
Inalterávelmente Jorge, com o seu faro infalível de vélho garanhão
regional e fiel às baixas solicitações do seu instinto, conduzia então o
amigo às estações galantes da redondeza, a essas abscônditas e errantes
_pulperias_ do amor, asquerosas e imundas _madrigueras_, cheias de
mugre, o ar afrontoso e envenenado, crasso de emanações carnais, nublado
de fumo de tabaco, onde sôstros e descompostos grupos de chinas da
ínfima espécie se deslocavam nas lúbricas contorsões de algum acanalhado
_tango arrabalero_, e no mais tôrpe delírio de gestos e visagens
porfiavam em inflamar o apetite mórbido dos visitantes, desmanchadas em
bailuchos desonestos, abertas em risos que davam tristeza, dobradas em
carícias que infundiam asco, sôltas em requebros que faziam mêdo. O
Silveira não descia a misturar-se na agitação insalubre do torvelinho;
porêm mentalmente embebedava-se na contemplação desta dionisíaca
paródia, comprazia-se no exame de tam ignóbil espectáculo. A exsudante
coreia animal enardecia-o. Ao passo que o seu amigo Jorge, menos isento
e mais frascário, por vezes se emborrachava a perder, apostado no
clássico _tomo y obligo_ e confundido com a ronda esborifada e bestial
do mulherio.


Por fim, andados uns dias mais, o Silveira, reputando-se um esperto
conhecedor já da região, emancipou-se. Agradava-lhe agora de
preferência, uma ou outra vez, sair êle só e aventurar-se em soltos
rumbos pelos dilatados panoramas da redondeza. As fragoeiras qualidades
do seu génio requeriam esta expansão libérrima. O aguilhão vago da
incerteza era um estímulo mais a acicatar-lhe o vivo apetite do inédito,
neste seu investimento solitário do Desconhecido.--Assim aconteceu que,
uma tarde, depois de haver gozado algumas horas andando às inculcas,
sòzinho e à tôa, pelos campos, quando pensou em regressar à _estancia_,
pela primeira vez hesitou na direcção a seguir e começou a dar-se conta,
com arreliador desagrado, de que pisava um país ignorado, alheio,
hostil... compreendeu que se havia perdido. A sua ilusória presunção de
infalível batedor do campo atraiçoára-o. Não sabia onde estava. Debalde
interrogava e buscava ansioso profundar o mudo enigma do espaço. Na
inquieta demanda do rumo perdido, ensaiava ao acaso veredas e trilhos
novos ou fazia longas e fatigantes caminhadas, que, como num circuìto
infernal, o traziam invariávelmente ao mesmo ponto de partida. Já a
noite vinha próxima e os pontos de referência conhecidos falhavam-lhe.
Olhava ao largo e respondia-lhe o desdêm burlão da imensidade. O mesmo
dócil animal que êle montava, parecia tomado tambêm,--caso raro,--duma
indecisão, duma ignorância, dum receio igual, e a cada momento estacava,
fitando as orelhas, e num interrogativo ruflar, nervoso e álerte,
alongava as narinas fumegantes.--E não aparecia viv'alma!--Teriam que
ficar p'r'aí assim, Deus sabe como, aonde e por quanto tempo... Nem um
ente vivo que os encaminhasse! não apontava um sinal, não alvejava uma
casa. Não surdia por acaso algum dêsses vélhos e graves _rastreadores_
que,--êle ouvia contar,--seria capaz de metê-lo a direito, descobrindo e
estremando-lhe o decalque do passo da montada no piso batido e poeirento
da planura. Nem tampouco se fazia o milagre de êle encontrar um dêsses
subtís _baquianos_, inverosímeis topógrafos, que sabem o curso de todos
os mananciais, conhecem os vaus de tôdas as ribeiras e são peritos em
discernir, um por um, entre milhares de caminhos...

Então, na sua insistente e miúda inquirição do ambiente, o Silveira
notou súbito, e ali bem perto, uma sébe de arbustos bravos para lá da
qual havia seguramente alguêm. Sim, porque, não obstante a calma
paradisíaca do ar, as suas fôlhas tinham róces metálicos, e os ramos
abanavam, estalidavam, dobravam-se e erguiam-se em choques rumorejantes.
Dirigiu para ali o cavalo e breve distinguiu através da folhagem as
indecisas linhas dum grupo: duas figuras, mas evidentemente em briga,
porque, ao seu impulso, a trama verde da precária vedação tinha
deslocações violentas, crispava-se em bruscos sacudimentos, e de envolta
com a sua arrepelada flutuação vinha o resfolegar opressivo e anelante
de pessoas que lutam ardidamente... Curioso, o Silveira apeou-se de
golpe e deu volta. E viu que um sujo e intonso labroste estrangulava nos
braços brutais o corpito espavorido e vibrátil duma joven aldeã, que se
debatia exasperadamente, e que aquele animal queria à viva fôrça
sujeitar ao cevo do seu desejo.

O coração do Silveira teve uma retracção de generosa angústia, um lume
vingador lhe passou diante dos olhos e atirou-se, de salto, contra o
cobardíssimo sátiro, aplicando-lhe bruscamente um formidável murro
contra a nuca, e logo, cingido cerce com êle, afogando-lhe o pescoço com
as mãos tirantes, duras, implacáveis como duas tenalhas de aço.
Subjugado pela inopinada e valente agressão, o imundo labrego não teve
mais remédio senão deslaçar os braços, largando a presa; e queria
voltar-se e defrontar duramente o adversário; porêm antes, cedendo ao
garrote aniquilador da asfixia, cambaleou e tombou desfalecido na mesma
terra revôlta pela sua bestial investida. Dominador e soberbo, com o
revólver pronto assestado, o Silveira ameaçou:

--Se te mexes, cão! faço-te saltar os miolos.

O contricto matulão, estendido e inerte, esboçou um esgar implorativo,
sem palavra ferir, erguendo os braços suplicantes.

Aproveitou o Silveira êste favorável instante para lançar um olhar de
piedoso interêsse sôbre essa ignorada flor da selva que êle
providencialmente acabava de salvar, a sua pequena desconhecida. E logo
o vencido rústico, surpreendendo a momentânea distracção, saltava lésto
em pé e pronto a arremeter como um toiro, lívido de raiva, com uns olhos
de morte, contra o seu garboso rival, brandindo o traiçoeiro _cuchillo_
no braço homicida. Porêm acudiu a tempo, de sua banda, a rapariga,
alcançando-o animosa pela espalda e pendurando-se-lhe do braço em pêso,
a segurar-lhe o pulso. Foi um momento, o bastante para o Silveira, de
revólver sempre assestado, retomar o seu ascendente e obrigar o meliante
a largar o ferro. E vá de zurzi-lo depois com o chicote
desapiedadamente, cobrindo-o de impropérios, fazendo-o rodopiar sôbre os
rins, arregoando-lhe a face, varejando-lhe os quadrís, e cortando-lhe os
joelhos. E o confuso marmanjo, outra vez de braços ao alto, não fazia
agora mais que recuar, recuar passivamente... té desaparecer por fim na
sombra, derreado, aturdido, cego e vagamente ameaçador, rugindo.

Podia agora enfim o Silveira contemplar mais em sossêgo a curiosa
figurinha que tinha ali assim a seu lado, retraída e tímida, tôda
tremulante e magoada ainda da repelente luta de há pouco. A estúpida
scena fôra tam breve que a êle nem déra mais tempo que para fixar-se bem
nos gestos e atitudes do seu caviloso contendor. Da indefêsa vítima
dêste não chegára a lograr formar-se uma noção definida e clara. Agora,
sim... Era uma linda e adorável _morenucha_, pouco mais de nubil,
delgadita e enxuta, dum moreno de bom tom, um moreno atenuado e
lânguido, apenas mais vigorosamente mordido na macieza tostada da nuca,
no nankin macerado das olheiras. Calçava uma espécie de tôscas
alpercatas brancas e grosseiras meias negras, de lã; sôbre a saia, muito
curta, negra e rústica por igual, e em cujos tupidos refêgos a
estreiteza anadioménica dos quadrís se perdia inteiramente, abatia-se a
fímbria sôlta duma blusa clara, de riscado; e pela colina apolínea dos
ombros, firmes e redondos, uma floresta de fartos cabelos negros,
naturalmente ondeados, desparramava-se em desalinho. O fresco e
apetitoso dasabrochar duma esplêndida flor do campo. Tinha uma expressão
singular, entre menineira e selvática, uma como frescura moral de clara
fonte. A mais pura linha de contôrno ovalava o seu rosto cheio e
singelo, côr de trigo maduro, animado por uma bôca que era um alçapão de
desejos, aquecido por uns deliciosos olhos negros, cheios de fogo, olhos
que se não fossem tam puros seriam a perdição da sua alma. E a cálida
veemência do temperamento, as demasias do sentir latente, a flama
espirrante da sua vida interior, denunciava-as bem a tinta mate da
epiderme,--essa côr hepatizada e ardente das loucas depositárias da
paixão.

Com paternal carinho o Silveira, adiantando-se, preguntou-lhe--como
tinha sido aquilo? que se havia passado?--E ela, cândidamente, com um
pêso de vergonhoso embaraço a velar-lhe as palavras e a abater-lhe as
pálpebras:

--_Yo andaba buscando una tropilla de cabras que se me ha extraviado,
cuando ese gringo_...

--Pobresita!

A esta sincera exteriorização de piedosa ternura não teve a suave
rapariga uma palavra de comentário... porêm a comoção empanou-lhe os
olhos e um sôpro de enternecida gratidão lhe fundiu a alma.

--Como te chamas?--familiar o Silveira tornou.

--_Luisa, servidora de Usted_.

--E então agora vais p'r'á tua casa?

--_Si, pues_.

--Muito distante?

--_Sesenta cuadras, no más_.

--Se queres, eu te acompanho.

--_Bueno, señor_.

Numa instintiva e afável confiança, ela avançou dois passos, o Silveira
tomou-lhe a mão esquiva, e os dois acercaram-se então do cavalo, a que o
dono tomou a rédea. E queria que a pequena montasse, e cortêsmente
insistia, para furtá-la à fadiga molesta de tam longa caminhada. Porêm a
gentil rapariga, tenazmente, escusava-se.--_Que no, qué esperanza!_--E
por seu turno, desprendida e solícita, teimava em que êle é que tinha de
aproveitar a montada. Era o natural... Um senhor da cidade, tam fino,
tam delicado!--Por fim, a rodear amigávelmente a dificuldade, resolveram
por mútuo acôrdo seguirem, já agora, ambos a pé.--Passariam trabalhos
iguais... assim, nem um nem outro teriam que dizer.--E foi como
alegremente iniciaram então a penosa jornada, pronta e infantilmente
acamaradados, com o cavalo à mão e marchando a par e passo os dois,--ela
mocanqueira e feliz por tam fidalga companhia, vaidoso êle e arrogante
por ver-se o depositário ocasional daquele tesouro,--mano e mano
divagando, mansos e graves, na luz indecisa do crepúsculo, pela orla
sinuosa dos caminhos.

Nesta hora recolhida e melancólica, já o sol baixava a rasar a purpurina
fímbria do horizonte, envolto numa conflagração de nuvens que o
toucavam, redondas e infladas, como o penacho dum elmo rutilante. E o
seu estirado reflexo incendia o imenso lençol pampeano em fulvas
reverberações, como um vasto clarão de incêndio, no mais puro e mordente
contraste com a leveza espelhada do céu, infinitamente calmo, fundo e
diáfano, cuspido apenas ao alto de breves nuvens policromas.--Andando
sempre, amavelmente o Silveira ensaiava, a curtos intervalos, travar
diálogo e entabolar conversa, a fazer um pouco o conhecimento da sua
misteriosa companheira. Luísa porêm tinha dificuldade em compreendê-lo,
fazia-o a miúdo repetir as frases; e apenas se ela consentia depois em
deixar escapar alguns raros, intervalados, curtos e soltos monossílabos,
como gotas de água reçumando num subterrâneo. E a seguir logo ela recaía
no mesmo mutismo concentrado e apático, fechava-se na sua invariável
reserva, na sua tímida esquivança, marchando silenciosa e humilde, ao
lado do seu generoso amigo, com a repousada majestade da paìsagem nua do
deserto.

Contudo, a poder de paciência e mimo, o Silveira conseguiu inteirar-se
de que ela vivia separada e longe do pai e da mãe, por contendas de
família; e que trabalhava a jornal, mais um irmão, na fazenda dum dos
mais acaudalados chacareiros da redondeza. Igualmente conseguiu torná-la
sabedora do motivo da acidental aparição dêle por ali. E então era de
ver como a graciosa _morochita_ vivamente se interessava.--Ah, a
estancia _Amália_?... Conhecia muito bem: _una ricura! Qué buena señora_
a D. Teresa! _Señorita_ Célia, _una santa_... Por sorte, era p'r'os
mesmos lados da sua chácara. Não havia dúvida, ela lhe ensinaria... E
tudo mais que êle quisesse... Não havia por'li assim rincão nem caminho
que ela no _supiera al dedillo_. Conhecia-os com'os os seus dedos.--E,
dizendo, tornava-se comunicativa, e afogueada, risonha, saltitava de
prazer, tôda na vibração exultante de poder ser útil a êste bravo e
loução desconhecido a quem ela devia mais que a vida.

Porêm, súbito, a atraente campesina estremeceu, e, dando um salto,
atirou-se contra o flanco protector do amigo.

--_La lechuza! la lechuza!_--murmurou com supersticioso terror a
timorata rapariga.

E apontava um pequeno ponto escuro sôbre um poste telegráfico, à ilharga
do caminho.

Ergueu o Silveira, alarmado, na mesma direcção os olhos e pôde
distinguir uma pequena ave, de côr àquela hora indecisa, e que lhe
pareceu um pouco mais volumosa que os tordos que êle sabia tam bem
caçar, na sua terra; porêm com uma grande cabeça chata, solene e
doutoral, vagamente humana, e poisado com uma gravidade que lhe dava o
mais estranho ar, uma bizarra mescla de ridículo e de mistério.
Confrangida e de cabeça baixa, apertando os braços, a pobre Luísa
entaramelava,--que aquilo era uma ave má, agoireira, sinistra! Mal ia
aos que _la lechuza_ fitava assim... como a ela estava fazendo agora!
Era o mais temido avejão do campo, o mensageiro da fatalidade, um
prenúncio certo de desgraça.--Animoso e incrédulo, o Silveira buscava
tranqùilizá-la.--Que não désse fé a essas estúpidas crendices dos vélhos
tempos. Quem cria agora em agoiros?... Tonterias! Era um pobre animal
inofensivo e simples, como tantos outros.--Luísa porêm convictamente
protestava.--Que não! todos os dias se estava a ver... Ainda não havia
muito tempo que um tio dela caíra e morrêra afogado num pôço, por ir
perdido a querer furtar-se à perseguição duma aventesma destas, por uma
noite assim... E a amásia última do patrão? E a filhinha do sr. juiz de
paz?... Não havia nada peor! Tinha a sua vida cortada...

E, num mixto de ansiedade e horror, de quando em quando ela indagava a
presença, pelo espaço, dessa azarenta mancha indecisa... a qual por seu
turno, de poste para poste, de bouça para bouça, surda e fantástica,
avoejando, implacávelmente os ia seguindo sempre,--na sua grande cabeça
redonda, invariávelmente sôbre os dois apontada e fixa, luzindo
ameaçadores e preságos dois pontos fosforecentes.

Sentindo contra o seu flanco a palpitação do corpinho fresco e
tremulante da rapariga, o Silveira aquecia. Dirigia-lhe palavras de
carinho, cingia-a pelos ombros, afagava-lhe paternalmente o cabelo.
Neste delicado momento, senhoreava-o uma ácida perturbação,
desdobrava-se-lhe a alma numa inquietante duplicação de sentimentos,
participando a um tempo da piedade e do orgulho, da vaidade e do desejo.
Quando considerava a justa oportunidade, o êxito feliz da sua
cavalheiresca aventura, isento e honesto o coração alargava-se-lhe; e,
ao mesmo tempo, por todo o seu ser em alvoroço despertava uma sensação
de terna e estranha voluptuosidade,--o apetite vago de possuir a sua
linda e frágil tutelada para continuar a protegê-la...

Assim foram longamente caminhando, na progressiva invasão da tréva e do
silêncio, minúsculos e sós os dois na imensidade, alumiados já pelo
sonambulismo errante das estrêlas. Por aquela agonia dulcíssima de
tarde, o crepúsculo da luz e o crepúsculo da tradição fundiam-se. Era o
charro e vazio esbatimento, era a definitiva eliminação de todo êsse
mundo de encantadoras e imaginosas ficções que, antes, volitando
irisadas e leves, como borboletas, esmaltavam de poesia a esfumada
atmosfera dêste país fantasista e ingénuo,--hoje irremissívelmente
dispersas, trituradas e desfeitas pelo industrialismo feroz da hora
presente. Não mais serenatas, encantamentos, fadas, demónios surdindo
dos poços, virgens penteando-se ao luar, bruxas alucinando donzelas,
sereias a adormecer gigantes... No repouso letárgico da planura, o único
ruído perceptível era por acaso o rouco soluço de alguma locomotiva,
raspando ao longe. E neste apaziguamento sem termo, na absoluta
desolação desta soledade infinita, a monotonia sem fim da _pampa_
alastrava como uma imensa mortalha,--era um mar morto num país de
olvido.

Haviam atingido o ponto obrigado da separação, o teimo fatal à deliciosa
e imprevista caminhada. Foi quando gravemente o Silveira estacou frente
à sua linda sócia de jornada, e tomando-lhe as duas mãos, encarando-a
bem nos olhos, suasivo e meigo:

--Então, muito cansada?

--_No... aunque fuera doble del camino_,--murmurou Luísa docemente.

--Espero que nos tornaremos a ver...

--_Quien sabe?_--devagar ela suspirou, furtando os olhos, com um peganho
vago de tristeza.

E dos dois as mãos trémulas e frias deslaçaram-se, houve um mútuo breve
acêno de despedida e voltaram-se costas, num eloqùente mutismo, seguindo
cada qual o seu caminho.

O Silveira, porêm, tam pronto deu no seu novo rumo os primeiros passos e
sentiu que lhe faltava o que quere que fôsse... e contra o seu querer
não despegava de pensar, apiedado, quente, com uma devoção enternecida,
na misteriosa aparição dessa adorável e paradoxal criatura, tam
sobranceira ao mal, tam pura em meio de tanto lôdo, tam segura da sua
imunidade, tam resoluta diante do perigo. Quis vê-la uma vez mais....
parou, voltou-se. Mas, impelida por idêntico desejo, ela voltára-se
tambêm... E nesta simultânea permuta de olhares, confusa ao ver-se
surpreendida, a alvorotada criança deu logo rápida a espalda e disparou,
correndo.




VIII


Longe, na _estancia_, a extraordinária demora do Silveira tinha tôda a
família Saavedra em cuidado. Já eram as 9 horas passadas e ninguêm
pensava em comer, polarizada e anciosa como todos tinham a atenção no
pávido receio de que ao seu simpático hóspede houvesse sucedido alguma
coisa... A conjurar os maus fados, a mística Célia não cessava de
marmotar íntimamente rosários sôbre rosários de intercessoras preces. E
já o irmão havia feito convocar uma dúzia de peões, para que montassem
pronto a cavalo e batessem de roda os caminhos, quando finalmente,
açodado e ofegante, o Silveira apareceu. Entre fatigado e confuso,
desfazendo-se em implorativas frases, em instantes justificações, em
escusas humildes, contou então à mesa a sua romanesca aventura. O
pequeno círculo amigo escutava-o num pique de intêresse crescente, que
subiu de ponto té assumir os contornos duma enternecida piedade, quando
êle, tendo anotado por uma sacudida mímica a rápida e sumária exposição
da luta, se comprazia depois, turbado e quente, na sentida descrição da
sua pequena protegida. Então os aplausos choveram claros, abundantes,
envolvendo o destemido galã no mais propício ambiente de favor, de
agrado, de entusiasmo.--Uma acção de cavalheiro! Parecia mandado pela
Providência ali... Fôra lindo!--E com uns grandes olhos pezarosos, as
duas senhoras:--Pobre _chica_! essa... andar assim exposta... E é como
muitos males acontecem... por'mor da necessidade, tantas vezes!--Sómente
Jorge, fátuo e incrédulo, punha neste ingénuo círculo a nota
discordante.--_Qué chica_! que perigos, que necessidades! _Pura parada,
zonceras, bromas_ ... Fôra um caso trivial aquilo. Êle estava farto de
conhecer essas falsas virtudes do campo: eram umas sabidonas, umas
impostoras, umas ratas sábias da moralidade, réles virgens de
contrabando.--E como, santamente indignada, a irmã protestasse, com
arrogante scepticismo, num risinho chocarreiro o impertérrito censor
desafiava:--Mandassem-na p'ra êle, que logo a desmascararia!

No dia seguinte, de manhã, correio. Pai Saavedra aguardava com
impaciência os jornais, que deviam já trazer o resultado das eleições em
Buenos-Aires. Confirmava-se a vitória dos socialistas. E desgostado o
bom vélho, depois de lêr os nomes dos novos deputados e a crescida cifra
que haviam alcançado no sufrágio popular, disse para o filho e o
hóspede, enquanto depunha as lunetas, abanando a cabeça com tristeza:

--Acho um mau sintoma... Isto é um contrasenso, um absurdo, fértil em
resultados negativos que breve vão dar o seu pernicioso fruto, hão-de
ver... Não faz sentido, não se compreende: uma sociedade minada pelo
socialismo e tôda regida ainda por leis góticas e romanas.

Esperava tambêm notícias da família, de Paris, que havia já tempos que
não vinham. E numa piedosa tristeza, encolhendo os ombros:

--Aquele meu neto! Só escreve quando precisa de dinheiro.

Igualmente o Silveira havia recebido correspondência da Europa, e que de
Buenos-Aires obsequiosamente lhe remeteu o Azeredo. Primeiro, largas
notícias dos seus primos de Tourais, informando-o que aquilo por'li ia
mal... o Douro estava descontente. O vinho todo nas adegas, os preços
arrastados e mesmo assim ninguêm comprava. Efeito em bôa parte da
protecção escandalosa que o govêrno da Rèpública continuava dispensando
aos vinhos do sul, que pelo Pôrto e Gaia entravam descaradamente. E que
os lavradores estavam furiosos, os jornaleiros com fome, os povos na
miséria. A continuarem assim as coisas, muito sangue ia correr!
Falava-se em revolução, e, em último caso, o Norte saberia bem
emancipar-se políticamente dêsses soberbos e egoístas mandões de
Lisboa!--Todo êste inflamado rol de ameaças o Silveira leu breve e
distraídamente, sem dar ao assunto maior atenção, como se se tratasse de
remotas coisas passadas nalgum país desconhecido. Tinha agora uma carta
do seu irmão Bernardo. Lamuriava a sua falta de trabalho, a ignorância
rotineira dos lavradores, a descrença e a impiedade corrompendo tudo...
e pedia-lhe dinheiro. Soltou-a das mãos com indiferença. A seguir, outra
carta. E êle conhecia bem esta letrinha tortuosa e miúda, traslado
flagrante do carácter mimalheiro e vibrátil da sua olvidada noiva.--Umas
dúzias de linhas lacrimosas, desgrenhadas, lúgubres... bagoadas de
nénias e lamentos, amargas recriminações líricamente contornando, como
lianas de queixumes, todo um florilégio veemente de paixão. E exprobrava
ao seu ingrato prometido essa evasiva hipócrita da «sua dignidade em
briga com o seu amor»... e que tal amor por ela nunca êle sentira... por
isso que o verdadeiro amor é um sentimento exclusivo, dominador
absoluto, que com nenhum outro se compara, de nenhum pode aceitar
limitações nem sofrer competências. Vinham ainda solenes protestos duma
vida tôda de isolamento, de abstenção e renúncia, té que o seu amado
voltasse. Aludia-se vagamente ao suicídio...--Porêm, ainda na mesma
alheada e fria disposição de ânimo, a atenção do Silveira correu ligeira
sôbre a enternecida página, desviando logo a vista indiferente e
arrojando-a ao lado com tédio.

Agora, um exemplar de _La Razón_, de Buenos-Aires, com um longo artigo
marcado a lápis azul e um bilhetito dentro. Era daquele seu peripatético
sócio de viagem, o Ramón Alvarez, que com desbordante ufania lhe
noticiava estar contratado para escrever nesse diário umas crónicas
literárias semanais que firmaria com o seu pseudónimo de
guerra,--_Carrasco Bossa_. E sessenta _nacionaes_ por cada uma. Bem bom!
Aí ia a primeira.--O Silveira nem uma linha leu sequér; e vá de tomar
por fim a última carta,--esta sim! que o fez dobrar-se, nuns grandes
olhos espectantes, e foi logo aberta com o maior interêsse. Vinha de
Espanha, tinha o carimbo de Orense. Era um dos seus amigos da fracassada
conspirata monárquica a participar-lhe--que as coisas iam bem agora...
ali trabalhava-se mais à vontade, as autoridades faziam a vista grossa,
êles tinham armamento, dinheiro, quantidade de gente instruida. Desta
vez seria a valer! E que estava por pouco êsse pesadelo tôrpe da
Rèpública!--E na sua confiada antevisão do termo breve do seu exílio, do
advento vingador do seu triunfo, o Silveira lia e relia com demorado
calor o sugerente papel acariciado entre os dedos, e um frémito de
incontido júbilo vinha bailar-lhe na aresta dos lábios trémulos.

Mas seguramente aquele era o dia das novidades, porque à hora do _mate_
um inesperado telegrama chegou, dirigido a D. Teresa.--Era Maria
Mercedes que anunciava a sua visita, para a manhã seguinte.--Foi todo um
gáudio, um encanto, um alvorôço, uma festa. Ao mágico influxo da
prazenteira notícia, a arrastada e monótona vida habitual da _estancia_
ganhou alento, alma, calor, transfigurou-se. Já um sôpro de cordial
eflúvio vibratilizava o ambiente, e as fisionomias tinham um outro ar,
as coisas brilhavam duma claridade nova. E tôda a tarde, depois, para
êsses reservados aposentos do andar superior um carinhoso movimento
convergiu, de solícitos mimos, previsões, atenções, cuidados. Os
serviçaes arrumavam, espanavam, varriam, traziam lençóis e toalhas,
faziam as camas; Célia foi incansável na condução de flores, em sábias
instruções ao pessoal da cozinha; e de sua banda os dois Saavedras, pai
e filho, à porfia volviam a desfiar, cada um por seu modo, os singulares
atributos e as adoráveis perfeições da nova hóspeda, perante a picante
emoção crescente do Silveira. À noite discutiu-se quem havia de ir à
estação recebê-la. Célia e Jorge estavam indicados; porêm o Silveira
desejaria acompanhá-los tambêm, e a dúvida era se teria logar. Porque a
_Miquêtas_ trazia seguramente a inseparável Dorita mail'a _niñera_: eram
assim ao todo seis pessoas, e o auto não comportava mais que cinco.
Contudo, a momentânea dificuldade compôs-se pela desprendida insistência
de Jorge--em que seguiria ao lado do _chauffeur_.

Na manhã seguinte, à hora justa do horário, o trem de ferro parava em
Chascomús. E na obscura mancha _gris_ dos raros viandantes que saltaram,
vá de recortar-se, num forte e eurítmico destaque, a esbelta silhuêta
duma mulher redondita e grande, os olhos negros, loira, aparatosa,
avançando com lentidão, de cabeça erguida e sorriso aberto, na flexuosa
molenta dos movimentos revelando todo um contôrno de divindade pagã, e
ora amplificada em ademanes de raínha, ora quebrada em mimalhices de
criança. Vestia um singelo traje _tailleur_, de miudito xadrez preto e
branco, gorro de fazenda e côr igual, um tenuíssimo véu de _foulard_,
preso em duas largas pontas sob a nuca, e luva e sapato branco. Trazia
ao cólo um delicioso cãosito, de focinho afusado, os olhos como contas
de azeviche e o friorento corpinho por completo forrado no esplêndido
_manchon_ natural do seu longo pêlo, côr de rato. Seguia-a uma criadita
delgada e joven, vestida de negro, com uma menina dos seus 10 anos,
pálida e frágil, pela mão.

Logo Célia e Jorge correram direitos a saùdá-la, e depois das primeiras
acolhedoras demonstrações fizeram-lhe a apresentação amável do Silveira
que Maria Mercedes acolheu com distraída indiferença. Poucos minutos
andados, instalavam-se todos no auto; no logar de honra, é de saber, a
formosa viúva, com um banquinho puxado aos pés e logo uma fôfa almofada
trazida para sob a espalda; depois, ao lado, a pequena Dorita e Célia; e
na frente, de costas ao _chauffeur_, a _niñera_ mail'o Silveira, que
gentilmente Jorge obrigou a tomar assento junto e _vis-à-vis_ da sua tam
encomiada prima. Breve, e uma vez o auto em marcha, o diálogo abriu-se,
animado e impressivo, todo neste cortado e ávido travamento de
monossílabos em girândolas, curtas frases sibilantes, simultâneas e
bruscas exclamações, atoadas perguntas sem resposta e relâmpagos de
inquirições em suspenso, que caracterizam, de ordinário o primeiro
contacto afectivo de pessoas íntimas, há muito separadas pelo tempo ou a
distância. Maria Mercedes, naturalmente, dirigia-se de preferência a
Célia e quando muito, uma que outra vez, ao primo, não se dando conta
absolutamente para nada da presença do Silveira, que frente a ela seguia
apagado e mudo, numa vaga humilhação, o rosto invariávelmente paresiado
numa lôrpa expressão de convencional agrado.

Vieram primeiro solícitas indagações sôbre a preciosa saúde dos tios
Saavedras; e como corria o tempo na _estancia_, a peonada, as flores, a
vizinhança, as colheitas. Depois, a maligna coscovilhice habitual sôbre
o mundo imenso das amigas. Uma viperina reportagem verbal que fazia o
regalo do feitio burlão de Jorge e com que os mesmos piedosos escrúpulos
da irmã gostosamente se acomodavam.--Trazia-lhes um grande _bouquet_ de
novidades, um punhado de revelações inéditas, imprevistas... Incrível!
no breve espaço de dois meses, que de coisas entre trágicas e patuscas,
se haviam passado. E que imaginassem... A Pilarita Flores, sempre era
certo! rompera o casamento... um compromisso tam antigo... e tam a
fundo. E depois do que se dizia! Agora o noivo, furioso, ia-se fartando
de dar à língua e o mal não era senão p'ra ela. O puro do escândalo!
Porêm outra melhor: aquela sonsa da Marta Wilkinson, a casada,
sabiam?... sempre afinal deixou o marido. Tendo um filhito de seis anos!
onde é que se viu isto? E tudo p'ra juntar-se com êsse _farabute_ de
Sottardo... ordinário, feio, pobre, um réles aventureiro. Fugiram p'r'a
Europa, crê-se; enquanto o marido, deixando o filhito à avó, se foi p'ra
Córdoba esconder a vergonha. Porêm tam descarados os dois, que, antes de
abalarem, ainda estiveram no _Hotel Majestic_ uns quinze dias, sem
recato, sem mêdo, sem pudor nenhum, fazendo público alarde da sua
revoltante mancebia... Mas pelos modos aquela gentinha Wilkinson era uma
bem triste família! A outra irmã de Marta, a mais nova, a morfinómana,
lá estava no sanatório de Rivadávia... Apenas dezanove anos e doida de
todo!

--Uma família _cursi!_--sentenceou Jorge com enfado.

E a prima, seguindo árdidamente o seu implacável relatório,
acrescentava,--que sempre se confirmavam as escapadas furtivas da mulher
do Santelmo Martinez à _garçonnière_ do Avellanoso. E que, pelos modos,
no _hogar_ sem mácula dos Perez se descobrira _recién_ um par de
ilegitimos _polluelos_...

--Perdida gente!--lastimou Célia num compungido suspiro, baixando com
beata compunção os olhos.

--Agora quanto a pequenas notas de ridículo,--continuou a viúva, mudando
de tom, num ar mais ligeiro e mais facêto,--tenho tambêm uma cabazada
cheia. Ai! se fôsse a desfiá-las tôdas... Basta só que vos diga: essa
impostora da Anita Castex há mais dum ano que não paga à modista, porêm
manda p'ra lá as amigas tôdas; as tolêtas das Molinas, apertadas pelo
côbro de contas que lhes vieram da Europa, tiveram que vender o melhor
das jóias e da mobília; o mais assim.--E ao cabo dêste regalado _raid_
pelos meandrosos domínios da má-lingua, a aparatosa viúva balbuciou com
ar enjoado:--Mas, em suma, sejamos tolerantes, deixar lá...--E logo, num
imperceptível bocejo, com uma adorável depressão de fadiga:--Mas, ó meu
Deus! esta horrível caminhada não tem fim. Sinto-me fatigada, sabem?

--Como fatigada, _ché?_--levemente trocista acudiu Jorge,--por uma
viagem tam curta? Uma criatura que anda sempre dum lado p'r'o outro...

--Tambêm é verdade, sim, viajo muito.--E com um requebrado
suspiro:--Ainda é a melhor maneira de iludir a triste vacuìdade da minha
vida.

Durante tôda essa deliciada sarabanda de sociais mexericos, continuára a
marcar zero para a assistência aquele anonimato humilhante do Silveira.
Debalde êle a quando a quando demandava, a que lhe désse importância e
valor, o generoso amparo da inocência, nalgum implorativo olhar
despedido com um sorriso a Dorita, a qual, tôda ouvidos às perversas
revelações da viúva, invariávelmente lhe voltava o rosto enfastiado.
Lembrou-se o pobre então, como último recurso, da bondade infinita dos
cães... e tratava, com timidez, de interessar em seu favor a enternecida
atenção do lindo animalito ali enovelado diante dêle, mirando-o com
familiaridade, pedindo-lhe a patita, esboçando no ar com a mão em concha
vagos gestos de carinho.

Bateu certo, desta vez, porque Maria Mercedes, sensível a êsse timorato
ensaio de irracional galanteio, já condescendia em envolver a figura
suplicante do Silveira no amavioso círculo da sua atenção e dos seus
conceitos. E coquetona e lânguida, um pouco teatral, continuava:

--Pareço alegre, muita vez... é certo. Das minhas _abrumadoras_ crises
de desânimo desperto súbito, e esqueço-me de mim mesma a inventar
movimento, a organizar festas, diversões, prazeres... Oh, mas tudo puro
engano! Não são coisas que brotem cá de dentro. É a maneira mundana de
me aturdir... de iludir êste afrontoso tédio do meu viver, entre
sentimentos que me enganam e pensamentos que me aborrecem.

E agora, num atencioso e directo relancear de olhos ao Silveira, com
familiar singeleza:

--Mas eu sou uma criatura feita de contradições... não faça caso do que
eu digo.

Porêm o extático Silveira nem a ouvira, todo preso e incendido na
devoradora contemplação daqueles grandes e divinos olhos, que êle agora
pela primeira vez surpreendeu em tôda a plenitude dos seus belos traços
fulgurantes... uns olhos clássicamente distanciados, negros, profundos,
e que eram como um ardente céu estival: com relâmpagos e sem nuvens.

Ao tempo, do assento da frente, Jorge debruçava-se, torcendo a espalda,
para a prima, e ligeiramente irónico, apontando o cãosito:

--E que nova raridade é essa agora?

--Ah, e bem raridade, _ya lo creo_!--logo a viúva contestou, fazendo de
agastada.--_No lo diga Usted por broma._.--E com intimativa:--É um
autêntico _Pomeranian_. Talvez não haja mais quatro em todo o
mundo!--Passou a mão caridosamente pelo felpudo cêrro do animalito.--Meu
querido _Riddle, verdad_?...--Depois outra vez para Jorge,
naturalmente:--Comprei-o agora, há meses, na minha passagem por Boston.

--Muito caro?

--Cinco mil _dollars_.

--Que coragem!

--Ah, mas fui prática...--apressou-se em aclarar com ladina expressão
Maria Mercedes.--A emprêsa que mo vendeu, segurou-me ao mesmo tempo a
vida dêle em igual quantia, por dez anos.

E já ela novamente, com amável atenção para o Silveira:

--E, diga-me, meu caro, há quanto tempo se encontra na Argentina?

--Há apenas dias.

--E que impressões tem?

--Oh, as melhores do mundo, minha senhora! É um país encantador.

--Cale-se! cale-se!

--E porque hei-de eu calar-me, se digo a verdade?... se eu não vejo por
tôda a parte senão a mais deslumbradora e magnífica expansão de cultura,
de actividade, de progresso, de abundância e de beleza?

--Mau! mau!--tornou graciosa a viúva a atalhar, erguendo o braço com
enfado, fransindo o nariz com tédio.--Aí temos nós que escutar uma vez
mais êsse hipócrita e estafado _cliché_ de quantos génios de exportação,
eméritos vividores e fracassados sociólogos, nos visitam.

--São espécies zoológicas a que eu me orgulho de não pertencer.

--Faço-lhe essa justiça. Mas por isso mesmo lhe peço que, pelo amor de
Deus! não me continue nesse tom incondicionalmente bajulador, que, à
força de falso e gasto, em vez de nos desvanecer, nos irrita e nos
desgosta... Busque antes ver as coisas como elas são realmente. Fale-nos
da pobreza da nossa paìsagem, da monotonia e solidão do nosso campo, do
nosso feitio desbaratador e indolente, da nossa vaidade insolente de
_parvenus_, da nossa penúria de inventiva, a nossa fatuìdade, a nossa
ignorância... a mal alinhavada _pastiche_ da civilização europeia a que
em última análise se reduz tudo isto.

--Como? como?...--acudiu Jorge, voltando-se brusco, num vivo rebate de
orgulho, visivelmente contrariado.

--Parece-me severo em demasia o quadro,--urbanamente entendeu o Silveira
dever contestar.--O que aí vai, minha senhora!

--Ó prima! isso tambêm agora...--ao mesmo tempo protestava Célia com
indignação.

Porêm de sua banda a viúva, serêna, imperturbável, e seguindo na
solícita catequese do Silveira:

--É que eu desejo que venhamos a ser dois bons amigos, e p'ra isso,
condição imprescindível, terá que ser sempre franco comigo, há-de ter
opiniões suas, pintar-me os homens e as coisas sinceramente. Terá que
ser, sobretudo, original... Não lhe quero ouvir baboseiras.

Semierguido e dobrado numa vénia galante, exultante de prazer, com o seu
mais fino sorriso o Silveira aventurou:

--Original?... Numa coisa seguramente eu não poderei sê-lo, minha
senhora...

--E então?

--Na incondicional admiração por si.

Visívelmente lisonjeada, Maria Mercedes cambiou com a prima um
expressivo olhar de agrado; enquanto, num risinho mordaz, o irmão:

--Sempre galantes êstes portugueses.

--Aprenda, aprenda...

--Ora! vélhos modismos piégas de há cem anos...--logo o moço argentino
ripostou com desdêm; e com desenvolta petulância rematou:--E qual a
mulher que os merece?

Nesta sôlta e frívola chalra foram rápido consumindo o tempo; a termos
que já em breve, como de improviso, vinha cortar-se-lhes na frente,
próxima e amiga na infinita rasoira semsabor do horizonte, a torcida e
rugosa carcassa do vélho _ombu_ da _estancia_. Pronto o auto parava
junto ao gasto portão da entrada, onde, comovidamente acudindo, os dois
vélhos Saavedras fizeram à sua hóspeda dilectíssima a mais efusiva e
carinhosa acolhida. Não faltaram cá fóra os curiosos; bem como dentro,
ao longo do jardim e seguindo pelo vestíbulo e pelo _patio_, o grosso
dos serventuários e peões da casa, alviçareiros e contentes,
cerimoniosamente alinhados. E por todo êsse alvoroçado cortejo Maria
Mercedes passou num arrastamento de importância, meiga e solene,
devagar, entornando graças, dadivando sorrisos, naquele seu ar a um
tempo menineiro e senhoril, com aquele precioso dom de atracção a
distância de que ela tinha o segrêdo.

Todo o almôço foi um encanto; e no seguimento festivo da tarde, depois,
aí vinha uma incessante, interminável romaria de bons _paisanos_ dos
arredores, por onde correra boato da chegada da sua «grande e formosa
amiga», e que enternecidamente lhe traziam a homenagem das suas
saùdações humildes, concretamente afirmadas por adoráveis oferendas de
_pan dulce_, ovos, mel, _biscochuelos_, cabritos, leitões, aves e
flores. Sôbre o comer, à noite, naquele repousado salão da frente,
recobrou desusada animação a familiar tertúlia. Nem D. Toríbio pensou no
derivativo soporífero do xadrez, nem tam pouco ao filho acudiu o
emancipador recurso de alguma das insalubres _juergas_ nocturnas. Todos
se sentiam bem, deliciadamente presos na atraente e dominadora presença
de Maria Mercedes, a qual para o jantar fizera grande _toilette_,--com a
farta e ondeada maranha do seu cabelo fulvo contornando-lhe a primor as
têmporas, e contra a nuca aplicada e erguida em roscas petulantes; e
aberto no mais indiscreto decote o ligeiro corpinho, de musselina negra
com vidrilhos, que deixava livre o colo, os braços e as espáduas, sôbre
cuja redonda nudez uma levíssima _écharpe_ sôlta, e negra tambêm, movida
ao artificioso capricho das mãos da viúva, realizava sua tentadora
gimnástica de pecado... ao embevecido Silveira permitindo surpreender,
nos deslumbradores claros dessa mímica perversa, a fluida solidez dos
músculos escorregando, como numa baínha de sêda, sob a quente alvura da
pele, suavemente... E quando não era a carícia ateniense do gesto, era a
graça mórbida das atitudes, era a iluminada vivacidade da expressão, o
enigmático ninho de promessas da bôca suculenta, a espiritual malícia
dos olhos grandes e profundos, despedindo misteriosas flechas de fogo,
que, quando as pálpebras baixavam, parecia que se partiam na aresta
sensual das longas pestanas negras.

A pouco de entrarem no salão, a linda e aparatosa viúva, sentindo-se o
alvo comovente das atenções, com marcada complacência arrastou uns
poucos passos lânguidos, teatralmente, poisando de importância; e logo
de arrojar-se com indolência sôbre um _fauteuil_, e num ar mimalheiro e
infantil, a cabeça froixa, os olhos vagos, achegando ao flanco as
almofadas:

--Ai, mas que bem que eu me sinto aqui! entre pessoas sinceramente
amigas, sem fingimentos, sem peias... e sem cuidados. Como eu vou poder
descansar!

--Ah! ah! Mas descansar de quê?...--cascalhou Jorge familiarmente.

--Com a vida que levas...--ainda a irmã dêste comentou, sorrindo.

--O quê? vocês pensam que eu na cidade não faço nada?

--Claro! Uma perfeita _haragana_.

--Pois enganam-se! Às 7 da manhã já eu estou a pé.--E ante o sorriso
incrédulo da assistência confirmou com ardor:--Palavra de honra! Apesar
de ter confiança na _ama de llaves_, passo logo revista à casa tôda.
Depois, às 8, vem a massagista; ás 9 a cabeleireira e a manicura; às 10
tenho o _desayuno_ e cuido um pouco da _nena_. A seguir, até ao almôço,
encosto-me um pouco, isso sim... É uma grande regra de higiene: conserva
o bom parecer e evita a magreza. Mas durante o resto do dia,
naturalmente, depois, é o meu procurador, quantidade de coisas da
beneficência e uma séca de voltas, compras e visitas. De sorte que assim
à noite, quando acabo de comer, sinto-me fatigada... e aí pelas 10 ou 10
e meia, quáse invariávelmente, deito-me. Já vêem...

--Com efeito!--encareceu D. Teresa com agrado.

--Deito-me logo, é certo. Embora às vezes tenha convidados, que todavia
ficam e me desculpam.--E na espontânea demanda do infalível testemunho
da sua inocente afilhadita, que acabava de entrar, Maria Mercedes
rematou:--Dorita, não é verdade?

A precoce e débil criança dobrou numa ponderosa afirmação a cabeça; e a
seguir, abandonando a boneca sôbre uma cadeira, avançou vagarosamente a
acercar-se da viúva, a cujo lado, tomando-lhe com ternura a mão, se
enovelou, já com um ar composto e grave de pessoa adulta,--o seu rosto
sério e os pequeninos olhos claros, muito abertos, revelando tôda a
acuìdade mordente da atenção para apreender e quanto possível assimilar,
no enunciado e na intenção, o desenho sinuoso do diálogo.

Entretanto, com burlona ironia tornou Jorge:

--Pois aqui, querida primita, já sabes... há tambêm que trabalhar.

--Pronto!--rompeu, saltando de ímpeto, a viúva.--Teem programa?

--Esperávamos por ti,--aclarou D. Teresa.

--O teu _veredictum_ é essencial,--completou pai Saavedra com ternura.

--Bem, pois vamos então a ver... Já pensaram em algo?

De roda abriu-se um claro de silêncio hesitante, e houve um tiroteio
mudo de olhares de incerteza. Apenas Célia ousou então docemente
insinuar:

--Há aí um assunto, de magna importância, quanto a mim... Porêm todos me
_hacen burla_, _me pelean_, opõem-se...

E aquela esquiva e insípida figura desfiou com vivacidade crescente,
perante a atenção tolerante da prima, tôda essa magoada história do seu
desgôsto pelo industrialismo, a irreligiosidade, a chateza, a afrontosa
materialidade pagã que pesava sôbre a _estancia_; e como era vivo, alado
e ardente o seu desejo de ver por fim êste adorado ninho da família
posto sob a invocação duma santa padroeira qualquer, ao místico abrigo
tutelar da divindade. E ainda, por último, esboçou e enalteceu, como o
seu único apoio, a poética idéa do Silveira.

--Ah, mas eu acho óptimo!--acudiu com palpitante animação Maria
Mercedes, avançando o busto com graça e juntando e batendo as mãos,
crêspos de decisão os lábios, os grandes olhos faiscando.--É certo,
sim... Abundo no pensamento do sr. Silveira. Excelente, não há dúvida...
Tens razão, Célia! Tens-me a teu lado.

Num perturbador lume de vaidade, logo o Silveira, dobrado em afável
reverência:

--Sinto-me deveras ufano por essa sua espontânea conformidade de pensar,
minha senhora.

--Ah, mas não vá desvanecer-se demasiado, meu caro amigo! A minha
conformidade não é completa. Um ponto há em que eu peço licença para
divergir...

--E então?

--É nessa coisa gasta e trivial de azulejos pelas paredes e retábulos
pelas esquinas,--no seu expressivo fransir do nariz respondeu morosa a
viúva:--Nada, nada... temos muito melhor!--E ante a suspensa atenção do
pequeno grupo, sacudindo iluminada a cabeça, batendo com fôrça no
joelho:--A santa imagem propiciatória dêste logar hemos de a colocar lá
fóra, no jardim, debaixo do vélho _ombú_.

Um eloqùente alarme de protesto, um calafrio de indignado horror,
acolheu a herética audácia da proposta.

--Ó _Miquêtas_, por favor!--censurou, a primeira, D. Tereza.

--Uma árvore condenada, ôca, podrida, inútil...--comentou o filho com
asco.--Um símbolo de mau agoiro.

--Por isso mesmo!

--A que extremos o prurido da originalidade arrasta por vezes esta minha
bôa sobrinha!--com o seu ar mais bonacheirão interveio, sorridente, D.
Toríbio, e conciliadoramente:--_Este_... Pois tu não conheces o vélho
adágio crioulo: _rancho con ombú acaba en tapera?_... Sabes muito bem
que a _gauchada_ odeia, por tradição e por instinto, quantos raros
exemplares por'í ainda acaso existem dêste torturado e solitário
representante da nossa grande flora secular. Êles teem o _ombú_ por uma
árvore presága, abominável, a cuja sombra sinistra parecem germinar e
medrar a ruína, a desgraça e tantas vezes o crime.

--Uma crendice estúpida.

--Que em todo o caso existe. Quantas dessas vélhas árvores o nosso
_paisano_ pode impunemente alcançar, sabes que as abate logo a machado.

--E fazem muito bem!--implicativo tornou Jorge.--Se é lenha que nem para
o fogo lhes serve!

--Essa antiga sentinela do nosso jardim deve seguramente a vida ao seu
resguardo,--continuou afávelmente D. Toríbio; e com suasiva mansidão
para a sobrinha:--De sorte que... _este_... já vês, se nós vamos agora a
pretender nobilitar, a deificar em certo modo, pela tua peregrina idéa,
êsse precário foragido do deserto, muito possível é que então a bruta
peonada dos arredores, conseqùente no seu ódio medular, seja capaz de,
por extensão, tomar tambêm em aversão toda a _estancia_. Vê lá...

--Certo, certo...--cabecearam Célia e a mãe, num passivo assentimento.

Porêm, serena e insensível, sem se desconcertar, no mesmo convicto ardor
teimou a viúva:

--Pelo contrário!... Essa pobre gente pensa mal? é vítima inconsciente
de íniquos preconceitos e crendices absurdas? Pois o nosso dever é
ensiná-los, educá-los, esclarecê-los... varrer-lhes o intelecto e
aclarar-lhes a consciência.

--Estás bem aviada!

--Claro que sim! Temos a santa obrigação de abrir-lhes os olhos, de
fazer-lhes bem sentir tôda a cega extensão da sua ignorância e o bárbaro
desvio do seu êrro.

--Querem lá saber!

--Em vez de ser um tema de abominação, o vélho _ombú_ argentino merece
bem ser antes um objecto de carinho. Há que reabilitar êsse veterano
simpático do nosso campo, essa relíquia veneranda do passado, testemunha
muda e inocente de tanto sucesso lendário...

--Eu logo vi...--atalhou Jorge com o seu incorrigível ar trocista.--Está
sabido. Todos os _ombús_ são lendáríos.

--Quando não são históricos!--corrigiu pronto, com firme severidade, a
viúva. E posta súbito em pé, sempre com a mesma incisiva veemência
levando de vencida a já froixa resistência do auditório:--Ora imaginem!
Improvisa-se uma peanha, em cima um nicho a carácter, instala-se dentro
o santo ou a santa... e aí temos nós o pretexto para uma interessante
festa nocturna. Verão o efeito. Cai aí tudo... vai ser lindo!

E como de roda todos, vagamente sorrindo, se fechassem num silêncio que
era uma aquiescência, ela comandou com alegria:

--Bem! bem! está combinado. Daqui não há que sair. Amanhã veremos os
detalhes...--E rematou com decisão, segura já do seu triunfo:--Meus
caros amigos, não há tempo a perder! porque a minha demora aqui vai ser
curta.

Uma aluvião de subitâneos protestos choveu da assistência, entre os
quais era de notar a calorosa insistência do Silveira.--Que não! não
podia ser! tinha por fôrça que demorar-se. Adorada por todos como ela
era ali assim! O contrário seria uma crueldade, seria um crime. Nada!
não a deixariam partir...--Mas a despeito de todo êste adulador incenso,
a mimada viúva, com bem dissimulado desgôsto, aventurou--que, emfim, era
forçoso... A estação ia adiantada, e ela tinha ainda forçosamente que
visitar Córdoba, Montevideo, Bahia-Blanca, Mar del Plata.--E
bruscamente, passando a recostar-se numa convidativa e ampla _dormeuse_,
frente a uma janela aberta, e agitando a mão com angústia, queixou-se de
que sentia imenso calor e tinha sêde... queria beber alguma coisa.

Logo de roda o pequeno círculo em solícito movimento. Dorita partiu a
correr, a buscar um leque; Jorge improvisou uma ventarola de papel; pai
Saavedra foi estabelecer corrente de ar, abrindo a porta, enquanto o
Silveira abria tambêm mais a janela; e D. Teresa e a filha, açodadas e
inquietas, batiam, acamavam o estôfo da _dormeuse_, ageitavam a
cabeceira, arredavam as almofadas. Depois, mal o criado de mesa entrava,
trazendo uma bandeja com refrescos, e já era a imediata presença da
_niñera_ que a insatisfeita viúva imperiosamente reclamava, para que lhe
trouxesse o seu _little Riddle_, que ela sôfregamente aninhou no colo,
deliciada a coçar-lhe a nuca e a dar-lhe guloseimas.

Ainda a conversa se prolongou por um tempo mais, bordada sôbre coisas
vazias de interêsse, a termos que por fim Maria Mercedes, erguendo-se e
aconchegando a _écharpe_, pediu licença para retirar-se, com Dorita,
dizendo agora que sentia frio. Todos obsequiosamente a acompanharam, ao
longo do _patio_, té à porta da escada para o andar superior. E aí, na
carinhosa cauda das despedidas, ela disse afectuosamente ao Silveira,
estendendo o braço:

--Então, bons amigos, não é assim?

--E aliados!--confirmou êle, radiante, beijando aquela mão divina.

E, tôda a noite, êste autêntico produto da singela e bronca região
duriense quáse não dormiu. A impressão vincada por Maria Mercedes no seu
temperamento cálido, na sua apoucada inteligência, no seu impetuoso e
límpido carácter, marcára fundo bastante para espancar-lhe o sono e
atear numa viva espertina a arrastada sucessão das horas. Não o
fascinára sómente o deslumbrador cortejo dos encantos físicos da
recêm-vinda, mas tambêm, e de preferência, a linha sinuosa e complexa do
seu perfil moral. Organismo rico de sangue e pobre de nervos, afeito às
aventuras fáceis, esperto e fanfarrão batedor na caça dos simples amores
campesinos, o impressivo desenho desta figura requintada e esfíngica
desnorteava-o. Até àquele momento êle não lidára, mais ou menos, senão
com mulheres dum córte definido, compreensíveis, sinceras, claras como o
azul matutino do céu e a água cantante das ribeiras. Ainda agora aqueles
seus dois últimos conhecimentos, durante a viagem,--a esquiva Irene
dentro do seu espiritual alheamento, a provocante _Mrs._ Edith embiocada
na sua sábia impostura,--mostraram contudo logo o que eram, foram sempre
lisas, coerentes, lógicas consigo mesmas. Porêm Maria Mercedes, não! Era
uma criatura embricada, enigmática, temível... estava a ver. Cheia de
mimalhices, caprichos, alternâncias, brusquerias, entusiasmos, tédios.
Um diabólico e indecifrável novelo, um problema estonteante. Queria
investir com ela e tinha-lhe mêdo! Era um abismo de seduções e um
torvelinho de mistério, que ora lhe inflamava o instinto ora lhe
acobardava o desejo. E--coisa interessante, rara tambêm e para êle
inexplicável,--a cada momento, a cortar suavemente a angustiosa dúvida
do seu querer, nos mais agudos instantes desta sua obstinada devassa
interior e pelo mais adorável dos contrastes, vinha e debuxava-se-lhe na
vaga penumbra do aposento, sobrepondo-se à turbadora imagem da viúva, em
claros benéficos de repouso, a figura mansa e rústica da sua confiada
amiguita da antevéspera, Luísa, a linda morenita, na mesma apostura
silenciosa e humilde, na mesma inércia contemplativa, na mesma frescura
moral de clara fonte, iluminada de ternura ingénua... e na amaviosa
concha do seu olhar, cheio de fogo latente, envolvendo-o, calmando-o,
dominando-o... mercê dêsse irresistível poder das mulheres suaves e
tristes, quando rogam mansamente.


Na rápida sucessão dos dias, depois, não perdia o nosso atolambado galã
o mínimo ensejo em que acercar-se pudésse da viúva, a procurar tornar-se
insinuante, familiar, prendê-la ao seu convívio. E buscava ardilosamente
captar-lhe a atenção, na impossibilidade manifesta de lhe falar ao
desejo. Ao mesmo tempo arriscava tôda a sorte de tímidas, de insidiosas
inquirições sôbre o problema mordente do seu passado.--Uma mulher assim
devia ter crónica!--A cada momento esboçava interrogações e bordava
conjecturas sôbre os ignorados antecedentes, sem dúvida invulgares,
daquela vida. Preocupava-o árdidamente o mistério desta estrangeira
nascida tam longe dêle, e cuja existência,--estava-se a ver,--teria
porventura sido demasiado vaga e errante para que êle jámais pudésse bem
conhecê-la.

Algumas vezes D. Tereza veladamente lhe insinuára,--que a sua pobre
_Miquêtas_ não fôra nada feliz com o casamento. O deslumbrado Silveira
não queria crêr... Jorge, o seu confidente natural, discretamente e de
pausa lhe ia tambêm relatando um que outro pormenor, avançando um
detalhe, sublinhando uma anecdota; e, na crédula cegueira da sua
admiração lamecha, cada nova revelação sempre o Silveira aproveitava
para desatar-se em hiperbólicas fantasias, cuja asa de oiro logo o amigo
prosaicamente lhe cortava, por um episódio trivial ou um comentário
trocista. Foi assim que, uma tarde, sentados os dois naquele aconchegado
rincão do _patio_, junto ao comedor,--e porque, incorrigível, o Silveira
voltasse ao seu panegírico optimista sôbre as sublimadas perfeições
dessa criatura de deslumbramento e de sonho, que merecia mais que um
trono... um altar,--ainda uma vez com inflexível frialdade tornou a
frisar-lhe o amigo:--que todavia ela não era, nem fôra nunca, feliz. E
que poderia bem tê-lo sido... com as paixões loucas que inspirou, com os
belos pretendentes que teve! Pelo desespêro uns levados ao suicídio,
outros à loucura, outros à ruina. Ele já sabia. E que afinal...

--Afinal...--recalcou o Silveira com ardor,--sempre teria sabido
escolher um marido digno dela. Se é que semelhante prodígio era
possível!

--Que prodígio! Nada disso! Pelo contrário... Muito mais vélho...
_camorrista_, devasso e jogador. Comparado com ela, um perfeito
estafermo!

--Bem! mas ao menos morreu... Está livre dêle!

--Morreu... E por que forma?--balbuciou Jorge, fazendo uns olhos de
piedade, com uma cáustica expressão de enfado. E por fim, ante a
suspensa e mortificada atenção do amigo:--Em casa duma amante... duma
apoplexia.

O Silveira fez-se pálido, corrido por um frio interior de nôjo e de
revolta. Porêm Maria Mercedes, que passava na ocasião e aprendera esta
pequena aresta de diálogo, acercou-se, mansa e familiar, dos dois
amigos, e com uma adorável resignação, quáse infantilmente:

--Ah, mas por'mor de Deus! Meu caro amigo, não me lastime. Eu
relativamente estimei... Poupou-me o desgôsto de o ver morrer.--E logo
com desenfastiada naturalidade, derivando:--Mas dispensem-me, sim?...
Vou escrever p'r'a capital, quero ainda aproveitar o correio de hoje.
Vou mandar uma carta cheia de minuciosas instruções a êsse santeiro de
_calle_ Suipacha, sabem?... É a encomendar-lhe uma grande imagem da
nossa futura padroeira, a Senhora da Conceição. Escolhi bem, não lhes
parece?... Ela é o santo símbolo da fecundidade e da pureza, e portanto
o mais condizente escudo e o mais fiel espelho desta mansão exemplar da
abundância e da virtude.

E, feita uma ligeira vénia, ei-la que retoma a andar, naquele seu
estudado ademan de requebrada e ondeante majestade, a fugidía asa dum
sorriso a encrespar-lhe os grandes olhos côr da noite e a adejar nos
lábios nacarinos.

--Divinal mulher!--murmurou, posto em cómico êxtase, o Silveira.--Como
diabo foi ela tomar um animal dêsses p'ra marido!?

--Sei lá!--redarguiu Jorge, num risinho scéptico.--Coisas de mulheres...
Ela diz que foi por amor ao paradoxo e umas tantas _pavadas_ por êste
teor. Mas não! quanto a mim, foi pura questão de vaidade. _Se le ha
puesto entre cojas_ dominar, moralizar, regenerar êsse salafrário. _Pero
se ha embromado_.

--Com o que nada perdeu, no fim de contas.

--Ah, não seguramente! Ao contrário, com mais êsse pequeno escândalo o
seu nome não fez senão ganhar em fascinação, em poder, em comovido
interêsse e mundanal prestígio.

Abroquelada na sua individualidade melindrosa e rebelde, Maria Mercedes
nem a todos os preceitos se amoldava daquele salutar e primitivo viver
da _estancia_. Não lhe importavam passeios, temia as caminhadas,
envolvia no mesmo abandôno de fastidiento desdêm a barulhenta bisarma
das instalações industriais e o manadio disperso da riqueza pecuária.
Substancialmente, a rude movimentação, o giro áspero e forte da vida do
campo, repugnavam-lhe. No seu temperamento subtilizado e mórbido essas
cruas batidas de ar e de luz feriam reacções bruscas, violentas, quáse
dolorosas. Despertava, erguia-se cedo; porêm de ordinário, antes do
meio-dia, ninguêm conseguia vê-la fóra do quarto, sucedendo-lhe repetir
amiúde «que de manhã não era mulher p'ra nada». Antes daquela hora
apenas condescendia em sair dêsse inviolável reduto, quando muito, a
_niñera_, a arejar o _Riddle_ e a passear Dorita. Maria Mercedes apenas
uma vez acedeu a dar um passeio matinal, a cavalo, na companhia de Jorge
e do Silveira. Mas baldadamente êste depois, em várias dulcerosas
investidas, tentou persuadi-la a que lhe fizesse a fineza de repetir, e
desta vez com êle só, o sacrifício... todo na saborida antevisão dum
aventuroso idílio. Nada alcançou. Fôra uma façanha sem exemplo.

Pelas tardes, sim, era a bela viúva a primeira na actividade, no
bom-humor, na alegria. Fazia largos e piedosos percursos, então de
ordinário companheira inseparável e gostosa de D. Tereza no seu
esmolátorio desporte pelas redondezas. E em seguida, às noites, no
salão,--aonde sempre acudia uma ou outra família vizinha,--era ainda ela
o prestigioso centro das atenções, o fulcro espiritual do diálogo, neste
môrno e sossegado ambiente, sentindo-se na posse plena dos seus nervos e
em todo o facetado fulgor do seu espírito.

Ao cabo duma semana, por uma nublada manhã, pesada e ardente, chegou
Belisário Ruiz. Exceptuando por parte de Célia, teve sua consabida
recepção de agrado. Maria Mercedes acolheu-o com afabilidade e
festejava-o, judiava-o, apurava-o muito, mercê desta liberdade inocente
que a intimidade nos traz e um largo conhecimento. De sua banda porêm o
Silveira entristeceu e alarmou-se, por uma apreensiva retracção do
instinto.--Ganharam então em colorido e interêsse as familiares
tertúlias da noite, agora de ordinário bordadas sôbre assuntos mundanos,
em que a desabusada _verve do recêm-vindo_, no seu arrastado ar _blasé_,
intercalava amiúde a nota picaresca ou o comentário equívoco. Era sem
fim o rol que, a propósito, este pândego contumaz se comprazia em
desfiar, de casos escuros, anecdotas picantes e grotescas aventuras,
fruto da própria experiência umas, outras colhidas naquele seu fácil e
sôlto passo pela vida fóra. Então não raro aconteceu, quando o diálogo
assumia um cariz algo _verde_, a meticulosa Célia erguer-se e sair,
dissimuladamente. E uma noite pai Saavedra, bonachão alegre, no seu
adorável espanto infantil, exclamou para Belisário, batendo galhofeiro
os braços, os pequeninos olhos verdes húmidos de riso:

--Mas que coisas com que êste homem nos vem! _Chacotón_! Onde demónio
vai você saber tudo isso?

--Aí teem!--acudiu com intimativa a viúva, súbito erguida da sua
apostura indolente.--É o que se ganha com as viagens. Êste senhor tem
viajado muito, como eu. Faz bem... O que a gente vê, ouve, sente,
adivinha, ausculta e aprende!... São um grande e divertido
ensinamento.--E num suspiro lânguido, recumbida e mole novamente:--Quem
me déra ir já por'í fóra outra vez!

O Silveira esboçou um convicto e mudo assentimento; e carinhosamente D.
Toríbio:

--Sempre viajar! sempre viajar! Nunca te fartas...

--Que querem? sou assim... É da baralhada essência do meu sangue.
Imaginem; minha mãe era uruguaiana, minha avó italiana, meu avô alemão,
meu bisavô norte-americano... Com uma ascendência assim, que outra coisa
poderia eu ser senão uma incorrigível vagabunda?

--Deves ter amor à tua terra.

--A minha terra?... Sei lá qual é!

--Não digas isso!--acudiu a gorda e maciça D. Teresa, estremecendo e
erguendo com horror as grossas palmoiras à tinta industrial do cabelo.

Porêm a viúva, quente, imperturbável:

--Ah, isso é que eu digo, minha querida tia! perdoa-me... Porque não há
razão nenhuma, porque eu não sinto o menor movimento de alma, nem
conheço qualquer forte fundamento exterior que me leve a prender-me ao
torrão onde acidentalmente nasci.

--Deves querer mais do que tudo à tua pátria--severo reprimendou Jorge.

--Lá vem, lá vem o consagrado chavão! a linda e convencional
mentira!--pronto a viúva contestou num alto desdêm burlão; e a seguir,
fransindo o nariz, doutoralmente:--Isso de pátria é uma antiga invenção
dos ambiciosos e dos déspotas, para por meio dela escravizarem ainda
mais a récua desprezível dos humildes; para fazê-los pelo coração
tributários dos seus domínios, e cegos no deslumbramento dessa patranha
sublime, jungi-los e arrastá-los então irracionalmente, como máquinas,
no carro devastador das suas conquistas, aos grandes actos de heroísmo
colectivo e anónimo, à abnegação, à intrepidez, ao sacrifício, à morte.
Sempre assim foi... Neste ponto a estratégia dos grandes mandões é
invariável assim como a passiva estupidez dos que lhes obedecem é
infinita.

--Estás-te excedendo, filha!--atalhou com sincera indignação D.
Toríbio.--Nem pareces argentina!

--Não sei o que pareço, nem me importa! O que eu sei, o que eu sinto
muito bem, é que a noção de pátria é uma concepção tacanha e absurda. Os
mais, num blóco unânime, protestavam; e ela, com vivacidade
persuadente:--Pois se a terra, na origem, na essência e no destino, é
tôda igual! Então os senhores não vêem que tudo quanto há de perdurável
e transcendente neste mundo, as grandes invenções, os grandes ideais, os
grandes sentimentos, são de carácter universal? Pois não é certo, que
para que uma obra da literatura ou da arte alcance a consagração eterna,
ela há-de romper o âmbito estreito do regionalismo e alar-se à
objetivação sintética de algum dos grandes movimentos comuns a tôda a
humanidade?

--Diz muito bem, minha senhora!--apoiou com irónica veemência o
pequenino e glabro Belisário.--A pátria de cada um é onde melhor se
encontre e melhor possa governar a vida.--E logo, com um ar ligeiro e
brincão, a desfazer a chocante heresia do conceito:--Eu cá, por
temperamento e por inclinação... seria turco.

A seguir, volveu a informar-se com mais detalhe das diversões que havia
planeadas. Queria, em suma, saber o que a esperta inventiva de tam
preclara gente havia concertado para colmar um pouco o tedioso vácuo da
prosaica vida do campo. Falaram-lhe na projectada festa ao _ombú_; na
benta iniciação da _estancia_: achou plebeu, pueril, ingénuo. Para o dia
seguinte havia uma _doma de potros_, aguardada com impaciência pelo
Silveira; porêm seguramente as senhoras não iriam. Maria Mercedes não se
conformava, não podia suportar esse espectáculo, que ela reputava em
extremo repugnante e bárbaro, bestial. Redondamente opunha-se. Belisário
pediu licença para discordar,--pois, pelo contrário, essa primeira
brusca e sábia investida do homem com o irracional era a mais linda
lição de coragem, de inteligência, de destreza e de fôrça; era um belo
torneio para cujo completo realce, como em Espanha nas toiradas, se
tornava indispensável a presença e o aplauso da mulher, que é a suprema
encarnação da beleza. E a poder de dulcerosas instâncias, de ardilosas
lisonjas e vivas frases sugerentes, o meliante conseguiu o assinalado
triunfo de conquistar a aquiescência difícil da viúva, a qual por fim,
reptada a que declarasse formalmente se estava, ou não, disposta a
acompanhá-los, prometeu que sim!

No dia seguinte, às primeiras horas da tarde, a alegre caravana em
movimento. Houve que fazer uma longa hora de caminho, sob a pantalha de
oiro do sol, delidos na rasa imensidão implacável da planura. Pela
angosta e rudimentar carreteira, ou triturando aquela imensa alfombra
verde, o auto seguia tombeando e oscilando, numa cautelosa marcha de
incerteza, moderadamente, erguendo rolos de poeira ofegante, ladeado
pelas donairosas figuras do Silveira e Jorge, que galopavam à
estribeira. E agora alcançavam uma larga mancha de terreno pastoso e
lamacento, onde, a um lado, se aglomerava uma encantadora mólhada de
eqùídeos, bravos, garbosos, finos, com o ar surprêso e selvagem, a sua
insofrida dispersão contida pelo disciplinário esfôrço de meia dúzia de
_gauchos_ montados, ásperos e duros de roda circulando. Um outro grupo
interessante se notava, de bruta peonada, de chinerio nativo, de
carripanas, cavaleiros, de rotos, mulheres e crianças, todos num
empilhamento do interêsse contornando daquela arena de acaso o piso
brando e revôlto, o vago e amplo recinto. Fóra, na lisa nudez da campina
e a pequena distância, uma bôa fogueira ardia, chispando estabaredas.
Preparava-se nesta improvisada cozinha rústica o clássico e delicioso
acepipe de _asado con cuero_. À míngua de lenha, o fogo era alimentado
por tôda a sorte de detritos orgânicos: destroços de mobília, fôlhas
sêcas, farrapos, palha, ossos. Pelo espiralado intervalo entre duas
línguas de lume apercebia-se uma caveira oblonga, na rubra ardência do
braseiro luzindo a sua álgida alvura, macabramente. E naquele justo
momento um vélho peão surdia, ajoujado ao pêso duma perna de cavalo, já
em parte putrefeita, e que ao ser arrojada ao fogo, dêsse calcinado
monte de impurezas fez erguer uma labareda de fumo gordo, negro e
nauseante.

Na parte reservada do recinto, havia sido batida à pressa uma tôsca
bancada de honra, destinada aos recêm-vindos. Mas dêste primitivo
instrumento de relativa comodidade apenas Belisário e o vélho Saavedra
se utilizaram. As senhoras preferiram manter-se furtadamente a
distância, empalancadas no seu auto. Jorge e o Silveira haviam-se logo
apeado, e acercaram-se ligeiros da manada.--E já agora a um sinal dado,
um galhardo mocetão no mesmo sentido avança, e, despedindo certeiro o
laço, colhe pelo pescoço e arrasta até meio do terreiro um dos pobres
animais, que daí a instantes, enfurecido e trémulo de espanto, sente
tambêm, por meio de novas voltas de laço, irremissivelmente presos em
nós de cordas os quatro membros. Então, um simples esticão dado às
prisões, sacudido e forte, rompe com o precário equilíbrio da vítima,
que tomba em pêso sôbre o sólo, em risco de se lhe deslocarem as
articulações ou partirem os ossos. E aí se precipitam logo sôbre o
assombrado pôtro, que, louco de terror, se debate froixamente, quatro
espertos matulões, a segurá-lo e a enleá-lo mais forte, por meio de
consabidas travas, té que o imobilizam por completo. Outros lhe sucedem
neste anacrónico e despiedado exercício, e que, ajoelhando e abatendo-se
contra o indefeso quadrúpede, encapuzam-lhe a cabeça, passam-lhe o
bridão e aplicam-lhe num momento a sela (_el recado_) cilhada
déstramente. Já não há receio agora de que o abatido animal possa
escapar-se; a complicada rêde de cordagens desembrulha-se, escorrega,
afroixa e deslaça mansamente; e o pôtro pode, emfim, cego e aturdido,
erguer-se, mal conseguindo firmar os pés naquele terreno falso e mole,
adrede escolhido, e com as duas mãos, à cautela, tomadas ainda por uma
última laçada. E quando o peão destinado a montá-lo intervêm, num pulo
salta para a sela, a derradeira prisão desata-se, e êle aí larga a
montada na sua frente a correr e a coucear desapoderadamente, colado e
cingido com ela como um centauro, tendido o busto em flecha, os olhos em
fogo, e incansável e duro o braço fazendo rodopiar o _rebenque_ em
círculos de ameaça. Flanqueiam-no, a enquadrar a corrida, dois outros
cavaleiros brandindo tambêm chicotes. E os três aventuram-se nessa
desenfreada carreira buzinando uma gritaria doida, descompostos em
pragas, urros, vociferações, soltando uivos de bêstas-feras, que põem o
pêlo em pé aos atónitos poldros da manada e que a rôta chusma dos
assistentes acompanha, delirando, num concertante infernal, num alto
côro selvagem. Corridas assim umas centenas de metros, o estupefacto
cavalo estava cansado. Tolhido de assombro e de pavor, apequenava,
submetia-se. E estacava a intervalos, colhido todo numa atitude de
abandôno e doçura que tímidamente exteriorizava a sua veemente
solicitação de, emfim, parar... Trazido então ao ponto de partida e
renovada a brutal carreira, já êle pronta e resignadamente obedece,
abdica da vontade e está rendido à discrição do algoz.

Entretanto o Silveira, que seguira êste bárbaro entremez com empolgador
interêsse, movia-se nervosamente e dava rebarbativas mostras de
impaciência, de desagrado, quáse de indignação, as quais pela estranheza
alarmaram a atenção de Jorge. Aquele, porêm, rasgadamente
explicou-lhe,--que achava excessivo, desnecessário, estúpido! Animais
nobres e inteligentes como aqueles não se tratavam assim. Não podia ver
semelhante coisa!--E enquanto o amigo, com um risinho azêdo, procurava
aplacá-lo, foi o segundo pôtro trazido ao castigo. Este porêm, altaneiro
e vibrátil, saíu mais rebelde: só ao cabo de quatro corridas se deu por
vencido. Veio depois o terceiro, que teve que ser logo retirado da
arena, porque, abatido sôbre o lôdo desastradamente, rompeu um quadril.
O Silveira não teve mais mão em si. Avançou com decisão e reclamou alto
que lhe permitissem domar êle o pôtro a seguir.--Havia uma outra maneira
de fazer aquilo, mais suave, mais racional, mais humana. Iam ver!--De
roda foi um espanto. Pela grossa corda do populacho passou uma oscilação
de pasmo e de surprêsa; havia burdas interrogações em suspenso,
esboçavam-se atitudes de achincalho, de desdêm, de irritante desafio, de
malícia perversa, e a sua bronca expressão abria-se em risinhos
alvarmente incrédulos. Belisário pôs-se de salto em pé. Pai Saavedra
protestava, em repetidos gestos de negação, agitando com veemência os
braços. Da apartada altura do seu reduto, D. Teresa impava ofegante,
Célia e Maria Mercedes taparam o rosto com os leques, aflitivamente.
Apenas Jorge, por um simpatismo viril, apoiou a atrevida solicitação do
amigo.

E foi o bastante.--O quarto paciente veio então, e, em meio da ansiedade
geral, os peões da manobra permaneciam quietos e a distância, esperando
instruções, de olhos fitos no Silveira, o qual lhes ordenou que,
mantendo por enquanto o prisioneiro enlaçado, apenas, mais, lhe
prendessem as mãos. A seguir, êle mesmo se acercou e investiu, entre
duro e afável, com o animal, que todo ruflando de temor, assombrado e
arisco, reagia a patadas. Ágil e precavido, porêm, o Silveira furtava-se
a tempo e logo voltava, numa polarização empolgante de todo o seu ser, a
defrontar-se com êsse trecho vivo de natureza em bruto; olhava-o firme,
rodeava-o e cingia-o, déstro, incansável, ameaçando, bradando,
rojando-se, saltitando; envolvia-o num mágico círculo de dominadora
astúcia, ora atraíndo-o por interjeições familiares, ora de escape
afagando-lhe o pescoço, ora tocando-lhe a garupa com o chicote
levemente. Feito assim um pouco o conhecimento com a sua indómita
montada, foi êle ainda quem lhe vendou os olhos, o enfreou e lhe atirou
pronto a sela para sôbre os rins, afivelada num relance. Novos afagos
agora, mais permitidos, mais claros, mais seguros; em seguida faz sinal
à peonada que solte as prisões; e num intrépido salto ei-lo arçonado
sólidamente contra o espavorido dôrso do animal em fúria. Há então uns
breves, absorventes minutos de ansiedade e de luta: é a consumada
maestria, a serenidade, a destreza, a forte musculatura e a vontade
indomável do cavaleiro, em decisivo duelo com o desordenado furor do
ginete, que, sob a pressão exasperante daquela formidável tenalha de
aço, se dispersa em esforços inúteis, encabrita-se, escouceia, escarva,
atira upas, sacode a espinha, curveteia, bufa, geme e tressua,
inelutávelmente. Depois, quando o Silveira teve o seu domínio eqùestre
por assegurado, despediu tambêm o pôtro a galope, mas não cega e
irracionalmente, como os dois anteriores, antes forçando-o a seguir, no
mesmo andamento sempre, em dadas direcções, manejando-o e dominando-o a
seu bel-prazer, obrigando-o até ao cansaço... e assim conseguindo por
fim trazê-lo a fazer o vitorioso circuìto do terreiro, ante a
estarrecida imobilidade da assistência. Então, tranqùilamente, apeou-se
e abandonou as rédeas ao cavalo, que, sem o mínimo assômo já de
emancipação ou de revolta, pelo contrário, deu em seguir espontâneamente
na esteira do seu hábil domador, manso e humilde como um podengo, os
flancos molhados, estirado e murcho o pescoço, e o focinho arquejante a
acariciar-lhe a espalda, que ia deixando mosqueada de baba
sanguinolenta.

A tôda a volta estrondeou uma tropeada de aplausos delirantes, que o
Silveira, altaneiro e frio,--e enquanto, tirado o _chambergo_, enxugava
o suor,--agradeceu escassamente. Correu a abraçá-lo com admirativa
efusão o reduzido grupo dos amigos. E, como lídimo arauto da multidão,
um veterano _gaucho_ se adiantou gravemente, batendo os esporões
farfalhantes, de rosetas como sóis, e depois duma rotunda saùdação
estendeu-lhe com solenidade aos pés o _poncho_, por esta rústica
homenagem fiel intérprete da consagração indígena ao seu triunfo. Neste
fremente e alto côro apoteótico Maria Mercedes sómente fez excepção.
Quando, na quente raçaga ainda das últimas ovações, o Silveira demandava
com ingénuo alvorôço o seu aplauso, ela acolheu-o com reserva e
festejou-o parcamente; e insensível a tanto prestígio, num deliberado
propósito de afastamento, de frialdade, de indiferença, todo o resto da
tarde, depois, e ainda ao jantar, e pela noite adiante, foi para o
burlado vencedor, de poucas horas antes, dum cerimonioso alheamento e
duma secatura implacável, naquele seu ar distraído e enfadado mantendo-o
a inexorável distância... Ao passo que, com uma _coquetuela_ vulgar, se
desentranhava em atenções, galanteios, donaires, mímicas de sedução e
adoráveis preferências para com o atónito Belisário, que, exultante e
feliz, na inverosímil radiação do seu espanto, tinha a préga lívida das
pálpebras aquecida por um riso desvanecido e amiúde passava ufano pela
calva precoce os dedos trémulos.


Na breve e jocunda sucessão dos dias, depois, foi preocupação dominante
a preparação dêsse festivo programa para o baptismo religioso da
_estancia_. Maria Mercedes era a incontestada Egéria do movimento.
Tomada de iluminado e impressivo entusiasmo pela realização da sua
grande idéa simbólica, tudo ela ardida e metódicamente concertava,
planizava, distribuía, tudo ordenava e impunha, no inflexível dogmatismo
derivante do seu prestígio, com uma impetuosa tenacidade que fazia o seu
próprio espanto e era o acendrado regosijo do séquito amigo.
Invariávelmente ela agora, com uma pontualidade burocrática, logo às
primeiras horas da manhã descia ao seu escritório de ocasião, instalado
na biblioteca, e aí, mais ou menos, trabalhava indefêssamente o dia
inteiro. Sob a sua imediata inspiração, em grandes fôlhas de cartolina,
Belisário riscava escalas, fazia alçados, córtes, projecções, esquissava
planos. De funções mais modestas, o Silveira secretariava, anotava o rol
das despesas, expedia as requisições, fazia a correspondência. Jorge
comunicava as ordens e distribuía o serviço directamente pela famulagem,
e era a pessoa indigitada para trasladar-se à capital, dada a hipótese
de alguma missão de confiança. Por sua banda pai Saavedra, atenta a
relativa invalidez própria da idade, e bem assim a mulher e a filha,
tinham a incumbência de fazer da estranha e inusitada festa, pelo bronco
populacho dos arredores, uma elucidativa e suave propaganda. E ao
auspicioso gesto e sob o alado impulso dessa fada irresistível, todos
trabalhavam com ardor, acêrto, decisão e entusiasmo igual. E era de ver
como esta imprevista intromissão de trabalho ligeiro e jovial na grossa
labuta habitual da _estancia_, longe de destoar, por inecessária e
fútil, em vez de lhe trazer qualquer ralento dispersivo, antes ao
contrário com ela se enquadrava idealmente, e como que insuflava um
protector alento de consagração espiritual a todo êsse utilitário e
rasteiro desparramar de produção e de vida.

Ficou assente que, na manhã do santo dia aprazado,--um domingo,--se
procederia à bênção da imagem votiva da Virgem, padroeira futura da
_estancia_; pela tarde seria a sua condução processional té ao
estilisado nicho erguido ao abrigo da umbela majestosa do venerando
_ombú_; à noite, iluminações, fogos de artifício, arraial e grande
concurso cosmopolita de canções e danças populares, com prémios em
dinheiro, instrumentos agrícolas, _registo_, _verónicas_, viandas e
guloseimas. A primeira notícia da sagração da _estancia_ tropeçou
naturalmente num ambiente hostil, quando começou de circular pela
redondeza. Contra a sua realização o cego rotineirismo e os atávicos
preconceitos dos naturais ergueram-se em alvorôço, por um supersticioso
alarme sacudidos no seu torpôr de séculos.--Que peregrina idéa era esta
agora de trazer santos de igreja p'r'ali? e pô-los, p'ra mais, ao abrigo
dessa odiosa árvore de desgraça e de ruína? Era uma heresia, um absurdo,
um desafio sacrílego ao Céu. Podia redundar em azar p'ra todo o campo em
roda... Era uma iniqùidade mais dêsses abominados senhores do vélho
tempo, que não podendo já privá-los da liberdade, vinham afrontosos a
derrumbar-lhes as crenças. Seria uma calamidade.--Era assim como às
tardes pelas _pulperias_, nas recolhidas horas da sésta, à roda
vinolenta do balcão e de mesa para mesa, de grupo para grupo cortando a
cada instante o giro vago da conversa, chispavam vivas e inflamadas,
quáse unânimes, as frases de acre censura, os votos de protesto, os
conclamas de revolta. E tambêm pela calada cúmplice da noite, no
ignorado mistério de alguma _tapera_ distante, maus elementos campesinos
havia que, incitados pelos raros _montoneros_ e _churriadores_, corriam
a reùnir-se em clandestinas conspiratas, e ferozes e estúpidos, o pulso
peludo apertando o _machete_ vingador, aí tramavam desforços violentos,
represálias subversivas; por fim, concordes em que uma solução radical
seria assaltarem de golpe o jardim da _estancia_ e abater pela raíz,
destroçar, fazer em fanicos o fatídico e arrogante _ombú_... redonda,
rasamente.

À medida porêm que, na _estancia_ metamorfoseada como por encanto, as
linhas ornamentais se erguiam e no ar doirado se debuxava o anúncio
jovial da próxima festa, paralelamente, todo aquele fermento de rebelião
latente se apagava e se sumia. Vinham os bravios conspiradores da
véspera, e, ante a evidência promissora do facto, grado a grado
capitulavam, imobilizados primeiro numa paspalhice alvar, curiosos e
interessados a seguir, e por fim levados de vencida nessa onda
estonteante de alegria. A realidade sugerente do prazer tinha nas suas
almas rudimentares e famintas maior efeito que a catequese teórica dos
Saavedras. O certo foi que, por virtude do capricho inventivo de Maria
Mercedes, a patriarcal _estancia_ agora perdera todo o seu ordenado e
pacato aspecto antigo. A cada momento ali um afadigado enxame de
obreiros voluteava incessante, não só fóra, pelas imediações, formigando
em manchas de atento e aplicado ardor, como tambêm, do gradeado a
dentro, pisoteando os tenros canteiros do jardim, revolvendo do _patio_
a lisa areia, invadindo os quartos, encostando escadas, verrumando,
parafusando, martelando, encavalados pelas paredes, debruçados da
_azotea_. Esta sua dispersiva ânsia de movimento a cada passo era
cortada pelo pejamento inerte duma abundante farfalha industrial:
tubagens, cordas, arames, pás, alviões, pêras eléctricas, chumbo em
blóco, ferros em brasa, metais luzentes, destroçadas rumas de barricas e
caixas de lata estripadas. Sobrelevando aos prosaicos ruídos habituais
do recinto, de tôda esta batida sonora soltava-se o ritmo sadio e
folgazão dum como cântico de vitória. E do mesmo passo a mãe-terra
aparecia tôda fendida e revôlta, cortada em tôdas as direcções por uma
anastomose de sulcos ridentes e húmidos, aberta com prodigalidade em
ruturas serpeantes,--o que fazia o infantil regalo de Dorita, todo o dia
rojada sôbre a frescura plástica do sólo, embodegada e suja, a «fazer
casitas».

Para a limpa execução dêsse trabalho delicado e novo, tinham vindo da
cidade carpinteiros, sambladores, polidores, torneiros, electricistas. E
a favor do tempo se foi a garrida e abundante decoração gradualmente
definindo.--Uma cerrada fieira de lâmpadas contornava nas suas linhas
essenciais a arquitectura sóbria da residência, correndo em dupla fita
ao longo da cornija, cingida aos relevos terminais do _hangar_,
marinhando em hélice pelas colunas. Uma espelhada cinta idêntica de
vidros coloridos rodeava por inteiro o gradeamento alto do jardim, e
pelo interior dêste, depois, em caprichosa profusão seguia a circuìtar e
a derramar-se em lacetes numerosos, riscando troncos de árvores,
desenhando globos, estrêlas, rendados, franjas, vestindo e pintalgando o
ripado fresco dessoutra floresta de gongóricas pirâmides que em farta
sementeira se escalonavam pelo recinto. Havia mais, ali, de árvore para
árvore, de poste para poste lançados com elegância, grossos festões de
buxo e sanefas berrantes de papel de côr; e na inefável palpitação do ar
batia uma alacre trepidação, compacta e esplendente, de emblemas
religiosos, de laços, flores, _pompons_ e bandeiras. Fóra, pela
intérmina expansão do campo, alinhavam-se extensas fiadas de tarimas
tôscas, feitas em madeira clara e resinosa, adrede improvisadas para que
à epicúrea onda da multidão elas pudéssem ser, cumulativamente, fácil
estendal para a comida e cómoda estância de repouso. E no ponto
culminante, ao alto, protegida pela enramalhada concha, tôda em
torcicólos gigantes, dessa atormentada árvore secular, já nos últimos
dias luzia suas inéditas galas um lindo nicho baldaquinado, em
equilíbrio sôbre um alto lenho prismático, tombado ligeiramente, à moda
veneziana, e entalhado em duro roble, com porta de cristal e um rico
lampadário de bronze à frente suspenso.

Esse aprazado domingo amanheceu, por sorte, um encanto. No azul puro e
diáfano do céu, peneirado duma subtil poalha de oiro que era como uma
alvorada de bênçãos, apenas alguns farrapitos de nuvens, brancas e altas
como asas de anjos, erravam levemente... E desde as primeiras horas que,
algarreira e abundante, a multidão começou afluíndo, todos em salteiros
grupos endomingados,--_con sus trapitos de cristianar_,--fundidos no
guloso ímpeto do mesmo apetite místico e folião, porêm distanciados pelo
traço diorâmico dos costumes e pelo desenho ideal das crenças. Vinham em
alegres volatas, em chireantes golfadas, em cordas de riso uns após
outros vitoriando, cantando e dançando, como se nesse dia de glória a
amplidão ridente da planura se vestisse duma grande e viva alfombra
cosmopolita, realçada em matizes de tôdas as latitudes, de todos os
países, de tôdas as religiões, de tôdas as raças. Assim decorreram entre
festivas e ingénuas pompas as anunciadas cerimónias do dia, cingidas no
atropelado abraço de tôda essa grossa onde espectante. A bênção
comovedora da Santa e a sua processional trasladação, depois, àquele
improvisado altar da selva, foram, a um tempo, duas maviosas sinfonias
de movimento e de côr, e duas tocantes demonstrações de lisa fé e
piedoso entusiasmo. A vitoriosa culminação da festa estava porêm
reservada para mais tarde, quando, ao cerrar da noite, aqueles quantos
milhares de pequeninos globos, serpeando como vermes de fogo, saltando,
faíscando aqui e ali, errantes e vagos como pirilampos, começaram de
acender de roda a sua aleluia policróma. Um outro dia apontava agora,
suave e discreto, não cortado já na prosaica nitidez das evidenciadoras
flamas do astro-rei, porêm pela atenuada sarabanda dessa infinidade de
minúsculos sóis arredondado em claridades de sonho, sôlto e ideal campo
aberto, agora, às fugas da imaginação, aos arroubos do amor e aos vôos
da poesia. Era todo o vasto e bigarrado recinto dos seus fundos de
sombra jorrando esplendentes fontes de luz, palpitando e ardendo numa
estonteadora profusão de lumes caprichosos, que definem linhas
arquitecturais, que festoam silhuetas de árvores, que espirram para o
espaço, que da relva rompem ou no ar se baloiçam em largas figurações de
fantasia, e em que o uso das novas lâmpadas de fio metálico multiculôr
dá motivo às mais deliciosas projecções de côr, às nuanças mais
fantásticas e imprevistas. E por sôbre tôda essa orquestração lampejante
é ainda e sempre a carcassa mégaloide do vélho _ombú_ que mais destaca e
mais realça, todo inflamado em recamos de gala, casquilho, remoçado
agora e como que ufano do seu destino, iluminando afável e protector a
passividade muda do deserto,--o polipo colossal das raízes, que
poderosas esgarçam a terra, mosqueado de tijelinhas de côr, como
tentáculos luminosos, no amplo seio amostrando com orgulho e abrigando
com carinhos de avoengo o nicho tremeluzente, e pelo atormentado e largo
bracejar da ramaria o múltiplo rosário das lâmpadas pingendo, facetadas,
límpidas, fulgurantes como lágrimas de alegria.

Entretanto pela ampla e redonda extensão que êste luaceiro de festa
abrangia, apinhada e confusa a ronda do populacho crescia,
amontoava-se... o vago marulho da sua agitação fanfurriava em ritmos
bárbaros, vibrava em cânticos, era avivado em singelas dolências pela
sublinha sensual das tocatas e descantes... e a quando em quando, sob a
estralada esfusiante dos fogos de artifício, à flor dêsse revôlto mar,
reverberava então cá em baixo, em pinceladas goyescas, por instantes, a
floresta alvar das suas cabeças em delírio.--Fazia aprazívelmente o
Silveira o interessado circuìto do recinto, quando súbito, na compacta
maré montante de figuras que do exterior vinham ávidas colar-se à grade
do jardim, lhe pareceu distinguir um rosto seu conhecido.
Irresistivelmente, adiantou-se... e, com efeito! era Luísa, a linda e
fresca morenita, que na sua adorável rusticidade ali viera poisar, e que
enlevada e imóvel, por um alheamento de indizível beatitude os sentidos
presos e a atenção suspensa, no perfil garboso e enérgico do seu bravo
defensor cravava encantada os grandes olhos negros.

Então o Silveira, entre lisonjeado e surprêso, com uma doçura cantante
na expressão aproximou-se.

--Ó Luísa! A minha querida amiguita tambêm por aqui?... Como vais tu?

Por única resposta, ela teve um breve sorriso de êxtase a encrespar-lhe
os lábios, e logo, còrando ligeiramente, baixou os olhos. O Silveira
tornou:

--Que bôa idéa tiveste! Mas que fazes aí assim? porque não entras?

Sem articular palavra, sem se mover, Luísa manteve a mesma atitude
retraída e humilde.

--Anda!--carinhoso e afável o Silveira insistiu.--Não queres comer?...
não vens dançar?

Luísa movia a cabeça negativamente, fechada sempre na mesma inércia
contemplativa, sem romper o seu mutismo.

--P'ra que vieste então?

Ela agora por fim, com voluptuosa pausa volvendo a abrir as brumas
pálpebras, e na cálida demanda do seu galhardo interlocutor o fogo
latente do olhar chispando, numa velada ternura balbuciou, singelamente:

--_Para verlo_...

O Silveira sorriu e num estremeção de vaidade, medíocremente sensível à
tímida e incontida expansão da rapariga, insinuou a mão pelos ferros e
acariciou-lhe ao de leve a face tostada e redonda.

E partiu a seguir, por que em cima, junto à residência, uma salva de
morteiros anunciava o início do concurso coreográfico, e êle fazia parte
do júri. Então a pintalgada e densa coluna das várias músicas e bailados
que insofrida se achava a postos, começou montando a _ladeira_ suave do
jardim para ir marcialmente desfilar e luzir seus méritos frente ao
estrado posto a meio da galeria,--ante a mirada crítica de Maria
Mercedes, tôda de branco,--e seguindo num grosso e infindável
coleamento, apartados por castas, distintos pelas côres, opostos pelos
ritmos, todos cantando, vibrando, saltitando, numa grande coreia
dionisíaca que era a encantadora revivescência de algum atrevido
_fresco_ pagão, na espontânea impetuosidade e na vida instintiva do seu
movimento afirmando a irmanação genésica do homem com a Natureza, das
almas com as coisas. Foi primeiro o _tango_, êsse gracioso hino da
lascívia, impregnado de malícia picaresca, uma dança de perdição feita
de lânguidos requebros, a um tempo trágicos e sensuais, exprimindo
líricamente a conjunção fatal do amor e da morte; depois as corriqueiras
_vidalitas_, acompanhadas a viola e tamboril, crónica leve e sugerente
de façanhas guerreiras, de zombeteiros chismes e cómicas aventuras; a
seguir, os _tristes_, lembrando os nossos _fados_, gemendo um ritmo
atormentado e dolorido, quáse religioso, que dá a vaga sensação do
mistério, da solidão, do infinito; as _jotas_ e _sevillanas_ no seu
saracotear febricitante, a _tarantela_ no seu académico balanceio, o
_trepák_ no seu simbolismo ingénuo; e o desenvôlto _gato_, o mesurado
_pericón_; as _baturras_, _soleares_, _farandolas_, _chulas_,
_fandangos_... e quantos mais.--Durante horas seguidas, assim na calma
benéfica da noite, sob o jôrro delirante dos aplausos e na sua estúrdia
ronda aquecendo a fria majestade do deserto, se agitou dançando tôda
essa corda guizalhante de rústicas melopeias. E quando já os primeiros
alvores da manhã clareavam o horizonte, ainda, na debandada final, a sua
interminável cola sonora se via impetuosa e louçã, desparramada a
rabejar pelos caminhos.




IX


Um escasso dia volvido apenas sôbre a festa, Belisário regressou à
metrópole. Seguiu-o no intervalo de mais um dia o Silveira, cuja
existência ali, depois do seu assinalado triunfo hípico, nas últimas
semanas, decorrera tôda batida em alternâncias de cruel incerteza,
assaltada de imprevistas dúvidas, cortada em antíteses absurdas, numa
espectativa mortificante. As flutuações coquetas, incessantes, da sua
«bôa amiga» Maria Mercedes, cujas típicas excelências tam vivamente
haviam sacudido o seu temperamento de fogo e vincado o seu carácter
mulherengo; êsse jôgo caprichoso e perverso entre a frialdade e a
exaltação, entre o espanto e o desdêm, entre o enfado e o carinho,
desconcertavam-no. Inelutávelmente, corrido de vaga humilhação, êle
reconhecia em Belisário um primaz competidor. Por sôbre aquele aspecto
derrancado e turvo, a despeito do podrido descalabro dêsse físico todo
escórias e ruína, o Silveira, forte embora da sua virilidade radiosa e
exuberante, achava-lhe superioridades: era déstro no diálogo, fino e
leve, bem falante, brandia a ironia como um florete, vestia com mais
elegância. Por isso a sua obrigada e constante freqùentação, ali, com
êsse émulo temido, e frente a frente os dois do ídolo do seu comum
cuidado, tornava-se-lhe uma coisa irritante, molesta, dolorosa, por
vezes intolerável. Contudo, retirar antes dêle seria uma deserção, uma
cobardia. Foi suportando... Logo porêm que o afastamento voluntário do
rival arredou a emergência dessa hipótese deprimente, o Silveira abalou
tambêm, na sua incontida ânsia de emancipar-se duma situação por demais
incómoda, violenta, e, perante a pungente ampliação do seu despeito...
porventura ridicula.

Tendo chegado a Buenos-Aires ao entardecer, acolheu-se logo ao hotel,
jantou e nessa noite não saíu. Apreensivo e triste, sentia uma grande
necessidade de isolamento... e cedo se encerrou no quarto e abandonou-se
à tortura voluptuosa das suas íntimas cogitações, cujas mórbidas volutas
o surdo embalo dos vagos rumores da Avenida, em baixo, favorecia. Na
manhã seguinte ergueu-se tarde. Aquele destemperado vibrar dos nervos
impunha-lhe agora um preguiceiro e salutar repouso. Porêm, apenas
terminado o almôço, picou-o um vivo apetite de expansão, de arejo, de
movimento; precisava desabafar... queria falar, mexer-se, descompôr
alguêm, ver caras conhecidas. Acendeu pronto o cigarro, tomou o chapéu e
saíu logo, em demanda do amigo Azeredo, que mudára de pensão e residia
agora ali perto do hotel, na _calle Libertad_, a não mais de quatro
_cuadras_.--Era um pequeno prédio antigo, sem porteiro e sem ascensor. O
Silveira teve que subir uma extensa escada de mármore, em caracól, quáse
às escuras, e encontrou-se súbito num modesto e exíguo _hall_,
pavimentado a baldosas negras e verdes, guarnecido por uma vélha mobília
de vêrga, globos de vidro estanhado, missangas, _crochets_, enredadeiras
e vasitos com plantas. Veio-lhe ao encontro o dono da casa, um aparatoso
andaluz, de alentada envergadura, loiro e obêso, o _pijama_ e calça de
riscado vestidos sumáriamente sôbre a pele, e os felpudos pés nus mal
contidos nas babuchas.

--O sr. Azeredo ainda estava à mesa. _Quiere Usted pasar_?...

Acedendo curioso ao afável convite, o Silveira seguiu o solícito
introdutor ao longo dum corredor tristonho e esguio, com anteparo de
zinco sôbre o saguão, e ao cabo entrou no comedor, uma crepuscular peça
oblonga, tomada quáse totalmente pela mesa, em tôrno da qual, havendo
cessado de comer, os seus seis convivas, guardanapos depostos e
arredadas as cadeiras, em amena chalra, num baralhamento pelintra,
familiarmente se esqueciam. O Azeredo, mal que viu o amigo, ergueu-se de
salto a abraçou-o efusivamente.

--Oh, João! meu grande vadio... Finalmente! Cuidei que te ficavas por
lá...--E numa palmada cordeal sôbre o ombro, indicando a cadeira que, ao
lado dêle, a _mucama_ havia pronto achegado:--Senta-te... Que magnífico
que vens!

Em seguida, com aquele seu invariável ar salteiro e risonho, o Azeredo
fez em globo a apresentação do amigo aos outros comensais, com uma
sublinha especial, é de saber, perante a dona da casa, à direita da qual
êle tinha o honroso privilégio de sentar-se,--e que era uma grossa e bem
fornida vasca, quadrada, ruiva, de epiderme branda e leitosa, viúva
havia ano e meio, e todavia agora ligada maritalmente ao andaluz... por
conveniências domésticas. À direita do Azeredo sentava-se uma joven
corista do _Avenida_, miudita, clara e franzina como um mimo de bazar,
os olhos maquilhados fortemente, esborifado o cabelo, e na morbidez
cansada da expressão saltando em contraste provocador o narizito
petulante. O nariz era tambêm a única feição acentuadamente vincada,
nessoutra vaga e estirada figura espectral que tinha logar à mesa em
frente dêle, à esquerda da dona da casa,--um incompreendido violinista
de café-concerto, a pele como pergaminho, os músculos como arame,
rechupado, lívido, transparente. Mais à esquerda, havia um acomodatício
e bronco pintor de taboletas. Finalmente, com depreciativo orgulho
posta, e sentada como por demais, entre êstes dois últimos, aparecia uma
gorda e casquilha quarentona, com o ar presunçoso e taful, pastosa,
feia, arrogante, que era a mais insensata e hilariante personificação do
burlesco; vestia uma curiosa bata ornitológica, tôda carregada de
passamanarias, vidrilhos, contas e plumagens, bigarrada em côres de
papagaio, em tons berrantes; a testa era rudimentar, e uns desastrados
laivos de água oxigenada sarapintavam cómicamente a maranha abstrusa do
cabelo pegajoso e sujo; pela fartura pendente do colo moreno havia por
igual, às dedadas, a lambugem clara dos cosméticos; e à raíz da face
opada rasgavam-se uns grandes olhos brilhantes mas apáticos, na sua
vítrea imobilidade reflectindo uma fixidez obtusa de sáurio, uma
credulidade estúpida.

O Silveira compreendeu num relance que esta presumida e grotesca
marafona era naquele momento o centro burlão das atenções e o tema
desopilante da conversa. Com efeito, não tardou que o amigo lhe não
dissesse, apontando com solenidade a exibitiva carcassa em frente, numa
irónica reverência:

--Chegas na melhor ocasião. Tenho o prazer e a honra de te apresentar a
_señorita_ Calliope Cernadas, uma joven e distinta cantora, próxima
debutante no _Colón_...--E com um patente ar zombeteiro, num gesto de
solícito apoio aos circunstantes, acentuou:--Em plena primavera da vida,
como vês... Vinte e cinco anos, _no mas_. Um flamante embrião de artista
e um coração inabordável! Não é certo?...

De roda houve um bem simulado cabeceamento de convicta anuência,
enquanto a embaída vítima trejeiteava desvanecidos requebros, em meio do
côro hilariante da assistência. E para ela agora com a mesma urbana
solenidade, o Azeredo, indicando o amigo:

--O meu amigo e patrício João da Silveira, solteiro, rico, poeta... O
homem que lhe convêm... Um grande fidalgo e um grande enamorado.

No mais caricato arremêdo de êxtase, a enxundiosa Calliope revoluteava a
apática inexpressão dos olhos, mordia o lenço, parodiava atitudes
infantís e motêtes ingénuos. Entretanto, na sua apologética parlenda o
Azeredo tornou:

--Uma voz de oiro!

--Dito por todos os mestres,--confirmou Calliope com fatuìdade.

--Cinco anos de Conservatório e dez de lições particulares.

A inocente visada teve um salto de despeito. E a seu lado o violinista,
coçando deliciado a nuca, piscando um ôlho:

--Não se pode dizer um talento muito espontâneo...

Porêm, vagamente apiedado, o Silveira:

--Deve ter começado de muito criança.

--Era tudo fôrça da vocação...--aclarou o Azeredo, no mesmo tom
escarninho:--Quando largou o _biberon_, já solfejava.

Em volta da mesa, agora, o riso estalou sem rebuço. E o avantajado
andaluz, que acendera o cachimbo, fazia, mudo, sorridente e matreiro, o
giro atento da casa.

Mas de repente o Azeredo, consultando o relógio, ergueu-se.--Eram horas
de voltar ao escritório:--E saíu rápido, com o amigo, conduzindo-o
familiarmente ao seu quarto singelo e claro, com varanda sôbre a rua.
Ainda podiam quedar-se uns minutos. Acendeu o cigarro e sentou-se, na
préga trocista dos lábios apagando-se-lhe as derradeiras vibrações por
êsse jôgo desopilante com a _señorita_ Cernadas. O Silveira
perguntou-lhe--que _bolha_ fôra aquela de mudar de pensão? E com ar
enfadado, sucudindo os ombros, o Azeredo explicou:

--Aquilo lá era uma maçada, menino! Imagina: a tal viúva chilena dava-me
uma sorte completa... e que rica mulher! impetuosa, louca, insaciável!
Porêm o lamecha do caixeirola, perdidamente embeiçado por ela e sem
sorte, tudo era voltar-se contra mim, dardejava-me olhares de desafio...
um riso! fazia-me arremessos... E à sua arisca Dulcineia escrevia então
umas cartas lacrimosas e tétricas, tresandando bafio romântico, nas
quais havia desgrenhados apelos ao refúgio amargo da morte, e por entre
cujos rábidos arrancos tremeluziam ameaças de vingança.

--Que te importava a ti?

--Não, mas é que ao mesmo tempo essa pobre rapariga _tanguista_, que era
uma triste lambisgoia, dizia-se apaixonada por mim e daí seringava-me a
todo o momento, metia-me bilhetinhos pelo buraco da fechadura,
espiava-me, com scenas de ciúmes... Uma carraça, uma cataplasma, um
tédio! Uma noite, comeu as cabeças tôdas duma caixa de fósforos e foi
naquela casa um reboliço... vomitórios, fricções, prantos, desmaios...
tivemos que levá-la à Assistência.

--És o terror das pensões baratas.

--De sorte que eu então, p'ra evitar uma dupla tragédia, tive um
iluminado rasgo de prudente decisão e raspei-me. E aqui, estou bem. E
uma casa _reinadía_... O diabo da patroa joga como uma danada nas
carreiras, e de cada vez que ganha, é um deboche de _champagne_ com os
hóspedes e as amigas.--E logo num tom de desafectada cordealidade, todo
dobrado para o amigo:--E tu por lá, meu maganão?...

O Silveira desfiou regaladamente a narrativa entusiasta e louçã da sua
breve estada no campo,--a imensidade lendária da _pampa_, a luz, a côr,
a paìsagem, o inéditismo claro dos aspectos, a rude singeleza dos
costumes. Espraiou-se em gratas referências ao hospitaleiro carinho dos
Saavedras, enaltecendo de preferência, em enternecidas frases, essa doce
e encantadora figura de D. Teresa, na sua aberta simplicidade, na sua
bondade inverosímil.

Com um risinho misterioso, o Azeredo aventurou:

--Sim, sim... Ainda tu não sabes quanto ela é de boa!

--Então?...

--É uma sogra rara, única, paradoxal.

--Como assim?

--Sabes que ela tem uma filha casada, agora em Paris, a qual lhes deu já
um netito, êsse _guapo muchacho_, o Eduardo, que é a exclusiva adoração
do avô. Ora o pai do pequeno é um perdulário, um sem vergonha, um
sensualão, um estroinaço impenitente. Pois esta D. Teresa, na sua louca
dedicação pela filha, tem a santa ingenuidade de assegurar uma mesada ao
genro só p'ra que êle, com as suas _calaveradas_, não dê desgostos à
mulher.

--É bôa! Era uma sogra assim que me servia.

--Não haverá duas na terra.

A seguir, o Silveira, depois duma pausa,--e como quem tímidamente
retarda o defrontar com uma dificuldade, ou voluptuosamente dilata a
fruìção dum prazer,--referiu-se a Maria Mercedes, pastichou-lhe em
tintas de vivo entusiasmo o deslumbramento da beleza física, apontou em
vagas e trémulas linhas de incerteza a complicação desconcertante do seu
perfil moral. E nesta empolgante análise retrospectiva, a despeito do
tom deliberadamente ligeiro dos seus conceitos, a cada momento a comoção
traía-o. Inadvertido e quente, descobria-se. Um sôpro de íntimo incêndio
trazia-lhe a alma aos lábios, ao ensaiar a turbadora evocação dêsses
formidáveis episódios, dessas horas atormentadas e profundas, relâmpagos
de enlêvo, eternidades de dôr, delícias dum instante.

O Azeredo, dando-se grado a grado conta da situação, escutava-o em
silêncio, num crescendo de apiedada estranheza, com aborrecimento, com
quesília, com desgôsto. E por fim, tomando o chapéu para sair, com a
bôca severa e os cílios graves, aconselhou:

--Tem-me conta com essa _gaja_... Começa por te derreter os miolos e
acaba por te fundir a algibeira.

--É rica.

--Não importa. A esta gente aqui está-lhes na massa do sangue:
_estafarem_ o seu e o alheio.


Voltaram naturalmente a juntar-se naquela tarde os dois amigos. Jantaram
na _Rôtisserie Sporstman_, e foram ao teatro _San Martin_, desemborrar
um pouco os nervos na contemplação da mímica petulante e lúbrica da
Pastora Império. No dia seguinte, esperto e ligeiro, deu-se pressa o
Silveira em ir fazer o giro matinal de Palermo, onde já sob a claridade
molhada do ar, na renovação da temporada elegante, um cordão de
deliciosas silhuetas dandinava pela orla escovada das _pelouses_, e a
envernizada frescura do asfalto se emplumava do trotar garboso das
amazonas. Sentia-se bem... Reganhava-o o sugestivo encanto da vida ampla
e fácil da cidade. Naquele doce ambiente de agrados e belezas o seu
estimulado ser tinha um aprumo salutar... a vontade tomava raízes, a sua
galharda juventude frondejava em ímpetos, sentia o pensamento inerte,
embevecida a alma, o coração cativo.--Buenos-Aires, bem se dizia... era
o Paris da América, seguramente!--Vinha-lhe o dulceroso apetite de
quedar-se esquecidamente ali, nesse adorável ninho da felicidade, essa
esplendorosa sucursal do Paraíso, deslumbrante e imensa caravançara onde
à compita, vinha estrelar-se o escol das civilizações, onde émulos se
davam cita os génios de tôdas as raças, o melhor dos progressos, das
grandes conquistas morais e materiais de todo o mundo... ali, o
privilegiado solar da fortuna, da abundância e da harmonia, a terra das
mulheres de lindas bôcas, de rostos de linhas puras e suaves, tendidas
com nobreza.

Duma das vezes, ao desembocar na _Avenida das Palmeiras_, cêrca do lago,
pareceu-lhe distinguir na sua frente, entre o pintalgado baralhamento da
quádrupla fita de veículos, uma figura sua conhecida. Era com efeito o
grosso e ponderado Mafiori, que descia dum aparatoso _Peugeot_, e mal
que reconheceu o Silveira, veio logo adonde a êle, importante mas
afável, a oferecer-lhe as duas mãos e a perguntar-lhe--como ia. Cortês e
solícito por igual, pediu-lhe tambêm o Silveira informações dos seus
negócios. O marquês estava remoçado, parecia feliz. Os olhos flácidos
tinham mais brilho, a vasta e epilada testa desanuviára, e tôda a face
rosada e redonda florescia, erguida pela saúde ou dilatada pelo prazer.
Às interessadas perguntas do amigo, êle sorriu.--Bem! muito bem!--E com
a sua fidalga e resignada bonomia aclarou, encolhendo os ombros,--que
aquela forçada abdicação dos seus fóros nobiliárquicos trouxéra-lhe
sorte, afinal. Estava fazendo bastante negócio. Fizera uma bôa venda aos
Spantuzzi, outra aos Ribolto, estava alcatifando de novo a casa tôda dos
Arriola,--um palácio!--e tinha uma grande encomenda para o
_Jockey-Club_.

E sempre com dignidade, uma ligeira sublinha de irónico desdêm a
encrespar-lhe os lábios:

--A esta hora, já as venerandas ossadas dos meus maiores hão-de haver
estremecido, várias vezes, de indignado horror, nos seus ricos mausoléus
lavrados. Uma indignação de mau gôsto, no fim de contas... Porque outra
coisa não há a fazer nesta terra, que com todo o seu exibitivo
pedantismo não passa duma mercearia colossal. Tudo mais ou menos se
negoceia aqui: é uma questão de rótulo. O segrêdo está na arte de embair
o freguês a encarecer a fazenda.

Depois, num gesto de paternal incitamento:

--Porque não faz o mesmo, meu amigo...?

Súbito, como na onda vaga da multidão descortinasse algo que o
interessava, despediu-se de improviso, embrulhando banais desculpas e
rematando amável:

--Eu continuo no _Plaza_. Venha um dia almoçar comigo.

E êle que segue dissimuladamente na peugada duma mulher grande e loira,
de idade à primeira vista inclassificável, artista lírica em
disponibilidade ou _demi-mondaine_ em decadência.

Certo foi que a prática significação daquele seu conselho calou suasiva
e funda no ânimo inconsistente do Silveira.--Seria realmente uma coisa
acertada, sensata, oportuna, tentar um negóciosito. Porque não?... Já
várias vezes êle o havia pensado: fazer como tôda a gente. Êle trouxéra
consigo uns contitos de réis, p'r'ó que désse e viésse... e porque não
procurar engrossá-los? de preferência a desbaratá-los p'r'aí
estúpidamente, em aventuras banais com mulheres ou jogando à tôa na
roleta e nas carreiras?... E, ainda, mais a dura preocupação dos
interêsses monetários poderia ser quiçá um derivativo salutar, e ter a
virtude de pelo seu áureo deslumbramento dissipar moles inclinações
piégas e furtá-lo a exaltações perigosas, como essa agora da diabólica
_Miquêtas_... Vá feito! Era o caminho a seguir.

Desta forma, o Silveira, sensível ao contágio do mercantilismo ambiente,
perdido, como tantos outros, na embriagadora miragem dum engrandecimento
rápido e retumbante, nos dias subseqùentes dava-se com afinco à leitura
dos anúncios comerciais dos diários, concorria aos leilões, era um
assíduo freqùentador das _vitrines_ dos corretores, onde em taboletas
relumbrantes de emissões de títulos, vendas de lotes de terras e
quejandas alicantinas, se acenava aos incautos com fortunas fabulosas. A
intervalos, as venusinas predilecções do seu carácter reganhavam o
natural ascendente, e êle então pensava em visitar os Wimeyer, que
contudo ainda não haviam regressado do campo. Queria tambêm voltar a ver
os Améglio; porêm aquela cavilosa duplicidade de _Mrs._ Edith
irritava-o... Era porêm evidente que, por momentos, a branca crôsta da
sua alma metalizava-se. Já jogava em fundos e entrára com capital para a
fundação duma _Sociedade Internacional de Seguros_. Êle era o primeiro a
fazer troça de si mesmo, desconhecia-se... e com familiar abandôno
comentava, perante o Azeredo:

--Tem graça! eu tam influido agora com negócios... coisa que não é nada
o meu feitio.

E meio incrédulo, o amigo:

--Não te dura muito!

Contudo, o Azeredo, vagamente scéptico mas no fundo de acôrdo, entendia
que sim, que fazia muito bem! porêm tinha que precaver-se e ter muito
ôlho contra essa imensa praga de _estafadores_ e meliantes... Ao mais
pintado êles faziam o _conto do vigario_, a cada instante! Por isso, que
não tratasse senão com gente bem conhecida. Havia de apresentá-lo no
_Club Progresso_, onde teria ocasião de relacionar-se com importantes
financeiros e industriais, com grandes e autênticos _terratenientes_,
com fazendeiros honestos e firmas garantidas.

Entretanto, tôdas as manhãs, com uma pontualidade de amanuense, o
endurecido Silveira subia a _Avenida de Mayo_ para ir ver as cotações da
Bôlsa e em seguida fazer, por _San Martin e Reconquista_, o interessado
giro do bairro clássico dos negócios, dando-se a acariciadora ilusão de
ser já um grande capitalista ou proprietário. E ao mesmo tempo alguêm
havia que, com solícita antecedência e uma pontualidade igual, em face
mesmo do seu hotel, da esquina oposta da Avenida, em plena rua,
aguardava em suspenso a sua aparição e espiava afincadamente a
realização quotidiana dêste acto banal da sua vida exterior.--Uma
simples e adorável rapariga do campo, verdadeiro diamante em bruto,
miudita, morena, bem calçada mas vestindo pobremente, com o ar um pouco
estranho, desageitada, esquiva, em cabelo. Tinha férvidamente posta a
vida, o apetite, o desejo, na enternecida fixidez dos grandes olhos
negros, incansavelmente apontados ao portão espelhento do hotel; e,
fechada no exclusivismo da sua mordente inquirição, como que buscava
anular-se para tudo o mais, tímida e pequena ante o roce brutal da
multidão, furtando-se aos galanteios, repelindo, assustada e arisca, as
propostas equívocas dos que passavam. Depois, quando a aprumada figura
do Silveira assomava à porta e saía, passeio fóra, a caminhar
distraídamente, a sua encantadora e ignorada espia vibrava ao
imperceptível estímulo dum inefável júbilo interior e seguia-lhe humilde
na peugada, durante uma ou duas _cuadras_, paralelamente; e por fim,
quando se perdia ao longe, na atropelada onda do movimento, aquele
desprevenido alvo do seu cuidado, ela por seu turno, à primeira esquina,
dobrava e desaparecia tambêm num relance.

Mais de uma semana, com inalterável precisão, dia por dia, se prolongou
e repetiu êste jôgo inocente para o inadvertido ânimo do Silveira
absolutamente despercebido. Té que, duma vez, como êle tivesse que
dirigir-se à _calle_ Vitória, apenas saíu do hotel cortou direito a
Avenida e veio assim a cruzar-se, quáse ombro com ombro, com a
interessante figurita anónima que o espiava, e que na sua deliciada
confusão, ao primeiro instante, queria evitá-lo, eliminar-se, fugir...
Impossível deixar de notá-la. E logo súbito, numa expansão de grata
surprêsa, reconhecendo-a:

--Ó Luísa! tu aqui?...

Tolhida numa vergonha, a gentil rapariga torceu as mãos, baixou os
olhos, enquanto a frescura virginal da face tôda se conflagrava em
tintas de incêndio.

Abrindo acolhedor os braços, o Silveira interrogou:

--Então? deixaste a _chacra_ onde trabalhavas?

--_No me pagaban_.

--E teu irmão?

--_Me pegaba_.

--Pobrezita! bem digo eu...--bondadoso o Silveira tornou; e com apiedado
interêsse, a seguir:--Fugiste então e vieste p'ra Buenos-Aires governar
a vida?

Numa tácita aquiescência, muda e indecisa, Luísa sorria vagamente.

--E gostas?--indagou o Silveira, muito afável; e como a sua linda
desconhecida abanasse afirmativamente a cabeça, com o vago sorriso de há
um momento aquecido agora por uma adorável expressão convicta:--E
porquê?

Luísa teve uns segundos de comovido silêncio e por fim, dobrando humilde
o busto, com as abatidas pálpebras seguindo, em baixo, o movimento dos
pés, que em taramelados giros raspavam trémulos na orla do passeio,
murmurou:

--_Porque aqui estoy mas cerca de Usted_...

Pelos arrepiados nervos do Silveira uma branda emoção correu, mixto
fundente de orgulho e de prazer, de fatuidade e de ternura. Sentiu-se
quebrado, preso... Atingiu-o em cheio na alma a ingénua confissão, a
doçura sentimental da rapariga. Naquela tarde havia uma reùnião de
acionistas da tal _Sociedade Internacional de Seguros_, e êle ia agora à
_calle_ Vitória para ter uma conferência prévia com um dos membros da
Comissão Directiva, pois sobravam razões para desconfiar que semelhante
_Sociedade_ não passava duma audaz mistificação, duma burla
descaradíssima, na qual êle via já infelizmente a arder o seu rico
dinheiro! Porêm, num pronto, a aparição de Luísa, ante a inefável magia
daquelas palavritas de oiro, vencido pela singela eloqùência duma
confissão tam espontânea e tam formal, tôda a sua grande preocupação
financeira,--uma preocupação de enxêrto,--se lhe varreu do sentido... Ao
mesmo tempo, numa tristeza de instinto, fitava com demora a sua passiva
interlocutora, olhava-a bem, considerava a sua rudeza inata, o exotismo
da sua figura, a miséria do seu arranjo... e sentia-se vèxado; via-se
que não podia decentemente quedar-se ali assim muito tempo, às claras,
nesse comprometedor _tête-à-tête_ num logar tam público, nem tampouco
acompanhar com ela. Mas tambêm,--que demónio!--esquivar-se agora e
deixá-la, retribuir êsse infantil abandono com a indiferença, seria a
maior das ingratidões, uma desumanidade, uma cobardia. Por isso êle, de
repente, cedendo a um cavalheiresco impulso interior e todo dobrado para
Luísa, olhando-a com carinho:

--Já almoçaste? queres comer?

Por seu turno, Luísa, sem ousar encará-lo, as mãos juntas erguidas aos
lábios e confrangendo o busto, tartamudeou uns monossílabos de embaraço.
E o Silveira então, adivinhando-a, tomou-lhe do braço, e com afectuosa
decisão, familiarmente:

--Anda daí!

Internou-se com ela em Vitória, mandou-a seguir rua abaixo, na sua
frente, um pouco a distância, em direcção ao Congresso; e aí dobraram
rápido para Entre Rios, onde entraram num _bar-restaurant_ de ínfima
classe, velhacouto barato de _menesterosos_, rufiões, cocheiros,
_chauffeurs_, caixeiros sem patrão e _redobloneros_ sem clientela.

Abancaram os dois a uma das mesas mais interiores, numa discreta
penumbra, e, à aproximação solícita do moço, dobrado em interrogativa
atitude depois de haver passado maquinalmente o guardanato sôbre a tábua
encardida, o Silveira insistiu com a suave morenita p'ra que dissesse--o
que queria tomar. E ela, numa deliciosa hesitação, com a face incendida
e os olhos húmidos, sem acabar de ageitar-se na cadeira, não atinava
igualmente com o que havia de escolher.--Não queria comer. Passára-lhe a
vontade...--Contudo, após uma laboriosa inquirição pela hipertrófica
lista dos ágapes em giro, decidiu-se afinal por um chocolate _liviano_ e
_sandwiches_. Êle pediu um _Bilz_. E com familiar naturalidade, num
singelo abandôno, algareira, feliz, Luísa foi então contando:--Ela não
andava por'li assim tam perdida como o seu _querido nenito_ imaginava.
Já estivera por duas outras vezes em Buenos-Aires; a última, quando foi
do centenário. Tinha mesmo aqui uma irmã... E que lá no campo moíam-na
com trabalho e ainda em cima não lhe pagavam. Guilherme, o irmão, era um
desalmado, um bruto. Ela arrastava assim uma vida de negra, era certo...
mas, em suma, como não sabia o que era mundo e não alcançava a mais,
ia-se conformando... A vélha adivinha de Castelli lá dizia: que cada um
nasce com o seu destino já talhado. Que lhe havia de fazer?... Porêm que
depois, de repente, nessa terrível tarde que afinal se volveu p'ra ela
numa aurora, ao vê-lo surgir tam milagrosamente e salvá-la, sentiu que
se lhe abrira qualquer coisa dentro da alma! como ela não sabia
explicar... via e abrangia agora as coisas por uma outra forma,
compreendia como podia _quererse_ a alguêm... e que a sua verdadeira
existência começara naquele momento, que não mais poderia quedar-se ali
onde a querida imagem do seu rico protector, lhe aparecia a todo o
momento, infiltrada de saùdade, reclamando-a com império.

Premindo-lhe a mão com doçura, o Silveira interrogou:

--Mas que te importa a ti?...

E ela, num profundo acento, gravemente:

--_Nada mas me importa en el mundo!_

A seguir, por entre as freqùentes olhadas oblíquas da freguesia equívoca
do _bar_, intrigada pelo estranho _accouplement_ daquele rico
_mozalbete_ com uma tam ordinária _piba_, Luísa continuou
desfiando,--que, resolvida a partir, fôra a socorrer-se com aquela santa
senhora, D. Teresa, a qual lhe deu algum dinheiro e uma carta de
recomendação para êsse _gran comercio de imagenes_ que havia na _calle_
Suipacha, onde a admitiram como caixeira. Tinha graça! todo o dia agora
a lidar com santos, ela que nunca se havia confessado nem comungado na
sua vida.

--Conféssas-te agora a mim.

--_Es que el señor es mi santo preferido. El señor y San Antonio_.

--Mas então, estando aí empregada, como é que?...

--_A las once salgo á almorzar. Y yo iba en una carrera y luego me ponia
en acecho, ya sabe, frente mismo á su hotel. Por suerte algunas veces mi
amor tardaba en salir... Y yo entonces, despues de verlo y seguido un
rato, como ya no tenia tiempo, volvia apurada á la tienda, sin comer_.

--Que disparate!

--_Es la cosa mas natural... Y no se me importa: soy de poco comer_.

--E aqui onde vives?

--_En la calle Tucumán, en una pensión muy cómoda e barata, dirijida por
una espécie de monjas, que ese buen santero de Suipacha me indicó. La
casa es solo para señoras y señoritas. Tengo un lindo cuarto, con el
piso encerado y la camita blanca. Tratan muy bien à la gente. Pero tiene
una cosa fastidiosa: no se permitem visitas y despues de las nueve de la
noche ya nadie puede salir_.

--Se precisares de alguma coisa...

E com crescente animação Luísa, num progressivo abandôno de todo o seu
ser confiado e vibrante:

--_Preciso, si... preciso verlo, oirlo, tenerlo algunos momentos cerca
de mi, asi, bien cerquita! Sus ojos me llenan el corazon de sol, su
simple presencia me infunde valor. Preciso tanto de ella como del aire y
de la luz, para vivir... e con ella me contento, toda vez que no puedo
aspirar á su cariño. Lejos de Usted es como yo ya no podria vivir!
Porque ahora es una cosa tan diferente... Si el señor vise como yo, allá
afuera, vivia solita y triste, sin afectos, sin amparo, sin una pisca de
alegria!... Por eso necesito que se me convierta en un dulce y leal
amigo de siempre, mi generoso protector dun instante. Que cargosa le voy
a ser!... No se acuerda el señor de aquella noche en que la siniestra
lechuza nos seguia todo el camino?... Nos ligó en la vida y en la
muerte. Es la suerte ya vê... Y yo confio en ella y á ella me entrego, y
estoy contenta. Porque decia mi abuelita, que Dios tenga en su gloria,
que cuando la felicidad se pone delante de nosotros á abrirnos un
camino, es como la desgracia,--es por mucho tiempo_.

Vagamente apreensivo, num frio e convencional sorriso, o Silveira
murmurou:

--Bem, está bem...

Luísa agora mudára de expressão, e com adorável infantilidade,
tristemente, olhando-se com desprêzo:

--_Lo peor es que yo, verdaderamente, en esta facha, me averguenzo...
si, reconozco, tengo que confessar que no soy digna de Usted!_--Mas
logo, numa coqueteria ingénua, recobrando-se:--_Ah! pero tambien yo sé
vestirme como las señoritas de la ciudad. Y tengo com qué, gracias al
Señor!_

--Não tens um chapéu?

--_Como no! Y una linda blusa de seda, pollera con pliegues y cordon de
oro_.--Atirava com decisão o guardanapo:--_Vá a ver!_

O Silveira expandiu-se num claro riso, entre trocista e incrédulo; e
após uma pausa, voltando a afagar-lhe com carinho a mão sôbre a mesa,
suavemente:

--Mas, dize-me: então, sério, sério, não te lembra o campo?

--_Que me voy a acordar?_

--Não deixaste por lá nenhuma inclinação? não tens saùdades?

--_Inclinación?... Acaso sé lo que es eso!_

--Era natural...

--_Nadie! nadie!_--E com um sincero calor, beijando os dois indicadores
postos em cruz:--_Juro! por esta... Yo naci sin una flor en el alma. Yo
andaba por ahi como una pelota lanzada al acaso, sin paradero, sin
hogar, sin destino. Quien hacia caso de mi_?...--Depois, comovidamente,
com os antebraços ao alto, as mãos postas em súplica e as pupilas
ardentes num amoroso enlêvo despedidas ao busto atónito do
Silveira:--_Ahora, si! es que yo creo haber finalmente encontrado mi
familia, mi mundo... ahora es que yo compreendo la razón y el fin de mi
vida. Que feliz soy! Cuanto le debo!_

Súbito, como no seu enlevado giro os alarmados olhos de Luísa se
fixassem no grande mostrador circular do relógio da sala, a timorata
rapariga estremeceu, e como quem desperta dum sonho:

--_Ah! pero que tarde es!... Que disculpa voy á dar en la tienda,
valgame Dios?_--E pondo-se de salto em pé, apressurada,
inquieta:--_Disculpe-me, si?... Es forzoso. Voy á tomar el tranvia_.

Arredou a cadeira de golpe, e enquanto o Silveira pagava, sem uma
palavra de despedida mais, sem um agradecimento banal, sem mesmo esperar
por êle, partiu precipitadamente.

O Silveira ficou ainda, uns minutos, como avergado ao pêso dum
inconfessável cuidado. Acendeu um cigarro, saíu morosamente... e
longamente depois, penseroso, inerte, foi subindo a pé a praça do
Congresso.--Em que viria aquilo a dar?... ia vagamente contrariado,
porque sentia que demasiado o preocupava aquele trivial episódio
_callejero_. Increpava-se da sua debilidade. O saboroso desenlace desta
aventura picante seduzia-o, fazia-lhe negaças ao desejo; mas
simultâneamente, perante a turbadora ameaça do contubernal convívio com
essa criatura delicada e simples, o seu epicúrio egoísmo revoltava-se. E
como quem padece dum mal secreto, como se premeditasse algum delituoso
plano ou houvesse cometido alguma acção indigna, guardou-se de contar
qualquer coisa ao Azeredo.

Curioso foi que à hora habitual, na manhã seguinte,--e embora não
houvessem feito nenhum acôrdo prévio,--lá estavam os dois outra vez cada
um no seu posto; dando-se até o caso singular de ser o Silveira quem
apareceu primeiro. Pronto êle havia baixado ao salãosinho de leitura do
hotel e daí, sem mesmo pensar em almoçar, recostado com indolência num
_fauteuil_, junto à janela, seguia espiando em disfarce a aparição, na
esquina defronte, da sua linda e suave companheira.--Nada tinham
combinado, mas de seguro que ela havia de vir!--E, forte nesta
acariciadora evidência, a curtos intervalos êle não despegava de apontar
os olhos codiciosos ao outro lado da rua. Muito não tardou que a sua
femieira impaciência não fôsse satisfeita. E então, mal que o insofrido
galã viu em frente, debuxar-se no torvelinho vago da multidão a fina
silhueta apetecida, ergueu-se, tomou o chapéu, correu à porta... num
momento estava junto dela.--Vinha outra, com efeito, naquela manhã,
conforme anunciára. Já parecia alguêm... Cómicamente travestida em
_señorita_, trajava uma singela blusa em _soyau_ crême, decotada, com
largo cabeção à Tudor, segundo a moda; uma saia negra em sino, muito
curta, com sobre-saia _plissée_, da mesma côr; bota de pelica e verniz,
e meia branca; ao colo um ténue fio de oiro; na cabeça um barato
chapéusito _panier_, de palha castanha, rebatido sôbre os olhos e atrás
em sôlta curva erguido sôbre a mòlhada luzidía do cabelo, pregado à
nuca; e umas luvas triviais de algodão branco, pospontadas de negro,
sujeitavam a rústica aspereza das mãos, donde pendia uma bolsinha de
sêda.

Entalada nesta convencional, e para ela quáse inédita, indumenta urbana,
Luísa aparecia desfigurada. Era uma autocaricatura. Era como uma
estiolada flor trazida do campo. Na sua improvisada encadernação havia o
que quere que fôsse de contrafeito e exótico, que a desfavorecia. Ela
mesmo não se sentia à vontade... os movimentos eram hirtos, a expressão
estranha, não sabia que fazer dos braços. Estava adorável de embaraço e
de ridículo. Mas a tudo sobrelevava sem esfôrço o contôrno picante da
sua figura, e dessa contrafacção irrisória zombava triunfal a sua
mocidade recendente, a sua palidez fresca de flor, a sua graça nativa, a
sua confiança ingénua, o seu viço exuberante.

Saùdaram-se por um cordeal apêrto de mão, e de roda dela o Silveira tudo
era mirá-la de gôsto e aplaudi-la, complacente e risonho festejando-a
por aquele milagre de metamorfose tam sedutora como imprevista. Achava-a
encantadora. Porque de todo aquele ingénuo esfôrço ressaltava a
exclusiva, a ardente preocupação de interessá-lo; todo êsse preparo
coquete era um discreto convite, um desafio evidente, que o enardecia...
Do mesmo passo, a confusa e tímida criança, no íntimo lisonjeada, pedia
mimadamente--_que no le hiciese burla_...-e trejeiteava umas infantís e
humildes expressões que, eram a demanda subtil do seu agrado.

Contudo o Silveira encontrou-a triste. Mantinha-se inconcebivelmeute
perplexa, muda, cabisbaixa. O que quere que fôsse de penoso e molesto
lhe ensombrava a expressão, lhe pesava nos lábios e abatia o vôo
sonhador das pálpebras. Interrogou-a com insistente carinho e ela sempre
no mesmo silêncio embaraçoso e difícil; té que por fim, por muito
instada, balbuciou a custo:--que ao entrar na loja, na véspera, como
chegasse uma hora mais tarde, não quiserem saber de razões nem
desculpas. Pagaram-lhe e despediram-na.

Tomado dum indominável frio egoísta, o Silveira exclamou:

--E agora?...

--_Ahora que sé yo?_--murmurou Luísa mansamente; e na sua resignação
fatalista, encolhendo os ombros:--_Busco otra casa_.

Insensivelmente haviam retomado a andar, rua abaixo, agora já sem
esquivanças, sem hesitações nem dúvidas, mano a mano, como dois iguais,
como dois bons amigos. Mas seguiam sem palavra ferir, silenciosos e
graves, a par um do outro e distanciados pela interposição dêsse
arreliador problema económico, filosofando em comum sôbre a dura
incerteza do futuro. Porêm, súbito, um outro problema bem mais grave
formularam as exigências fisiológicas do Silveira,--a necessidade de
almoçar. E êste era de solução imperativa, imediata. Fez sinal ao
primeiro _taxi_ fechado que passou, empurrou para dentro a rapariga e,
de mão à portinhola e pé no estribo, ordenou ao _chauffeur_ que tomasse
em direcção ao arrabalde, aí para Flores ou Olivos, e que aterrasse
nalgum pequeno _restaurant_, aceado e cómodo, onde pudesse almoçar-se
bem e a bom recato.

E nesse acomodatício bucolismo de fóra de portas foi onde gozaram o seu
primeiro idílio,--breves, fugazes horas de paz e de enlêvo, vividas ao
acalentador abrigo dos muros dum exíguo _patio_ colgado de trepadeiras,
em cujas sombras transparentes os raios do sol vinham quebrar-se,
dançando, como sarabandas de beijos, como boquitas de oiro. Gradualmente
aquecendo, o Silveira, profissional emérito nas práticas da sedução,
envolvia-a em cariciosas espírulas de encantamento e de sonho,
acenava-lhe com promessas, espertava-lhe desejos, insinuava-lhe
desvarios, dizia-lhe coisas audazes e perversas que a deslumbrada
criança recolhia inteiras, num embevecimento ingénuo, com os grandes e
lindos olhos muito abertos, que pareciam escutar. Depois Luísa tambêm,
no progressivo alento da confiança e pelo eflúvio excitante da comida,
tornava-se ligeira, expansiva, fácil, tagarela, e com a sua vozita
límpida e vibrátil, titilando como uma luz ao vento, fazia o enternecido
relato do seu passado, da sua vida de desamparo e miséria... e como
agora sempre o seu pensamento rodava incessante em volta do seu rico
amor... desnudava as mais íntimas prégas do seu sentir, punha da mais
comovedora evidência a intacta virgindade da sua carne e a nívea pureza
da sua alma. Ao cabo, no regresso, quando dentro do auto os dois outra
vez, êle cingiu-lhe a cintura, puxou-a a si, beijou-a sôfregamente... e
ela abandonava-se, poisando-lhe em delíquio a cabeça contra o peito,
encolhidita, humilde, gozando o prazer inefável de sentir-se pequena
junto ao homem que adorava.

Nos dias subseqùentes, é de saber, a embriagadora scena a repetir-se. Um
e outro tinham o dia todo por seu: nem ela nutria agora maior empenho em
buscar nova colocação, nem tampouco êle se interessava demasiado pelos
negócios. Narcotizava-os a tirania mole do instinto, embalava-os,
adormecia-os uma preguiceira onda de prazer. E assim, numa despótica e
mútua sedução, dias pós dias, foram indominávelmente consumindo o tempo
e pelo seu amoroso exclusivismo enchendo as horas, num delicioso
deambular de acaso, alheios ao mundo, perdidos pelas tascas dos bairros
suburbanos, delidos nas orvalhadas sombras do Tigre, extraviados na
quietude vaga e balsâmica do campo. E êste delicioso parêntesis de sonho
engrinaldava-o Luísa com um chancear cristalino e alegre, intervalado de
carícias tam espontâneas e tam ardentes, que o inflamado Silveira não
sabia por vezes a que sobreùmanas fôrças socorrer-se para enfrear a
violência do desejo. Eram as consabidas étapas duma capitulação moral,
gostosa, inevitável, em que a alucinada criança ia deixando a pedaços o
pudor,--essa epiderme da alma,--como antes, pelo campo, a fímbria da
rústica saia esgarçada nas balsas dos caminhos.

Debalde prudencialmente o Azeredo, já ao tempo conhecedor da situação,
buscava conter e dissuadir o amigo. Fazia-lhe ver, dêsse resvalo inobre
em que se obstinava, as responsabilidades, os contras, os alçapões, os
tédios... porventura os perigos.--Que precisão tinha êle? com tanta
mulher por'í e noutras condições, e mais educadas, mais lindas,
melhores, seguramente!--A nada porêm cedia a libidinosa querença do
Silveira. Se êle a princípio hesitára, agora, mercê da garra mansa do
convívio, o domínio, o gôzo, a plena posse de Luísa tornára-se para êle
uma idéa obsidiante. Pressentia-lhe o aroma e o sabor dos frutos
silvestres. Como um cacho ruivo de medronhos, embebedava-o o apetite
acirrante de mais esta aventura, tanto na sua tradição como do seu
agrado. Por fim, lógicamente, amaram-se na cumplicidade mercenária duma
_casa amueblada_. E logo nessa noite o Silveira, quando a sós, no hotel,
com a reflexiva calma do seu leito, sentiu correr-lhe a espinha um frio
de vaga e presága angústia. Inexplicavelmente, e uma vez dissipado
agora, com a posse, o encanto, o devassado mistério dessa criatura
confiada e simples, uma sorte de áspero cuidado espancava-lhe o sono...
remordia-o um amargo e apiedado sentimento, para êle desconhecido. Tinha
supersticiosas apreensões e vinha-lhe uma tristeza. Quereria
retrogradar, increpava-se, arrependia-se... No desfecho tam plausível e
tam humano dêsse vulgar lance de amor, a sua consciência em alarme
futurava qualquer coisa encaminhada a fazer sangrar a sua alma e a pesar
no seu destino.





X


Mais ou menos o mesmo severo aspecto revestiram, no dia seguinte e
quando inteirado do sucedido, os repreensivos comentários do Azeredo,
que duramente increpou o amigo.--Afinal havia caído na mesma estupidez
de sempre! E p'ra quê, no fim de contas?... Porque não soubera
reprimir-se, atalhar o mal a tempo, furtar-se, desertar, reagir? E que
tivesse vergonha! pois aquela premeditada violência era sempre no fundo
uma acção indigna.

Depois, com uma doçura amável a cantar-lhe na expressão, sensatamente
ponderava:

--Sim, porque essa pobre rapariga agora não te larga... tens que
ampará-la no novo caminho que lhe fizeste. Pendura-se-te da vontade,
enrosca-se-te ao desejo. E é bem feito! E vai tu, com o teu bom génio,
com êsse feitio brando e sensualão, deixas-te gradualmente prender,
apiédas-te, habituas-te, condescendes... e acabarás por descer a essa
equívoca situação tam do agrado de todo o bom português: a mancebia.

--Não é mulher p'r'a mim,

--P'r'os homens fracos e lascivos como tu, tôdas as mulheres estão à
altura.--E num gesto nobre e viril, sacudindo os ombros:--Porque não
fazes como eu?... Tentações dessas prefiro que venham adonde a mim.
Fica-se sempre bem... Foi o meu caso com a chilena. O verdadeiro prazer
deve ter asas, ser leve como uma pena e fácil como os frutos maduros.
Até por uma questão de egoísmo. Pois tu não vês? que diabo!... perante a
epicúrea gula dos nossos sentidos, o convidativo saber da mulher feita
vale mais que o espanto semsabor da virgindade.

Confundido e vèxado, o Silveira concedia--que sim... o seu amigo tinha
razão. São destas coisas que acontecem. Já tinha que ser...--Mas logo,
com desdenhosa arrogância, recobrando-se:--O que não valia a pena era
dar ao caso maior importância. O que melhormente agora ali o interessava
era ganhar _plata_. O mais, queria lá saber!--Aproveitando jubiloso a
derivante, logo o Azeredo lhe disse que ainda na véspera, no _Club
Progresso_, o comendador Niatello com todo o interêsse lhe perguntára
por êle.

--Tem estranhado a tua ausência e com razão. Nunca mais apareceste!

O Silveira prometeu que iria naquela noite sem falta. E com efeito,
cêrca das 10 horas, aí entravam os dois a portada banal do _Club_, na
_Avenida de Mayo_. Transporta a modesta escalinata, em mármore branco e
mosaico, e atravessado em cima um esguio vestíbulo envidraçado, cortaram
logo para o primeiro salão, à direita, uma grande e bem esquadrada peça
participando do simultâneo carácter de centro de conversação, _fumoir_,
biblioteca e sala de leitura. O teto, alto e distante, era todo
artezonado em bastos e simétricos caixotões de estuque lavrado, com
abundância de oiros e relêvos; pelo amplo lençol das paredes, forradas
duma espécie de brocado verde, de lã, com filetitos de oiro,
penduravam-se aparatosas taboletas emoldurando recompensas industriais,
oleografias, espelhos, a lista impressa dos sócios e o plano policromo
da cidade; em baixo, sôbre o envernizado _parquet_, havia uma mesa
enorme, pejada de jornais e revistas, e disseminavam-se em profusão as
cadeiras, poltronas, sofás, _causeuses_ e _fauteuils_ de tôda a espécie,
obrigado refúgio à modorrenta inércia dum avultado número de
assistentes, dos quais alguns, raros, em traje de _soirée_ ou _smoking_,
porêm a maior parte encadernados no comodismo plebeu do jaquetão, e
todos com arrastado vagar discorrendo sôbre triviais casos mundanos ou
tricas vulgares de negócios.

Junto a uma janela abancava, com três sócios mais, o comendador
Niatello, um quinquagenário reforçado e grande, de queixo querençoso, de
olhos ladinos, saltando com dominador relêvo da abaçanada flacidez da
larga face curtida e negrusca, inteiramente escanhoada. Mal que êle
descortinou os dois amigos, logo de chamá-los de longe com protectores
acenos familiares, afectuosamente. E à sua aproximação ergueu-se e
adiantou-se a acolhê-los, numa solícita cortesia, convidando-os logo a
tomar _asiento_ e apresentando-os sorridente aos três
companheiros.--Todos vélhos. Vicente Alvear, descendente duma antiga
família colonial e herdeiro duma grossa fortuna, era ainda uma bela
figura marcial, com a sôlta elegância de movimentos que nos dá uma vida
fácil. Recêm-chegára da Europa, dizia as coisas mais triviais com solene
entono, tinha um certo _aplomb_ fidalgo, e o seu rosto liso, afável e
atraente iluminava-se da espelhada abundância e frescura do bigode e
cabelo, totalmente brancos. Não assim José Piétronero, que desbarbado,
esguio, pequenino, era a mais completa e flagrante realização dum dêstes
grilhetas eternos do trabalho, vestindo pobremente, com a arisca
silhueta repregada sôbre si mesma, os olhitos cavilosos, a face
rechupada e o chinó grisalho, recurvo o dorso como um cifrão, as mãos
crispadas como garras. Finalmente, Pedro Urquiza era o mais galhardo e
mocetão dos três. Grosso, moreno, gordote, a cara opada e macia, o
cabelo lustrado de óleos, as mãos moles e brunidas, era bem um tipo de
puro e contumás _porteño_, no córte arrogante do busto, no desempêno
viril dos gestos, na linha imperativa da bôca, entre voraz e insolente,
na dura expressão do olhar, entre altaneiro e cínico. Trajava com
afectação, de calça excessivamente curta, polainas, grande pérola na
gravata e um cravo branco no olhal do jaquetão cintado.

Foi êle quem imediatamente reatou conversa. Fazia a apologética
enumeração das fabulosas riquezas naturais do país, postas agora a
claro: os jazigos petrolíferos de Comodoro Rivadavia, as hulheiras de
Chubut, os incontáveis tesouros em minério da cordilheira. Tanta
maravilha por'í assim a explorar! tanta coisa misteriosa, ignorada,
inédita, imprevista! No mundo não havia melhor.

--Parece-lhe então que todo êsse sul da Rèpública?...--indagou
ingénuamente Vicente Alvear, avançando o busto com interêsse...

--É o nosso futuro Potosi, não há dúvida! Bem vê, o norte para a
exploração intensiva é ainda demasiado selvagem, o centro está dando o
mais que pode dar... de sorte que é para essas caudais de abundância do
sul que deve de preferência voltar-se a nossa atenção e canalizar-se o
nosso dinheiro.

--Parece que essa obra do carvão de Chubut _es un cuento_,--mascou o
cauto Piétronero com frieza, fransindo desconfiado os olhos e apertando
os braços.

--Como, _un cuento_!?

--Sim... eu li algures a opinião do engenheiro Rivoretto, um informe
oficial, que diz que são jazigos demasiado recentes.

--Pelo contrário,--acudiu o Alvear com entusiasmo,--na Europa corre que
é um carvão que pode competir com o melhor de Cardiff.

--Poderá... daqui a mil anos.

--Tudo isso são abomináveis maquinações e intrigas de tanto invejoso,
tanto malfadado empatador que p'r'aí abunda!--contestou indignado Pedro
Urquiza. E com persuadente intimativa:--Não tenham dúvida: o valor das
hulheiras de Chubut, mas o valor actual, imediato, é enorme. Depois, há
ainda os mananciais do Neuquem, há tôda essa imensa e feraz
Patagónia...--E num ardor de patriótica exaltação, pondo-se em pé, com
os lábios imperiosos, com uns olhos de vidente:--Ah, creiam, meus
amigos! por tudo, até pela raça, é no sul que repousa o engrandecimento,
é do sul que há-de avassaladoramente romper e impôr-se o grande futuro
da Rèpública. E o dever de todos nós é, desde já! não só acompanhar, mas
estimular êsse portentoso fenómeno natural com as nossas melhores
reservas de actividade, de inteligência e de numerário.--Rodeou o grupo
em duas passadas nervosas, e por fim, abatendo a mão sôbre o engerido
ombro do Piétronero:--Você que diz?

Este teve um instintivo estremecimento, e naquele gesto tam seu, de como
quem defende a algibeira, encolhendo os braços todo dobrado:

--Eu não sou ambicioso... não digo nada.

--Duvida? tem receio?

--Não sei, não sei... Aquilo que tenho custou-me tanto a ajuntar!...

--Não diga isso! Um homem como você, dos do bom tempo, quando
inesperadamente se acordava rico... Um felizão, que apanhou fortunas de
mão beijada...

--Sim... porêm o meu amigo não atenta agora, com as reviravoltas da
crise, em quantos títulos eu tenho comprometidos... não toma em conta a
imensidade de terrenos que eu comprei a 30 pesos o hectare, e que neste
momento não valem 5... Ninguêm mos quere!

--São injustificadas apreensões. Lá virá seu tempo.

--Virtualmente estou pobre.

Uma girândola de incrédulos risos acolheu êste lamento hipócrita. E a
seguir num generoso arranque de confiança, o Alvear:

--Pois eu cá, não! eu estou meio tentado. O dinheiro que os meus me
legaram, p'ra que o quero eu? senão p'ra pô-lo ao serviço do meu país,
ajudando-o e engrandecendo-me?... Que essas novas empresas consigam do
govêrno, pelo menos, o apoio moral, e o meu capital disponível estará
com elas.

--Bravo! meu nobre amigo. Muito bem!--exclamou com festiva arrogância o
grosso Urquiza, dobrado com esfôrço, sobre a espalda do amigo. E logo
para o Silveira, que, sentado ao lado, seguia num vago deslumbramento o
giro tintinabulante do diálogo:--E que diz a isto o nosso simpático
estrangeiro?

Aqui interveio o ladino comendador, até então silencioso, e que com
dulcerosa expressão, envolvendo protector o Silveira na chispa
traficante do olhar, astutamente:

--Ah, o meu joven amigo não precisa aventurar-se tam longe p'ra fazer
fortuna. Tem um pouco mais perto, já sabe... os meus terrenos da
província de Cordoba. Não é verdade?

Maquinalmente, o Silveira sorriu; enquanto o Azeredo fransia a testa com
desgôsto, o negrusco aliciador continuava:

--Pode ali fazer uma rica exploração agrícola em larga escala. É o mais
simples e o mais seguro.

--Eu gosto muito do campo.

--Aí tem! Que melhor oportunidade que a que eu lhe ofereço agora? E olhe
que poucos lotes me restam já... Um terreno privilegiado, não imagina!
Ainda não viu a exposição dos produtos dessa minha terra, aqui em
Florida?... Faz o assombro de tôda a gente. Vá ver, vá... e eu tenho a
antecipada certeza que de lá o meu amigo correrá ao meu escritório.

--Haveria logar para tudo...--magnânimo o Urquiza aventurou.

--Nada! nada! _Qué esperanza_... Creia, amigo Silveira, nenhum negócio
como êste meu. Garanto-lhe que, em dois anos, tem o valor do seu capital
quintuplicado. Quere ver?

E, dizendo, o acobreado Niatello sacava duma pasta e desdobrava
aparatosamente sôbre a mesa uma grande planta policróma, enquanto de
roda os três vélhos cambiavam entre si um imperceptível olhar
escarninho, e o Azeredo impaciente beliscava o braço ao Silveira.

--Bem! vou ao meu assalto de florete,--anunciou, num sêco gesto de
despedida, o Urquiza. E para o Silveira, com especial predilecção:--Tive
imenso prazer em conhecê-lo, pode crêr... _Calle_ Lavalle, 1391,
inteiramente ao seu dispôr. E fóra disso, pelas tardes, encontra-me
sempre invariávelmente fazendo a _calle_ Florida, no _Jockey Club_ ou aí
pela livraria _Mendeski_, pelo _Wictomb_, à porta do _Lacloche_ ou no
_Rumplmeyer_.

Seguiu, breve e altaneiro, para o interior da casa, tomando-lhe o
exemplo, a poucos minutos passados, Vicente Alvear e o Piétronero, que
deixaram o comendador a desdobrar à vontade a sua estratégia de sedução
perante os dois portugueses. Assentou êle em pêso a negra mão
convincente sôbre uma larga fôlha de papel-tela, onde tentadoramente se
estrelava uma grande mancha trapezoidal, escaqueada por um labirinto de
pequeninos rectângulos, brancos, amarelos, azúis e verdes, que uma
floresta de traços negros definia, e carimbados a algarismos vermelhos.
A toalha esfíngica da fortuna.

--Isto aqui é o melhor que pode haver, notem os srs. bem! Província de
Cordoba, departamento de Iulumba. Dôze horas de ferro-carril; é um
passeio. O lote que eu lhe ofereço é êste, o n.^o 13, um número de
sorte, um verdadeiro _regalo_. Veja: são cêrca de oito mil hectares,
terrenos absolutamente virgens, a dois passos da linha férrea,
abundantes carreteiras, e em condições topográficas excepcionalmente
favoráveis, entre a montanha e o rio.

--Há-de ser caro...

--Quê, caro? objectou com a mais teatral isenção o comendador.--O meu
amigo não me conhece... De tanta soma de terras aqui vendidas já eu
tirei um lucro bastante compensador; de sorte que agora êste resto,--que
não é um refugo, senão um mimo,--ceder-lho hei por nada, quáse de graça.

--E como é que tanta preciosidade--arriscou com impertinência o
Azeredo,--se conservou até agora assim baldia, estéril, ignorada,
inútil?

--E um fenómeno vulgar em tôda esta imensidade.

--Bem, mas em todo o caso este meu amigo, sem ver, sem se informar
melhor... não pode assim de golpe comprometer-se...

--E porque não vão lá primeiro, certificar-se? Eu até estimo.

--Desnecessário!--atalhou, num rasgo de quente decisão, o
Silveira.--Está posta de parte, por descabida entre nós, a questão de
confiança.--Depois a meia voz, para o Azeredo:--Talvez convenha,
hein?--E na hipnose ingénua do oiro, erguendo-se:--Olhe, meu caro
comendador, eu não resolvo nada de pronto; no entanto peço-lhe que me
reserve o lote, que me dê um prazo.

--Só sendo muito curto, já vê...

--Eu àmanhã sem falta vou ver a sua exposição, e em seguida, em qualquer
hipótese, passarei pelo seu escritório.

E com um efusivo apêrto de mão despediu-se e afastou-se, com o Azeredo,
enquanto o comendador dobrava e guardava, num jubiloso vagar, o seu
trapaceiro _dossier_, com a segurança ardilosa do triunfo a bailar-lhe
no olhar astuto.

Não muitos metros andados na direcção dos bilhares, chamou a atenção dos
dois amigos, quáse travando-lhes o passo, um grupo atónito e compacto
que em extátíca suspensão escutava o verbo suasivo e ardente dum
invisível charlatão, sob o domínio empolgante da sua embaìdora parlenda
desdobrando cifras e barafustando enganos.

--É um assunto que eu pensei maduramente, meus senhores!--pregoava êle
na sua ardorosa invocação, convictamente.--É uma grande empresa, um
negócio estupendo!

Cá de fóra e de longe, o Silveira não podia distinguir a figura do
industrioso perorador; mas pareceu-lhe reconhecer aquela voz sacudida e
vibrante, de timbre metálico, saltando no silêncio espectante de em
tôrno como um jôrro de moedas batidas sôbre o balcão. Ergueu-se então em
bicos de pés... e, com efeito! era o seu abortivo Ramón Alvarez quem com
tam compenetrada fúria encarecia as maravilhas dalgum inédito elixir da
sua lavra. E que de repente, ao vê-lo:

--Oh, meu caro Silveira! Que feliz, que providencial acaso! Quanto
estimo! _Pase_, _pase_, venha ouvir... Como chega a propósito!

E tam pronto fez praça ao amigo, logo êle, para não perder o calor
sugestivo do momento, rompeu clamoroso outra vez:

--Trata-se nem mais nem menos que da construção dum grande, um alado, um
colossal e gigantesco pára-sol sôbre tôda a praça de Mayo.

Os paresiados rostos dos circunstantes fulguraram num rasgo de admiração
alarve. E êle, impudente, imperturbável:

--Os senhores compreendem bem a minha idéa, o meu fim essencial:
oferecer um pouco de comodidade ao grosso publico, furtar às
inclemências do calor e ao rigor das intempéries tôda a imensa aluvião
humana que de sol a sol febrilmente circula e se agita nessa túmida
aorta da cidade. Mas de passo eu quero reùnir ao útil o agradável, quero
adornar de atractivos, rodear de fartas e lindas diversões, essa
benéfica estância de repouso. Será um ponto de reùnião forçado, uma
obrigada estação de prazer, _chic_, estética, elegante. Haverá por
exemplo ali assim, logo em baixo, tôda a sorte de _tiendas_,
_restaurants_, bazares, _garages_ de automóveis, que sei eu?... Depois,
em cima, envolvendo o grande suporte central, e suspenso, teremos um
vasto salão de concertos; dos extremos de cada vareta, ao largo de tôda
essa perifería, eu farei igualmente suspender quantidade de teatrinhos,
cinemas, _bars_, estufas, e por fim, no afusado remate do vértice,
rendado e fino como uma agulha de catedral, erguer-se há um lindo
_belvedére_ e flutuará um balão cativo.

--Encantador, grandioso, realmente!

--É uma idéa bem americana!

--Parecer-lhes há estranha, à primeira vista...--ponderou o grotesco
Alvarez, sorridente, pendulando a fenomenal cabeça com modestia.--E no
entanto nada de mais exequível, de mais oportuno, de mais simples, de
mais a propósito.

Mas por entre o côro basbaque dos aplausos algumas birrentas dúvidas
surdiam.

--Acho um plano em demasia arrojado.

--Impraticável talvez...

--Como, impraticável?--de salto o Alvarez acudiu, com o frio cobalto dos
olhos súbito incendido.--Ao contrário, hoje, com o ferro e o cimento, é
tudo quanto há de mais fácil.

--A mim parece-me a renovação da cómica façanha do _homem das botas_...
com a diferença que esta não custou dinheiro,--disse em surdina para o
Silveira o Azeredo.

--E a forma prática de o realizar?--interpelou um ouvinte mais rebelde.

--A municipalidade consentirá? Já obteve a concessão do exclusivo?

--Ainda não... porêm tenho a promessa formal do _édecan_ da
Presidência.--Um crédulo cabeceamento de aplauso acolheu esta animadora
notícia.--O lucro vai ser imediato, enorme, colossal!--tornou dogmático
o Alvarez; e após uma ardilosa pausa, abrindo familiar os braços,
singelamente:--Agora o que há, é que estas coisas, sem dinheiro, sem
muito capital... Eu só não posso... Pensei numa sociedade por acções, de
cem pesos, cobráveis em duas prestações. Está ao alcance de tôdas as
bolsas. Uma coisa de nada! Aqueles dos srs. que me queiram acompanhar...

Entretanto, nas fôlhas do providencial _carnet_ que um solícito
_corredor_ ia fazendo adrede circular pela assistência, choviam
abundantes as adesões e as rubricas dos subscritores. O Silveira
inscreveu-se com cem acções, levado na rútila asa dos seus sonhos de
fortuna.

Na manhã seguinte, tomado de plutonómica impaciência, êle aí ia visitar,
em _calle_ Florida, o tam apregoado mostruário agrícola do comendador. A
distância de mais de meia _cuadra_, já êle distinguiu um grosso grupo de
mirones, na sua curiosa inquirição colados com avidez à montra, tomando
o passeio e daí alastrando ainda em arrelienta cauda pela rua. Tanta
soma de interêsse foi para o hipnotizado Silveira mais um estímulo.
Estugou o passo, e, breve, a poder de firmeza e de decisão, pedindo
vénia, acotovelando, rompendo, atropelando, logrou alcançar o posto de
exame desejado.--Um perfeito deslumbramento! Distribuida com arte e
colmando superabundante a vidreira, havia a mais tentadora profusão de
bulbos, de sementes, de frutos, leguminosas e gramíneas de toda a sorte
e tudo sôltamente luxuriando em côres sadías e brunidas, em túmidas e
aveludadas curvas, em farturas reçumantes, escarolados cofres da
abundância, gordos, frescos, viçosos, grandes como êle nunca vira igual!
Alguns eram duma corpulência descomunal, verdadeiros prodígios da
Natureza.

Havia ali batatas grandes como melões, melões que pareciam abóboras,
abóboras que eram como as tôrres da Senhora dos Remédios ou do Bom
Jesus, na sua terra. Seguramente, na última exposição promovida pelo
Vilarinho de S. Romão no Palácio de Cristal, e que tam falada foi, não
aparecera nada capaz de se comparar com isto. Era uma possança
paradisíaca que metia positivamente num chinelo os afamados feijões e as
couves de S. Cosme, os pêssegos do Varosa ou os calombros de Lamego. Que
portentosa produção e que privilegiada terra!

Nem todos pareciam, entretanto, manter esta corrente ingénua de sentir,
no heterogéneo grupo da assistência. Um que outro dito mordaz passava
dissimulado ou esfusiava escarninho; alguns rodavam num propósito
manifesto de troça, assobiando; e mesmo junto à orelha do indignado
Silveira, alguêm houve que, fransindo o nariz, com implicativo acento
exclamou:

--Hum! A mim parece-me isto um _conto do vigário_.

O Silveira sentiu ganas de contraditar a blasfémia; e sobranceiro a êste
deletério contágio, como um decisivo gesto do seu protesto pessoal a
tanta soma de imbecilidade e ingratidão, súbitamente, deixou por seu
turno a vidreira e seguiu na pressurosa demanda do comendador,--não
fôsse algum mais diligente e esperto antecipar-se-lhe!--e adquiriu para
si o famoso lote n.^o 13. Oito mil hectares de terra virgem, a dez pesos
o hectare. Um ovo por um rial. Um negócio de mão cheia.

Descontado êste dinheiro, mais o capital que arriscára na _Sociedade
Internacional de Seguros_, e o custo das cem acções, do dia anterior,
não lhe restava já do seu parco património, feitas bem as contas, mais
do que com que viver, e bem escassamente, quando muito, por um ano...
Oh, mas que importava isso, se dentro em poucos meses, seguramente, êle
dos seus esplêndidos negócios ia colhêr rios de dinheiro!--Bem bom! bem
bom!--dizia-se, esfregando as mãos, sorridente.--É um dito êste bem
certo: que há males que veem por bem... Afinal, em bôa hora viera. Ia
_fazer a América_, veriam! Ainda havia de mandar depois as brôas ao
Afonso Costa. E que esmagadora lição êle infligia à Laurita!

Arrastado na falaz miragem dêste sonho magnificente, tôda a tarde o
Silveira levou, desocupado e frívolo, em prazenteiros _flirts_ pela
cidade. Começára o delicioso mês de maio, o opulento batedor da
_season_, arrepiado dos primeiros frios e com as suas plácidas manhãs
envôltas vagamente, como por uma peliça cara, nas peroladas franjas da
neblina. Apetecia o confôrto caseiro e lembrava, gratamente, o sôpro
morno dos _calentadores_, o efusivo calor das recepções mundanas, o
tépido e sensual ambiente das veladas, dos concertos, dos bailes, dos
teatros. Haviam-se inaugurado já os selectos _tés_ dominicais do Plaza,
e os aristocráticos cartazes com o _elenco_ do _Colón_ tenorinavam
líricas tentações pelas esquinas. Ao longo da Avenida de Mayo, limpa já
de ruturas, porêm ciscada a trechos pela chuva outoniça da folhagem dos
seus plátanos, várias brigadas de obreiros lidavam regulamentarmente,
desdobrando tubagens, firmando plintos, marchetando escudos, aprumando
postes, bandeiras, mastaréus, pendurando sanefas de lumes e articulando
pórticos de ripado, para as próximas iluminações das festas da
Independência. E tornavam a aparecer as equipagens de preço, e pelas
ourivezarias e casas de modas cruzavam, em vagarosa importância, as
grandes figuras conhecidas. Era _la gente bien_ da grande cidade que, de
novo, condescendia em mostrar-se, era um novo ciclo da sua ostentosa
vida social a definir-se. Opulências, brilhos, vertigens, intrigas,
caprichos, loucuras, traições, amores... Era a lampejante renovação de
mais um dêsses embriagadores remolinhos de fortuna, de engano e de
prazer em que o aturdido Silveira estava disposto agora a deixar-se
envolver, pronta e avassaladoramente.

Ora, justo no dia seguinte, primeira terça-feira do mês, os Wimeyer
recebiam. Às 6 da tarde, lá estava pontualmente o Silveira à portita
discreta e esguia dêsse modesto rés-do-chão da _calle_ Paraguay. Desta
vez a criada, sem hesitar, abriu logo o batente da porta envidraçada,
dando afável o passo ao visitante, que se encontrou num escuro e
enfadonho _hall_, de teto envidraçado, onde êle poisou o chapéu e a
bengala, passando logo, à esquerda, ao salãosinho da frente, que dava
para a rua. Aí, sôbre um coçado sofá, no logar de cerimónia,
espapavam-se duas assaz ponderáveis matronas, amplas e obêsas, de negro,
com muitos bandós e pérolas, atendidas solícitamente pela dona da casa.
E não havia mais senão, um pouco à parte, junto ao piano fechado
prudencialmente, duas raparigas vestidas de claro, ambas dum córte
igual, em pé e com o exíguo ventre em abandôno à frente, os ombros
ladeiros,--cuja frívola atenção Irene e Dolores buscavam maquinalmente
prender, mostrando-lhes num convencional agrado um jornal de modas, que
as duas delambidas olhavam como por demais, de pálpebras froixas, o
longo narizito afilando enjoado no rosto impertinente.

Fez naturalmente sensação a imprevista entrada do Silveira, cortando
assim de improviso a sorna frialdade do pequeno círculo feminino. D.
Catalina festejou-o muito, dando-lhe com marcada alegria as bôas-vindas,
e logo, com o seu ar repousado e lânguido de sempre, apresentando-o às
duas bisarmais amigas. A seguir, o Silveira dirigiu-se a cortejar o
apartado grupo das quatro jovens, que lhe acenavam com sorrisos; e
então, ao defrontar-se com Irene, estremeceu e sentiu que lhe banhava a
espinha um frio de estranheza. Olhava, olhava e não queria crêr...
Estava mais alta, mais dura e mais forte, engrossára deplorávelmente.
Parecia-lhe outra, desagradava-lhe, desconhecia-a... Já D. Catalina o
chamava afectuosamente, ageitando-lhe cadeira a seu lado, e o
desencantado Silveira não conseguia confortar-se do seu desgôsto nem
repôr-se do seu espanto. Sofria a mais amarga e dolorosa decepção! Que
era feito então dessa alada e fugidía figura de há dois meses antes? que
lance cruel do azar ou que tirania estúpida de raça lhe haviam assim
desfeito o encanto ideal dessa visão bemdita, durante a viagem?... Êle
estava a ver! perdera a sua linha fidalga, aquele soberbo ar de
_palmeira imperial_, na sua aérea esbeltez, na sua altívola frescura...
Tinha agora uns ombros quadrados e roliços, um pulso de cavador, uma
anca rotundamente animal, espatinados os seios, a pele ardída, as
feições empastadas e sob o queixo fazia refêgos. Como fôra aquilo, em
tam pouco tempo?!

Entretanto, D. Catalina, sem poder dar-se conta desta arreliadora
surprêsa do Silveira, carinhosamente interpelava-o:--Como tinha êle
passado durante todo aquele tempo? E Buenos-Aires que lhe
parecia?--Impaciente e distraído, o Silveira arrastava quaisquer vagas
banalidades. E logo mui dulcerosa a mãe Wimeyer:--Que êles é que nunca
poderiam esquecer tam bom amigo. Falavam nêle todos os dias... E que
haviam recêm-chegado. Dolores estivera com o pai em Salta. Irene, não!
essa era mais _regalona_, acompanhára a mãe no Tigre.

--Nunca o vimos por lá...--aqui acudiu naturalmente Irene.--Todos os
dias à espera!

Com o ar humilde e contrito, quáse vèxado, o Silveira balbuciou--que,
com efeito, confessava o seu pecado... mas nunca tinha ido ao Tigre.

--Como!? E ainda o diz?--reprimendou, a fazer de agastada, a doutoral
mãe de Irene.--Não podemos perdoar-lhe semelhante falta! A nossa melhor
estância de verão... Nem a Suíça... Dito por todos!

--O Tigre é lindo!--acudiu com ênfase uma das paparretas de junto do
piano, aproximando-se.

--A minha filha deu-se muito bem por lá...--tornou D.
Catalina.--Erguia-se muito cedo, todo o dia ao ar livre... pescava,
montava a cavalo, remava muito. Não vê como lhe fez bem?

Neste preciso momento, Irene aproximava-se do Silveira e vinha
oferecer-lhe uma chávena de chá, còrando ligeiramente, com a sua
habitual singeleza. E posta assim, natural e simples, diante dêle,
revelava numa irrecusável eloqùência êsse subito e passivo avatar
burguês da sua figura.

Não era nada já a esquiva e patrícia silhueta ideal do _Almeria_; antes,
entre tantos, um rebarbativo exemplar mais de fêmea prolífica e segura.
Tomando enguiçado da bandejita a chávena, o Silveira não podia no íntimo
perdoar-lhe... Os seus olhos agora repeliam-na, o seu coração
repudiava-a. Perdera para êle todo o interêsse. Sentia-se roubado.

Contudo, atencioso e galante por instinto, dos lábios frios ia deixando,
com importante pausa e um pouco à tôa, escapar seus lisonjeiros
comentários sôbre a sociedade e a vida _porteña_, frisando a tempo a sua
impressão e déstramente sublinhando de admirativas frases o tiroteio
vago de perguntas com que o pequeno círculo feminino o assediava,--tôdas
agora em interessado grupo rodeando-o, e as raparigas já com desabusada
familiaridade depois que souberam que êle não era casado.

Foi quando pai Wimeyer entrou, e ao divisar o Silveira, os seus olhitos
claros chisparam num guloso raio de alegria. Vinha invariávelmente todo
de negro, e sempre rosado, gordote, apesar de bastante mais avelhentado.
E logo, com o seu ar didático e afável, adiantando-se:

--Oh, o nosso bom e simpático português por cá! Finalmente... Já me
tardava. Quanto gôsto eu tenho!

O Silveira teve um mudo calafrio de terror; e, num aberto
desvanecimento, D. Catalina para o marido:

--Diz que gosta imenso de Buenos-Aires.

--Promete radicar-se na Argentina,--acrescentou Irene.

E dogmaticamente o dr. Justus:

--É o que deve fazer! Em estando mais vinculado aqui, verá como se sente
bem. A Argentina é um país cativante, remunerador. Tem o meu exemplo.

--E então que pode encontrar por'í uma linda noiva...--lisonjeira
interveio uma das arcáicas bisarmas do sofá, em pancaditas suaves de
regalo sôbre o ventre.

--Encontra com certeza!--a mãe Wimeyer sublinhou, num risinho
inteligente.

--E em todo o caso--tornou com dulcerosa intimativa o dr. Justus--as
nossas prometidas lições que não esqueçam.

--Quando vossa excelência quiser...--balbuciou o Silveira com esfôrço,
ante a estopante ameaça empalidecendo.

--Não creia que a ideia inicial seja minha. Não. Tem até graça...
sugeriu-ma um vélho compatriota seu, filho da India, o dr. Gomes, que eu
em Lisboa conheci casualmente. Que homem talentoso, raro, profundo,
subtil! Era uma figura estranha e insinuante, com os seus agudos olhos
de vidente, as suas atitudes estáticas de _fakir_, a sua cútis de bronze
oxidado, a sua longa barba messiânica. Habitávamos a mesma pensão, e aí
sôbre coisas da alma e do espírito nós caturrávamos longamente. E vai
êle então, que era um tuberculoso irremissível, ao morrer legou-me um
precioso manuscrito garatujado de números, fórmulas, símbolos e chavetas
complicadas, que era a embrionária génese do seu plano. Uma teoria
genial! Tenho que pô-la a claro.

--Pois sim...--atalhou benevolente a mãe Wimeyer,--porêm, deves
compreender que o sr. Silveira terá coisas mais agradáveis que o
interessem. Na sua idade...

--Ainda um rapaz...--protectora reforçou a dama suave do regalo.

--Há tempo p'ra tudo. Não é certo?

--Como não?--maquinalmente o Silveira aquiesceu.

E como neste momento uma das grossas figuras do sofá se erguesse para
sair, êle despediu-se tambêm, com a promessa de voltar pronto, e deu-se
pressa em alcançar a rua. Ansiava por ver-se a salvo... dali bem longe.
Ia na resoluta disposição de tam cedo não voltar. Desta aziaga mansão de
desencanto e horror concorriam simultâneamente a distanciá-lo--a birra
pedagógica do pai e o engrossamento prosaico da filha.

Chegado ao hotel, o Silveira encontrou um cartão do conde Améglio, com
duas linhas amáveis reclamando a sua presença.--Pedia-lhe que passasse
pelo local da sua exposição, _calle_ Viamonte, e iriam depois a casa os
dois tomar chá, com a condessa.--A primeira impressão foi de encantado
alvorôço. Num sugestivo instante, o seu insatisfeito apetite evocou,
reviu e enroscou-se à deliciosa imagem da irlandesa, fazendo-lhe saltar
nos nervos chispas lúbricas de desejo. Porêm, ao mesmo tempo quáse,
chamavam-no ao telefone. Era Jorge Saavedra que lhe anunciava o
regresso, dêle e da família, do campo, rogando-lhe por igual que
aparecesse, se, antes, êle mesmo não fôsse visitá-lo.--Finalmente...
Ainda bem!--Nova e mais deliciosa impressão lhe fez correr, pelos
sentidos em alarme, a grata e inesperada notícia.--Sim! porque a volta
dos Saavedras significava que teria vindo tambêm Maria Mercedes. E êle
morria por tornar a vê-la... oh, a esta de preferência a tudo o mais!
Era um vivo e complicado demónio que, pela fórma mais adorávelmente
despótica, se lhe instalára na vontade e lhe monopolizára a existência.
Pois êle poderia lá viver sem ela, ali, próximos e familiares os dois
dentro da mesma cidade, sob o mesmo azul carinhoso, no mesmo ambiente
perturbador, ao mesmo contacto amigo! E, depois, tinha contas que
ajustar com ela... Havia uma deprimente situação que liquidar entre os
seus brios varonis e essa criatura enigmática e divina. Assim duplamente
lho impunham o seu coração machucado e o seu amor-próprio ferido.

Na tarde seguinte, querendo iniciar a sua galante digressão pelo mais
fácil, tomou o Silveira um auto e rodou para Viamonte, onde entrou num
pequenino salão térreo, decorado com ricos móveis Renascença, pelas
paredes verdoengas um profuso mostruário de telas de preço, porêm de
gente deplorávelmente vazio. Na desconfortante solidão daquela
fracassada armadilha artística apenas, lenta e merencóreamente, se movia
o dono da casa,--uma baça figura loira, de olhos claros de porcelana,
barbicha em ponta e lunetas, e o cabotino Améglio, astutamente cingido
ao crítico de arte de _La Nación_, a quem com loquaz intimativa, num
atropelado desbarato de grossos gestos e frases feitas, buscava
alarvemente encaminhar a atenção e subornar o critério. E depois que
êste partiu, o mesmo conde, agora absolutamente só com o Silveira, e no
íntimo vèxado por aquela evidenciação patente do seu rotundo insucesso,
contudo assumia atitudes de importância, e num desvanecido ar superior,
os olhos negligentes na face cínica, passando a mão pelo cabelo,
atribuía, fátuo e altaneiro, o facto a um mesquinho concurso de causas
bem inferiores ao seu alto propósito. E enumerava com desdêm,--o pouco
adiantado da estação, a crise, a incultura geral, o retraímento invejoso
dos artistas, a hostilidade surda da imprensa.

Passado pouco tempo, e ninguem havendo a atender, os dois retiraram e
dirigiram-se ao pensionato pelintra que os Di Paoli ocupavam, na Praça
do Congresso. Aí, das paredes roçadas e encardidas, quáse totalmente
nuas, apenas agora pendiam, destacando sôbre uma medíocre miuçalha
industrial, uma pequena paìsagem de realce e o bárbaro retrato da
condessa. Esta acolheu o Silveira naturalmente, com um risinho afável
mas sem calor, sem a mínima demonstração expansiva, com uma frieza
exasperante, fechada outra vez naquela expressão calma, alheada e
infantil que a bordo, era para o insofrido galã o maior encanto e o
melhor estímulo. Falaram ligeiramente sôbre uma quantidade de coisas
indiferentes e banais, o Silveira fez o pitoresco relato da sua estada
no campo; e por fim, como o diálogo voltasse naturalmente a recair sôbre
a digressão artística do conde e o seu resultado económico, êste num
abandôno de familiar confiança, manifestou ao amigo,--que, devia
dizer-lhe com franqueza, as coisas não lhe corriam nada bem... Estava
por completo desalentado, não tinha vendido nada! Parecia-lhe aquilo um
país de pedantes e impostores.--E numa autorevelação inconsciente:--Tudo
puro charlatanismo. _Parada_, _parada_, conforme êles diziam... porêm no
fundo nada de quantioso, de firme, de sólido. Queria êle saber?... Êsse
belo Corot que êle ali havia visto, mandára-o, a pedido do milionário
Spantuzzi, o célebre coleccionador, a casa dêle, para o estudar devagar,
para se inteirar melhor, para ver...--Cruzava indignado os braços.--Isto
havia dois meses. O tempo fôra passando... Era pr'a considerá-lo
vendido, não era verdade?... Pois que agora lhe devolvera o quadro, com
uma carta muito sêca, dizendo que afinal Corot não era dos pintores da
sua predilecção, e que já tinha três, e que por isso resolvera não
comprar...

Abria numa irritação os braços, e sacudindo a cabeça com dignidade e
erguendo-se, acremente:

--E tudo o mais assim! Há três meses, apenas, em Buenos-Aires e já
gastei quinze mil francos. E lucros nenhuns... Um pavor! Em má hora vim
aqui... Que tremenda desilusão! Vou retirar breve seguramente.

Deplorando-o com sinceridade o Silveira, e num instintivo terror
aproximando a sua sorte da do conde, tentava confortá-lo. Porêm, súbito,
êste, aplacado, risonho e com afável singeleza, a mão interesseira
estendida à parede:

--O seu quadrito ali está... P'ra onde quere que lho mande?

O Silveira estremeceu. Nem êle se lembrava já... E contudo hão havia
meio, agora, de furtar-se decorosamente àquela polida insinuação, que
para o seu carácter valia uma intimação formal. Que enormidade iria êle
cobrar-lhe? Alguns dois ou três mil pêsos, estava a ver... Um rombo
muito sofrível no seu já tam reduzido capital, um saque não previsto que
lhe desequilibrava o orçamento. E é que não havia remédio!... Numa
retracção íntima de terror, êle increpava-se duramente pela sua
imbecilidade, dava ao diabo o azarento acaso dêste conhecimento...
Porêm, breve, a sua proverbial imprevisão a fazer-lhe bailar no espírito
aquela suculenta miragem das abóboras e dos melões do lote n.^o 13.
Providencial compensação! Que importava o resto?... Ele poderia bem, já
agora, ajudar êste pobre diabo e burlar-se da condessa... que a sua
brilhante e áurea desforra estava certa, depois. Questão de tempo...
deixar correr!

E com marcada sobranceria, ao despedir-se, recomendou então ao conde,
sem discutir o preço, que lhe mandasse o quadrito ao hotel, com a conta,
no dia seguinte.

Queria ainda naquela tarde encontrar-se com Jorge. Baldado empenho
porêm, pelo momento; pois que, tendo chegado ao hotel e telefonado
sucessivamente para casa dêle, para o _Circulo de Armas_, para o
_Jockey-Club_ e para o _Plaza_, de parte nenhuma lhe davam notícia dêle
nem sabiam dizer-lhe onde porventura se poderia encontrar.--Estaria
p'r'aí talvez na sessão _vermouth_ dalgum teatro barato. Mas qual?...
Fôssem lá saber!--Ficaria o encontro então para a noite, sôbre o jantar.
Disposto pacientemente a esperar, o Silveira correu a coluna de anúncios
dos espectáculos, na _Prensa_ e viu que naquela noite havia no _Palace
Théâtre_ uma função em benefício de _La Caja Dotal de Obreras_, pia
instituìção patrocinada pelas damas da primeira sociedade. Lá estaria
certo o rapaz. E possívelmente Maria Mercedes...

Alentado por êste desejo e enardecido por esta esperança, logo que
acabou de comer, o Silveira saíu. Mal havia dado porêm, confiado e
quente, os primeiros passos, e logo à esquina da _cuadra_ seguinte,
ei-lo que se defronta súbito com Luísa... a qual buscou simular um
encontro de acaso, mas que, tímida e inexorável, mais uma vez o estava
dali espiando, seguramente.

O Silveira teve um claro sacudimento de arrelia, e brusco e hostíl,
plantado com dureza frente à sua adorável e simples amiguita, fitando-a
com império:

--Que fazes tu aqui!? que quere isto dizer?...--E como a atónita
rapariga se mantivesse muda, numa compungida atitude de assombro, os
olhos baixos, a fria prega dos lábios transida de amargura, êle na mesma
clara dureza tomou:--Não são horas e mais que horas de recolheres a
casa? Como vais agora entrar?

Luísa ergueu para o seu áspero censor os grandes olhos, repassados de
piedade, e após uns segundos de embaraço, naturalmente:

--_Yo cambié de domicilio_.

--O quê!? Deixaste essa bôa casa de Tucumán? Que fizeste tu por lá?

--_Yo nada, señor_.

--Puseram-te na rua?

Ao golpe achincalhante da interpelação, a pobre Luísa fez-se branca,
torceu-se numa contorsão aflitiva, e logo, reagindo, a protestar com
suavidade, as mãos trémulas em magoada cruz sôbre o peito:

--_Nada tienen que reprocharme alli, se lo juro! Al contrario, las
buenas madres eran bien amigas mias_.

--Nesse caso, então?...

Nova pausa, de eloqùente silêncio agora, e logo ela, còrando, a segredar
docemente:

--_Es que yo no podia pasar asi todas las noches, sin verlo_...

--Com efeito!--exclamou o Silveira, numa fatuìdade sorridente.

--_La culpa es toda suya, ya vé_...

Insensível porêm o Silveira à voluntária e total abdicação desta alma:

--De sorte que te encontras agora aqui assim à tuna, sem uma ocupação,
sem família, sem casa nem abrigo?

--_Yo no le pido nada_.

--Pois, meu rico amor, se vinhas co'a idéa de entreter a noite comigo,
perdeste o teu tempo.--E como a desconfortada rapariga o envolvesse numa
fundente expressão de carinho e ensaiasse um tímido gesto
suplicante:--Não! não! Vou com pressa. Tenho um compromisso. Palavra!

--_Que compromiso mayor que el nuestro?_

--És tôla!

E no mesmo instante o Silveira, duro sempre e insensível, jogado ao
ímpeto do seu cobarde egoísmo, voltou costas e seguiu caminho, deixando
a sua amantesita infeliz pregada e fria como uma estátua, os lábios
lívidos, tolhida de dôr e de vergonha, imobilizada de pasmo e de
tristeza.

Cortando logo para Corrientes, o arreliado Silveira caminhava rápido e,
a intervalos, voltava-se, a inquirir se porventura, e a despeito da sua
formal negativa, êle não seria seguido. Enfastiou-o de-véras o episódio.
Incendeu-o num furor pueril, que lhe punha asas nos pés, a insistência
piégas da rapariga.--Tam longe êle estava agora de semelhante
coisa!--Três dias havia que não sabia dela, buscando insensivelmente
furtar-se e fechar impunemente o ciclo de mais esta fugaz aventura com o
sêlo cómodo do olvido.--Por que era uma maçada, no fim de contas, a
peganhice infantil dessa seresma! Bôa rapariga, não havia dúvida... Mas
tambêm as môças que êle, na sua terra, tivera a sorte de arrastar a uma
torpêza igual, eram bôas como esta... e mais dóceis, mais razoáveis.
Sabiam medir distâncias, compreendiam a situação. A breve trecho, eram
elas as primeiras a anular-se... voltavam ao que eram e não o
importunavam mais, conformavam-se sem lamúrias e deixavam-no em
descanso. Ao passo que agora esta carraça... Em má hora lhe tinha
acudido!--E a biltraria recôndita do seu ânimo fortalecia-se. Erguia a
cabeça com jubiloso arreganho e caminhava mais apressado. Porêm a
espaços, não obstante, se num claro de grata recordação a sua alma
evocava a cândida imagem de Luísa, crescia-lhe súbito no íntimo uma onda
de condoída ternura, que o envolvia, que o abrandava, que o fazia
arrepender-se e parar no caminho. E êle revia então, em todo o seu
incondicional abandôno, em tôda a sua rústica simpleza, essa esplêndida
flôr do campo, a tinta ardente da sua epiderme, o alçapão de desejos que
era a sua bôca, o lume de paixão espirrante dos seus olhos cheios de
fogo... e pensava.--Talvez que esta sentisse mais e melhor que as
outras... Valeria mais que tôdas!

Esta quáse palpável evidência perturbava-o. Já perdia a noção exacta do
rumo que levava. Entrou no vestíbulo do _Royal_, tomando-o por o _Palace
Théâtre_; e por êste passou desgarradamente, uma e duas vezes, antes de
reconhecê-lo. Pesava-lhe na alma essa obsidiante luta interior entre o
apiedado alarme da sua consciência e a farta repulsão do seu desejo........
...........................................................................




NOTA FINAL


Abel Botelho, o artista ilustre que às letras do seu país legou tantas
páginas de inspiração e de beleza, não teve tempo de concluir o romance
_Amor Crioulo_, escrito longe da sua terra e da sua gente mas sempre com
a imaginação e os olhos postos na Pátria distante. A morte colheu-o de
súbito, paralisando para sempre a mão augusta que tam activamente lidou
e a lúcida inteligência que nunca se fatigou de combater, durante meio
século de esfôrço permanente e fecundo, para atingir um ideal de
perfeição suprema.

Analista subtil do coração humano, psicólogo, moralista pelo castigo
áspero do sarcasmo, Abel Botelho desceu a profundidades poucas vezes
exploradas antes dêle, tentando imprimir uma utilidade social à sua
arte. A vasta obra que nos deixou e em que a sua alta personalidade se
perpetuará, tem de ser tomada como uma lição, mesmo nos seus aspectos de
mais cru realismo e na sua mais cruel expressão--que fazem dela um
flagrante documento da época e do meio em que foi elaborada. Vista em
conjunto--que é como deve ser julgada pelos espíritos imparciais--há-de
necessáriamente reconhecer-se-lhe um mérito estético e moral.

Os derradeiros capítulos que compôs, com tanta ternura e tanto relêvo
artístico, foram estes do _Amor Crioulo_, que os seus Editores hoje
lançam aos alaridos da publicidade para que nada se perca de tudo quanto
o romancista excelso produziu. O livro ficou incompleto. Todas as
pacientes buscas encetadas, para se encontrar a parte final, em Lisboa,
onde Abel Botelho tinha a sua casa, e em Buenos-Ayres, onde êle era o
representante diplomático do Governo da Rèpública Portuguesa, foram
infrutíferas. A doença inesperada interrompêra, certamente, o trabalho
do escritor insigne, que a morte não tardaria a eliminar da comédia da
existência. A acção do romance estava em pleno desenvolvimento quando o
braço do seu autor caíu desfalecido. Adivinha-se, no entanto, o desfecho
do _Amor Crioulo_ pela leitura dos coloridos, nervosos e movimentados
episódios em que a sua tessitura se desenha vigorosamente e o conflito
sentimental se estabelece.

Publicando-o tal como lhes foi entregue, os Editores contribuem com
novos e valiosos subsídios para o estudo e para a crítica da
individualidade de Abel Botelho que, na moderna literatura nacional, se
afirmou com nobre superioridade. A Escola realista entre nós poucas
figuras mais elevadas possue. Abel Botelho era um pintor por vastas
massas, dispondo duma paleta muito rica, um minucioso observador da vida
que à sua volta desenrolava maravilhosos scenários e que êle reproduzia
com surpreendente fidelidade e um justo conhecimento dos tons e dos
valores.

Foi, em todo o caso, lamentável que não terminasse êste volume
póstumo--porventura aquele em que pôs mais devotado carinho, mais
emoção, mais orgulho de raça, e que, mesmo fragmentado, o denuncia como
uma entidade representativa. Nem ao menos pôde corrigir as provas em que
os escritores da sua rara estírpe dão sempre os últimos retoques de
graça, de harmonia, de equilíbrio e de luz. A elevada honra dessa tarefa
foi-me confiada a mim, procurando eu desempenhá-la o melhor que me foi
possível e suprindo pela vontade de acertar o que me falta em
competência. Qualquer êrro que no texto apareça terá, portanto, de me
ser imputado, e não ao escritor modelar que tanto dignificou a sua
nacionalidade nos luminosos domínios do pensamento e da arte.


  Pôrto, 28 de julho de 1919.

                                                         João Grave.




*Lista de erros corrigidos*


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+------------------------+-------------------------+
  |          |        Original        |        Correcção        |
  +----------+------------------------+-------------------------+
  |#pág.    9| sna                    | sua                     |
  |#pág.   43| _Commitee_             | _Committee_             |
  |#pág.  118| familiaridadecativante | familiaridade cativante |
  |#pág.  118| eru dição              | erudição                |
  |#pág.  124| àtropelada             | atropelada              |
  |#pág.  214| cortornos              | contornos               |
  |#pág.  249| estê                   | êste                    |
  |#pág.  253| próprior               | próprio                 |
  |#pág.  337| Silveíra               | Silveira                |
  |#pág.  377| sóbre                  | sôbre                   |
  +----------+------------------------+-------------------------+


A pontuação em alguns casos foi substituída (pontos por vírgulas e dois
pontos por ponto&vígula, e vice-versa), conforme se verificava errada a
sua utilização.





End of the Project Gutenberg EBook of Amor Crioulo, by Abel Botelho

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agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
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1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

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electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
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Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
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request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
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License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
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unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
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that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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